O Distrito Federal está voltando no tempo. Os espancamentos públicos promovidos pela Polícia Militar contra servidores que protestavam por melhores salários não têm paralelo nem no regime militar. Em 1984, o general Newton Cruz, então chefe da agência central do SNI, foi às ruas chicotear carros que buzinavam pela aprovação das Diretas-Já. Do alto de seu cavalo branco, Newtão era apenas uma figura patética se comparada com a selvageria do comando da PM que mandou atirar contra trabalhadores desarmados com munição de verdade. Aos 33 anos, José Ferreira da Silva trabalhava desde janeiro como jardineiro na Novacap, a empresa de urbanização do DF. Na mesma quinta-feira 2 em que sua mulher foi internada para operar a vista, José partiu para engrossar o protesto dos servidores, animado com a possibilidade de ter um aumento de salário de 37%. Foi seu último ato.

Pernambucano de Serra Talhada, José foi espancado com chutes no estômago e na cabeça. No corpo, três tiros. “Criei esse rapaz com todo o carinho. Não me conformo de vê-lo morto como um bicho”, desabafou Jurandir Ferreira, padrasto do brasileiro. Entre os 500 trabalhadores braçais que protestavam na porta da Novacap, 36 saíram feridos. Muitos dos atingidos se declararam eleitores do governador Joaquim Roriz (PMDB), que ganhou a eleição prometendo reajustar salários dos servidores. Há cinco anos, não há aumentos e o governo ainda pretende cortar 17 cláusulas sociais, como o auxílio-funeral. Cláudio César Gomes Cabral, 32 anos, carpinteiro e delegado sindical, perdeu o olho direito. Ele recebeu um tiro de borracha à queima-roupa de uma espingarda calibre 12. Caído e gritando de dor, Cláudio foi atingido por vá-rios tiros nas costas por um policial. O motorista Jesus Ferreira Machado, 26 anos, também perdeu uma vista.

Nada justifica a violência. O protesto era pacífico, embora os manifestantes impedissem a entrada das autoridades e dos veículos à sede da empresa. A barbárie foi assistida por dois integrantes do primeiro escalão de Roriz: o secretário de Segurança Pública, Paulo Castello Branco, e o secretário de Obras, Tadeu Fillipelli. “A polícia de Brasília não tolera pessoas infringindo a lei”, disse Castello Branco, quando ainda acreditava que ia continuar no cargo. Depois da repercussão do caso, ele foi demitido. Do alto de sua arrogância, o secretário classificou a repressão de serena e eficiente. Garantiu que o governador não só sabia de tudo como autorizou a ação.

Morador do Distrito Federal, o presidente Fernando Henrique Cardoso, através do porta-voz, criticou a violência oficial. “Não é possível que a polícia use balas que matam na repressão a manifestações.” No Congresso Nacional, os protestos de praxe. O enterro de José se transformou em mais um ato de protesto, apesar de esvaziado pela chuva. A polícia acompanhou de longe, desta vez sem perder o controle nem quando era vaiada. O que foi muito pouco para o grau de estupidez praticado na véspera.