Toda vez que a voz doce de Caetano Veloso, entoando em italiano a bela canção Luna rossa, entra como fundo musical da novela global das oito Terra nostra, o espectador já sabe que desfilará em cena uma dupla a caminho da paixão, que tem provocado surtos de emoção. Como se não bastasse a beleza estonteante de Sophia Loren tropicalizada da jovem atriz promissora Maria Fernanda Cândido, 25 anos, a fogosa Paola, os milhares de pessoas sintonizadas na ótima trama de Benedito Ruy Barbosa ainda são brindados com uma aparição muito especial. É Raul Cortez que, aos 68 anos, cada vez mais se supera na composição de personagens que indefectivelmente são obrigados a se agigantar para a satisfação plena de todos. Falar bem de Raul Cortez há muito é sinônimo de redundância. Só que agora, na pele do divertido e determinado Francesco Magliano, o ator nascido em Santo Amaro – hoje um bairro agregado à cidade de São Paulo – rouba as atenções no meio de feras, já que há tempos uma novela não reunia um elenco tão talentoso, equilibrado entre jovens e veteranos.

Assistir a Raul Cortez incomodado e excitado com a possibilidade de um fervente caso de amor no crepúsculo de vida de seu personagem é um prazer a ser dividido com o imenso público, que está inclusive mudando o jeito de falar por causa da novela (leia também a matéria Mezza portuguesa mezza italiana) e que tem alavancado a audiência de Terra nostra para a média de 48 pontos, de acordo com a medição do Ibope na Grande São Paulo. A quantidade de expressões faciais por ele trazidas para a telinha em closes de cinco segundos é impressionante. “Não é minha intenção, mas me surpreende muito porque é a leitura exata do que eu estava pensando e isto prova a minha transparência como pessoa”, justifica. Diante do presente de atuar com Cortez, e também por ver seu papel crescer, Maria Fernanda não se contém. “Babo com seu desempenho. Ele cria uma descontração para a cena acontecer com grande naturalidade”, deslumbra-se ela. Benedito Ruy Barbosa só lhe reserva elogios. “Ele é um dos atores com quem eu tenho mais segurança em trabalhar. É o próprio Francesco Magliano.” O excelente resultado da incorporação do personagem, contudo, não tem sido tão fácil. Mesmo para alguém que, em 43 anos de carreira, atuou em 50 peças, 18 filmes – o mais recente, Lavoura arcaica, ainda inédito -, 18 novelas, contando a atual, várias minisséries e casos espe-ciais, além de um desvio artístico com a gravação de dois discos, um deles na companhia de Maysa.

De terça a sexta-feira, quando seu Francesco é onipresente nas múltiplas cenas gravadas das 7 às 21h, Cortez se recolhe ao quarto do hotel no Rio de Janeiro, pede o jantar e, das 22h à 1h, prepara suas falas para o dia seguinte. Em São Paulo, onde mantém um flat apenas para estudar, recorre a uma professora de italiano e com ela repassa o texto da semana inteira conferindo o sotaque exato. A professora é a mesma que o auxiliou a construir o sotaque do não menos fabuloso Geremias Berdinazi, de O rei do gado, de 1996, coincidentemente uma novela assinada por Benedito Ruy Barbosa, último sucesso estrondoso da Rede Globo, antes da empatia de Terra nostra, a tábua de salvação para o combalido horário das oito. À época, Cortez decorava seu papel ouvindo ópera. Com Francesco, ele não sabe bem por que, recorre à memória das cançonetas populares italianas. “Talvez por causa do humor dele.” Desde o princípio, no entanto, a meticulosidade do ator lançava um certo medo da repetição. Não poderia. “Geremias era mais do Sul da Itália, Francesco é do Norte ou do Centro. Um era de origem mais humilde, o outro chegou com algum dinheiro no bolso, portanto são vidas e sotaques diferentes.”

Drama – Paralelamente à novela, Raul Cortez cumpre uma temporada de sucesso com a peça Um certo olhar – Pessoa e Lorca, impecável encenação dramática das poesias de Fernando Pessoa e Federico García Lorca, que lotou duas salas em São Paulo, estará no Festival de Teatro do Porto, Portugal, na quinta-feira 9 e na sexta-feira 10, e em janeiro estréia no Rio. Sob a direção de José Possi Neto – que com o ator e Marília Librandi Rocha fez a pesquisa e roteiro dos poemas -, durante 1h15 Cortez destila a alma ibérica da obra dos dois poetas. “É um depoimento das emoções que eu tenho vivido e isso mexe muito comigo. E me admira o sucesso deste espetáculo, a emoção com que ele segue e o silêncio profundo numa sala repleta de gente.” Na Muestra de Teatro del Mercosur, em maio deste ano, em Montevidéu, ele conta que foi uma ovação. “Os músicos choravam, a técnica chorava. Eu tive que reprisar três vezes Casada ou solteira, de Lorca.”

Em muitas ocasiões, porém, no espetáculo em que ele canta e dança com a avidez de um espanhol nativo, Cortez detectou focos de energia negativa, conforme descreve. “Eu neutralizo com garra, porque tenho que tomar conta da situação.” E quando Raul Cortez toma conta da situação é difícil puxar a rédea. Basta lembrar a polêmica envolvendo o revolucionário diretor José Celso Martinez Corrêa, que o dirigiu em montagens históricas como Os pequenos burgueses e com ele atuou na peça As boas (1991), leitura irreverente de As criadas, de Jean Genet, que acabou gerando uma briga pública culminando com a demissão do ator por parte do diretor. Cortez fazia a Madame e Zé Celso a empregada. O primeiro numa caracterização que deixava a platéia boquiaberta. Surgia em cena dentro de um vestido com enorme decote nas costas, usando turbante negro arrematado com um broche e piscando imensos cílios postiços. “Zé Celso tem um talento absolutamente extraordinário. Como diretor nesta peça ele me deu uma linha absolutamente extraordinária, não era minha intenção brilhar mais. Depois foi um problema financeiro, que na época talvez eu não tenha compreendido muito, mas era um dinheiro devido e que não me estava sendo dado pela administradora dele”, recorda.

As mágoas foram apagadas. Os dois se encontraram no cinema na sessão de um filme de Pedro Almodóvar – “só poderia ser”, brinca Cortez – e se abraçaram. “Eu te odeio, eu te amo, eu te amo, eu te odeio”, disse Zé Celso, com seu jeito teatral. Relacionamentos e espetáculos cheios de intensidade parecem sempre ter feito parte da carreira de Raul Cortez. Caso contrário nem seria um grande ator, que trabalhou com nomes do porte do próprio José Celso Martinez Corrêa, Ziembinski, Alberto D’Aversa ou Antunes Filho, um dos diretores mais importantes da sua vida, que o dirigiu em várias peças. “A gente discorda em muitos pontos, mas os bons amigos sempre discordam. O fundamental é que o Raul não atua só por profissão, há algo de espiritual que o empurra”, determina Antunes.

Método – Não à toa, em 1969, quando Ruth Escobar abalou as estruturas do teatro nacional produzindo uma montagem feérica de O balcão, de Jean Genet – na qual literalmente destruiu seu antigo teatro em São Paulo, cavou um fosso e ergueu uma altíssima espiral de ferro onde público e atores se misturavam -, Cortez figurava no elenco dirigido pelo argentino Victor Garcia. No meio dos ensaios, entretanto, para espanto geral ele fugiu. Não suportou a percepção exata do que era lidar com um gênio. De nada adiantou, Garcia foi atrás dele em Salvador e o trouxe de volta. A coragem de novamente enfrentar a proposta transformadora foi definitiva. O balcão é uma linha divisória na sua carreira. “Victor mudou a maneira de eu estudar os textos. Ele me ensinou que cada cena e cada personagem têm seu colorido, então sou rodeado de cores.”

O método continua sendo aplicado. Para melhor definir cenas e personagens, Cortez lhes atribui cores. De acordo com ele, o Francesco de Terra nostra, por exemplo, varia do vermelho predominante até o azul-claro, as cores pastel. “Quando ele está com a Paola, dependendo dela, pode ser cor-de-rosa ou laranja”, intui. Victor Garcia talvez nem saiba, mas não foram somente as cores que criaram um método. “Ele me deu os valores da vida, não me lembro de ter mau humor depois disso tudo. Posso ficar irascível, temperamental, mas com bom humor sempre.” E carisma também, como assinala o rei dos palcos Paulo Autran. “O Raul tem talento, um físico ótimo e uma voz excepcional. Um dos grandes momentos dele no teatro foi em Amadeus”, recorda Autran. “E em O rei do gado ele estava excepcionalmente bem.”

Mestre – Hoje, com o peso da carreira estrelada, Raul Cortez provoca tremores nos atores mais novos. Ele mesmo passou por situação semelhante, quando sonhava em trabalhar ao lado de Paulo Autran – com quem nunca dividiu a cena -, de Cacilda Becker, Walmor Chagas, Cleide Yáconis, Tônia Carrero. “Eu devo ao Walmor o início da abertura como ator, ele teve muita paciência comigo.” Com Tônia Carrero, na televisão acabou fazendo a histórica novela global Água viva, de Gilberto Braga, e no teatro o clássico Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee. “Ele ganhou todos os prêmios”, conta Tônia. “É o sujeito mais encantador que a televisão já criou. Antes de fazer sucesso não era tão bacana, fazia falta a ele o sucesso que merecia.” Atualmente, Cortez detesta quando é chamado de mestre pelos mais novos. “Acho horrível, a gente está sempre aprendendo, não tem por que ser chamado de mestre.”

Ganhar esta segurança foi penoso. O descendente de espanhóis Raul Christiano Machado Cortez confessa que teve um grave problema de rejeição que o acompanhou na infância e na adolescência. Conta que os irmãos – tem cinco, três homens e duas mulheres, todos mais novos – eram mais bonitos. “Eu me achava um lixo.” Exercitava então diante do espelho para se tornar mais simpático, mais cativante. Ensaiava gestos, posturas, como rir com charme. O “laboratório”, como se vê, surtiu grande efeito. Não há mulher que não cite o charme de Raul Cortez entre suas qualidades marcantes. Aos 17 anos já compunha bem com o cigarro entre os dedos. Desde lá nunca parou de fumar. Para abrandar a culpa consome poucos da marca Capri. “Mais fraco, fininho, difícil de encontrar.” Além do exercício para se tornar uma pessoa interessante, a vida fora do útero familiar também demorou a deslanchar. Permaneceu virgem até os 23 anos. Tinha crises de melancolia, depressão. Por força dos amigos, a primeira tentativa de sexo com uma prostituta, aos 15 anos, foi catastrófica. A moça estava bêbada e lhe arrancou sangue.

Virgindade – Todos estes casos, inclusive a decantada bissexualidade espalhada nos anos 70, são fatos do passado para Raul Cortez. “O importante para mim era chocar, acabar com a falsa moralidade de uma burguesia que me irritava profundamente.” Naquele tempo chegou a dizer que todos os seres eram bissexuais. No momento está sozinho. Nunca casou no papel. É pai de duas filhas, uma é a também atriz Lygia Cortez, 35 anos, de seu casamento com a atriz Célia Helena, e a outra é Maria, 20, da sua união com a socialite Tânia Caldas. Tem duas netas, uma de 12 e outra de seis anos, as duas filhas de Lygia. Discreto e sempre elegante – quando recebeu ISTOÉ combinava todas as peças de seu vestuário em ton sur ton -, Raul Cortez até bate na madeira ao falar em casamento. Dá a entender que lhe bastam os inesquecíveis personagens já arquivados junto à memória de seus milhares de admiradores.