Já se disse que a história não se repete jamais, mas ela é capaz de provocar enormes sensações de déjà vu. As ruas de Seattle neste fim de século faziam lembrar agosto de 1968 em Chicago. Em ambas as cidades, os prefeitos colocaram as tropas de choque na rua para conter com bombas de gás lacrimogêneo multidões de manifestantes. Desde a convenção do Partido Democrata, há 31 anos, não se via cena igual nos Estados Unidos: policiais batendo e arrastando gente pelas ruas, as autoridades municipais pedindo reforços à Guarda Nacional, decretando estado de emergência e toque de recolher. Tudo em pleno centro financeiro de Seattle. Até a sexta-feira 3, segundo o chefe de polícia Norman Stamper, mais de 500 pessoas foram presas e cerca de 40 ficaram feridas, inclusive um policial em estado grave. Os protestos desta vez eram contra a 3ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC). A fumaça das bombas apagou o brilho da chamada “Rodada do Milênio” e impediu a abertura solene da reunião que deveria tratar de tarifas e regulamentações do comércio exterior, além dos desdobramentos da globalização.

A garoa fininha caía em Seattle, mas ninguém imaginava que naquele dia 30 de novembro a cidade fosse ser abalada pela maior tormenta de sua história. No Pike Place Market, uma praça a cerca de quatro quilômetros do centro comercial da cidade, uma multidão começou a se juntar. Mike Shater, militante ecologista vinculado à poderosa ONG Sierra Clube, calculou que às seis horas já havia cerca de dez mil pes-soas. Alguns, debaixo daquele aguaceiro, estavam apropriadamente vestidos de tartarugas marinhas (símbolo da agenda ecológica). Não muito longe dali, no gigantesco estacionamento do Memorial Stadium, pertinho da “agulha espacial” – o cartão-postal local – mais 20 mil sindicalistas se arregimentavam. Entre estes estavam também representantes de sindicatos de vários países, inclusive a CUT e a Força Sindical, do Brasil. Quando a luz do sol finalmente começou a vencer as nuvens, os dois grupos marcharam em direção ao Centro de Convenções, onde deveria acontecer a abertura das sessões da OMC com um discurso da secretária de Estado americano, Madeleine Albright. Era como se a muralha de uma represa houvesse estourado, levando na enxurrada os planos oficiais. Albright ficou ilhada e não pôde abrir o bico. E assim começava a manobra política mais fenomenal deste resto de milênio. Eram manifestantes de todas os matizes do arco-íris político – desde o direitista Pat Buchanan, candidato à Presidência americana, passando por neonazistas, paranóicos conspiracionistas até grupos de esquerda, religiosos, ecologistas, desaguando em anarquistas. Todos unidos pelo mesmo ódio aos modos imperiais da OMC. Juntos arrombaram a festa dos senhores engravatados da globalização.

As habituais limusines de figurões e os furgões de guarda-costas ficaram encalhados num dos maiores congestionamentos da história de Seattle. Os poucos que tentaram forçar a barra a pé, acabaram levando chutes no traseiro como um delegado da Colômbia. Na bagunça, quem usasse terno e gravata estava sujeito a levar uns pescoções. Os principais organizadores do protesto – a central sindical AFL-CIO e uma coalizão de grupos ecológicos – prometiam manifestações pacíficas, mas um núcleo radical de jovens anarquistas tinha outros planos. Durante todo aquele dia, desenrolou-se um jogo de gato e rato com a polícia, visivelmente despreparada para a tarefa de manter a ordem. Isso apesar dos anúncios de tormenta feitos há meses em sites anarquistas da Internet. Logo após as 10h30 já estava claro que a abertura da OMC havia sido comprometida. Cancelou-se o evento.

O Serviço Secreto – encarregado da segurança dos figurões do poder Executivo americano – já havia determinado que a situação era precária e perigosa, impedindo até mesmo a saída da secretária Albright. Mas, se ela não foi de encontro às barricadas humanas, os protestos chegaram até sua porta. Pelas ruas ao redor do Westin Hotel, onde estava hospedada a delegação americana, cerca de cinco mil pessoas montaram cerco. Ônibus da prefeitura foram estacionados pára-choque contra pára-choque em volta do Westin. Parecia a velha cena da caravana formando círculo contra os índios. Índios no sentido metafórico – jovens de caras-pintadas – e, ao pé da letra, em pé de guerra.

Isolados – “De qualquer forma, os acordos costumam mesmo ser feitos nos bastidores ou por telefone”, dizia a negociadora chefe dos Estados Unidos, Charlene Barshefsky, dando razão aos manifestantes que acusavam a OMC de ser apenas um organismo onde as decisões são feitas de modo secreto, atrás de portas fechadas e sem consulta democrática. “O que une todos aqui é o fato de que a OMC toma decisões à revelia da opinião da sociedade civil”, disse a ISTOÉ o velho sindicalista John Sweeney, presidente da AFL-CIO. A esta altura, Barshefsky e seus comandados não podiam nem mesmo negociar via telefone: o PABX do hotel estava congestionado e ninguém conseguia contato com o mundo exterior. Os celulares também entraram em colapso. Em meio a tudo isso, o demissionário diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, numa demonstração de sua verve autoritária, ironizava: “Tenho saudades das reuniões na Rússia. Lá não haveria protestos.”

Às 20h30 o clima no centro de Seattle era caótico e a situação estava madura para o motim. Um grupo de supostos anarquistas começou a queimar lixeiras e empilhar caixas de correio. Logo partiram para o quebra-quebra. Primeiro vieram as pichações. “Fuck the WTO” (abreviação em inglês de OMC), “Go burn your ass, not our forest” ou “Quem usa gravata gosta de nó no pescoço: vamos enforcá-los”. Das palavras à ação. Na Sexta Avenida, entre as ruas Pike e Pine, vitrinas começaram a ser estilhaçadas. Lojas de grandes corporações como a Gap, Nike e Starbucks (a rede de coffee shops original de Seattle) foram invadidas, saqueadas e depredadas. Um furacão parece ter passado pela lanchonete McDonald’s – para deleite do pastor de ovelhas francês José Bové, que promoveu protestos semelhantes contra a empresa em agosto passado na cidade de Millau, na França. Ele estava sorrindo de orelha a orelha. A seu lado, outro representante anticapitalista aparecia como uma assombração: o ex-líder estudantil de maio de 1968 em Paris, Daniel Cohn-Bendit. Com o pau comendo solto, o prefeito Paul Schell determinou o estado de emergência, o que lhe possibilitou a convocação da Guarda Nacional e a determinação do toque de recolher das 19 horas às 6 da manhã. O regime seria estendido até o fim de semana, um ato somente visto na cidade durante o pânico da invasão japonesa na Segunda Guerra Mundial.

A quinta-feira amanheceu com o centro da cidade isolado por cordões da polícia e da Guarda Nacional. Era como se um exército de Darth Vaders tivesse aterrissado na cidade. O presidente Bill Clinton chegou para seu discurso, mas foi logo avisando que era simpático aos manifestantes pacíficos. Antes de falar aos representantes da OMC, foi à associação de agricultores para dizer que estava a seu lado: o livre comércio é algo que poderia ser bom para todos e que o governo americano iria forçar a barra para que as decisões da organização internacional fossem feitas de modo mais claro e com a participação de grupos de interesses da sociedade civil. “Quando o establishment encampa as palavras de ordem dos manifestantes, é sinal que sentiu o baque. Acho que conseguimos uma grande vitória”, avaliava Carl Pope, diretor do Sierra Club. E Clinton ainda foi à imprensa dizer que iria determinar maior investida americana sobre a igualdade de condições de trabalho em âmbito internacional. É aí que o bicho pega: os trabalhadores do Primeiro Mundo condenam a exportação de empregos via globalização, enquanto seus governantes condenam o trabalho infantil em países como Paquistão, Índia e Brasil. Foi o suficiente para que a reunião melasse de vez. Sem qualquer avanço, como redução de subsídios agrícolas ou eliminação de barreiras comerciais, como pretendiam os negociadores brasileiros. O certo é que a OMC nunca mais será a mesma.