Durante os 51 anos em que escreveu as 5.500 páginas de seu diário, o imperador Pedro II (1825-1891), por maior admirador que fosse das ciências, jamais poderia imaginar que, um dia, bastaria um clique para qualquer súdito obter cada detalhe de seus relatos. A mágica vai acontecer a partir de sábado 27, quando o Museu Imperial de Petrópolis lança o CD-ROM Diário do imperador Pedro II, organizado pela historiadora carioca Begonha Bediaga, 41 anos. Trata-se de um precioso instrumento para a compreensão do que foi o Brasil no século XIX, sob a ótica do monarca, e inclui desenhos inéditos de próprio punho – como o do Morro de São Paulo, na Bahia – que revelam um inusitado talento imperial.

Se alguém se interessar em saber o que o soberano brasileiro pensava sobre a escravidão ou que relação mantinha com o visconde de Mauá, entre outras curiosidades, poderá acessar o ícone pesquisa e clicar a palavra-chave. É o caminho para flagrar o imperador picado por pulgas na Bahia, encantado com haxixe no Egito ou derretido pela condessa de Barral. O CD-ROM oferece 110 ilustrações, entre fotos, litografias e charges. Cada período é separado em volumes, com textos transcritos ou manuscritos. Estes últimos são retratos do estado de espírito do monarca. Se no início de sua vida a caligrafia era limpa e firme, nos últimos anos ficaria praticamente ilegível. São diários de registro do cotidiano, auxílio de memória, organização de idéias e explicações de seus atos, mas são raras as páginas em que o imperador faz confidências pessoais.

Visão externa – A tiragem de quatro mil cópias incluirá o livro homônimo de 160 páginas (R$ 40). Além de auxiliar no uso do CD-ROM, a obra traz uma cronologia histórica para situar o texto nacional e internacionalmente, com uma bibliografia auxiliar. O patrocínio é da Unisys e o apoio da Casa de Oswaldo Cruz. Para a antropóloga Lilia Schwarcz, autora de As barbas do imperador – d. Pedro II, um monarca dos trópicos (1998), não se pode esperar de Pedro II sensibilidade para as mazelas econômicas de seu império. “Seu interesse maior era formar uma imagem, através de seus deslocamentos pelo País e pelo Exterior, para evitar o desmembramento da Nação. Isso está bem nítido no diário”, explica Lilia, que assina uma introdução no livro.

Para estudiosos ou leigos, alguns dos trechos mais saborosos são justamente as minuciosas descrições dessas viagens, acompanhadas de mapas e textos explicativos. Em 1859, por exemplo, o monarca atravessou grande parte do território nacional, do Rio de Janeiro à Paraíba, muitas vezes montado em lombo de burro ou a bordo de toscas embarcações. Quando passou pela Bahia, fez o seguinte comentário: “Na fazenda dos Olhos d’Água fiquei mal acomodado na senzala – nome que convém à casa que aí há – mas sempre arranjei cama em lugar de rede e dormiria bem, apesar das pulgas, cujas mordeduras só senti outro dia de manhã, se não fosse o calor, e a falta de água que é péssima aí, tardando a de Vichi, que vinha na bagagem pela falta de condução.”

Fica nítida, portanto, a falta de conforto e seu esforço para enfrentar essas aventuras, obrigando-se a levar na bagagem água importada da França para não ter que beber o incerto produto nacional. Um dos momentos mais curiosos dessa viagem, cujo objetivo era acalmar as maiores fontes de descontentamento ao governo, é sua travessia pelo rio São Francisco. Antes disso, Pedro II enviou um grupo de engenheiros, chefiados por Henrique Guilherme Fernando Halfeld, para levantar detalhes da região. Queria saber se havia populações indígenas agressivas no percurso e qual o calado de navio que poderia atravessá-lo.

Fumadores de haxixe – A passagem da comitiva pelo São Francisco causou enorme estranheza às populações ribeirinhas, que nunca tinham visto embarcação tão grande. E muito menos a figura imponente do imperador, de cartola e calças brancas, rodeado por pessoas também vestidas formalmente. Seguiram pelas águas até a cidade de Piranhas e dali partiram a cavalo para o sertão. Talvez tenha sido uma das partes mais penosas, em que a comitiva dormiu em redes. Ao fim de oito dias depararam-se, estupefatos, com a cachoeira de Paulo Afonso, hoje uma represa. “É belíssimo o ponto de que se descobrem sete cachoeiras que se unem à grande (…). Tentar descrever a cachoeira em poucas páginas, e cabalmente, seria impossível”, resume Pedro II.

Cada vez que viajava, o monarca tinha de batalhar uma autorização da Câmara, nem sempre fácil. Os políticos temiam deixar o País sob as rédeas da princesa Isabel, que na primeira viagem internacional do pai tinha apenas 24 anos. A morte da filha Leopoldina, em Viena, o levou a um périplo de 11 meses pela Europa – com direito à estréia de O guarani, de Carlos Gomes, em Milão – e ao Egito, em 1871. Lá, saciou sua curiosidade de egiptólogo e viu de perto os fumadores de haxixe. “Há três espécies de haxixe, que eu vi numa das lojas dos bazares (…). Uma destas espécies faz rir e, com efeito, ao fumá-la, o árabe fingiu, pelo menos, dar muitas gargalhadas.”

Já o pretexto para a mais longa via-gem ao Exterior, de 18 meses, em 1876, foi a saúde da imperatriz Teresa Cristina, atendida na Europa pelo famoso médico neurologista Jean Martin Charcot, discípulo de Freud. Nessa mesma ocasião, Pedro II aproveitou para passear pelos Estados Unidos, onde se encantou com os arranha-céus, os trens e o desenvolvimento da agricultura. O contato com o presidente americano Rutherford Hayes deixou as seguintes impressões: “Seu aspecto é grosseiro. Pouco fala. A nora é muito amável. A mulher feia e vesga faz o que pode para ser amável. O filho parece rapaz muito inteligente.” Nessa mesma viagem visitou Rússia, Criméia, Constantinopla, Atenas, Beirute e a Terra Santa, onde aparecem os únicos vestígios de religiosidade do diário. “Pedro II é crítico à Igreja como instituição”, ressalva Begonha Bediaga.

O imperador escreveu de 1840 a 1841 e de 1859 a 25 de novembro de 1891 memórias doadas ao museu pelo descendente Pedro Gastão de Orleans e Bragança. O monarca preferiu queimar, por razões ignoradas, os textos do período intermediário. Até sua morte, em 5 de dezembro, não deixou de ditar as memórias, o que demonstra a importância que tinham para ele. Segundo a historiadora, Pedro II era ciente de que seu diário poderia ser usado pela História. “Por isso ele pode ter exercido uma certa autocensura”, admite.

Quando se dirige à condessa de Barral, por exemplo, fala de uma forma tão dúbia que até hoje deixa os historiadores em dúvida sobre o relacionamento que os dois mantinham. A própria condessa condena a discrição do amigo: “É tão raro você contar outra coisa que ‘tomei banho, vi meus netos, li, tomei café’. Sem nenhuma censura, eu não chamaria isto de conversar com uma velha amiga.” D. Pedro II parece fazer uma concessão, que também não leva a conclusões definitivas: “Estou muito cansado e atirar-me-ia já na cama se as saudades não exigissem que lhe desse as mais afetuosas boas-noites (…). Nada me interessa completamente longe de você (…)”

Já no volume de memórias, de 1862, período considerado o auge do segundo reinado, o imperador foge de seu estilo reservado e registra sentimentos em tom confessional, assumindo sua inaptidão para o cargo que ocupava e seu encanto pelas viagens. “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências; e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador. Se ao menos meu pai imperasse ainda estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo.”

O diário começa sem intimidades e com o pulso firme de um jovem pernóstico e arrogante, que já nasceu sob um estrondo das salvas de fortalezas e navios, como promessa de ser o primeiro governante nascido no Brasil. “Chegando ao Paço descansei um pouco, depois fui para o Te Deum, grandezinho, mas suportável por ser composto por meu pai, houve muita gente, muitos criados que vinham a petiscar honras.” O contraste é grande com a última fase, marcada por seu declínio paralelo à queda do império, em 1889. A saúde é cada vez mais precária, agravada pela diabetes, e o obriga a voltar ao Exterior para se tratar. Sua última grande viagem acontece em 1887, durante dez meses, quando se refugia no balneário de Baden Baden, na Alemanha, e em Cannes, na França.

Os tempos de exílio são descritos com rigor diário, quase como uma terapia ocupacional. A falta de dinheiro é outro problema. Já sua opinião sobre a esposa, a imperatriz Teresa Cristina, também se modifica com o passar dos anos. Encantou-se com o retrato a óleo da pretendente antes de seu desembarque no Brasil. Depois se decepciona a tal ponto com a aparência da futura cônjuge – coxa e de feições duras – que chega a rejeitá-la no início do casamento. Quando a perde, vítima de profunda tristeza, menos de um mês depois de partir para o exílio, Pedro II é o retrato da dor. “Não sei como escrevo. Morreu haverá meia hora a imperatriz, essa santa (…). Ninguém imagina minha aflição. Somente choro a felicidade perdida de 46 anos. (…). Abriu-se na minha vida um vácuo que não sei como preencher (…).”

Mais sofrimento com a morte da condessa de Barral, em janeiro de 1891. “Nunca conheci inteligência assim, e sempre a mesma durante 50 anos. Estou deveras no vácuo.” Em uma de suas últimas anotações, lamenta, com garranchos: “Já clareia (…). Aguardo o dia. 5h30. Não posso nada fazer. Não tenho perna capaz nem luz. Enfim é uma maçada”.