É meio-dia na favela Fazenda Botafogo, amontoado de 800 barracos num terreno do metrô invadido em Acari, subúrbio do Rio de Janeiro, castigado pela violência. A aproximação de um helicóptero sacode o calor escaldante e levanta a terra vermelha do campinho de futebol. Do meio da multidão excitada, um morador evangélico identifica o ocupante da aeronave e grita, erguendo a mão espalmada: “A paz do Senhor!” Sob o olhar incrédulo dos favelados, o governador Anthony Garotinho sai do helicóptero e vai logo perguntando: “Quem é o líder deste lugar?” Para o desespero do piloto e de dois assessores, é conduzido entre ruelas malcheirosas à sede da associação de moradores. Meia hora depois, embarca rumo ao Palácio Laranjeiras com mais uma promessa a cumprir: iniciar, em janeiro, a construção de 800 apartamentos no local.

“A primeira coisa que eu vi foi uma AR-15, uma loucura”, lembra o piloto Antonio Maia, que custou a acreditar na ordem para interromper a viagem e descer na favela, sem segurança. O governador do Rio pode parecer maluco, mas não rasga voto. Em plena campanha para presidente a três anos do pleito, encerra 1999 como uma peça-chave de 2002. Pela pesquisa Ibope de setembro, 78% aprovam sua administração e 13% desaprovam. É muito para um eleitorado ácido como o do Rio, mas o marketing ajuda a explicar. “Meus antecessores não saíam do palácio. Sou itinerante, faço um governo-campanha”, vangloria-se, ao sobrevoar a mesma favela, uma semana depois. É sábado e ele retorna de uma viagem ao sul fluminense, onde subiu em palanques, inaugurou obras e presenteou prefeitos com cheques do governo. O dia começou, como sempre, com um programa ao vivo na Rádio Tupi, das 9h às 11h, onde teceu loas à sua administração e fez mais promessas de candidato, como eletrificar 100% das propriedades rurais. “O Garotinho está com obras em todos os municípios. Não tem um que não tenha pelo menos uma obrinha!”, anuncia o governador radialista.

“Se eu fico no palácio, só o prefeito fatura. Indo ao local, quem fatura sou eu”, explica Garotinho, 39 anos, numa animação juvenil que faz o helicóptero parecer arma de videogame. “Comandante, vamos ao Maracanã”, interrompe mais uma vez o percurso para deslizar nas entranhas do estádio. Checa a instalação de cadeiras nas arquibancadas, exigência da Fifa: “Vai ficar uma beleza.”

Garotinho tinha um motivo extra para encarnar o candidato a presidente no sábado em que prometeu mundos e fundos no interior, cercado de tantos prefeitos que um palanque chegou a afundar. Na véspera, sexta-feira 26, ele ouvira do líder do PMDB na Câmara, Geddel Vieira Lima, que o partido se interessa, e muito, por sua candidatura. “Fui claro com ele. Disse que desejo ser candidato em 2002. Ele respondeu que vê com simpatia e falava em nome de Michel Temer, Eliseu Padilha e outros”, conta Garotinho, acrescentando que Geddel admitiu apoiá-lo até no PDT. “Tive uma ótima impressão. Ele é direto, sem dissimulação e antenado, mas deixei claro que o PMDB terá candidato”, conserta Geddel.

Namorar o PMDB é prioridade para Garotinho. Caso o ex-governador Leonel Brizola, com quem vive às turras, o impeça de se lançar pelo PDT, não haveria legenda melhor do que o PMDB, visto por ele como uma federação de legendas regionais, carente de um líder que o leve à Presidência. A mudança só não pode ser antes das eleições para prefeito porque seus seguidores, em quase todas as cidades, são adversários do PMDB. Pisando em ovos, ele fustiga o comandante do PDT sem deixar a corda arrebentar e faz de tudo para manter o PT no governo. Acha que pode se impor à esquerda como o único capaz de atrair o centro. “Minha vontade de ser candidato cresceu depois de uma conversa recente com Lula. Ele me disse que não quer ser candidato e vi sinceridade em suas palavras. Se não for, abre a opção para um nome novo, que se mova da esquerda para o centro”, diz Garotinho.

Evangélico convertido na campanha eleitoral de 1994, o governador tem saído do Rio para pregar. A última viagem religiosa foi a Manaus, onde reuniu 30 mil pessoas. Garotinho já tem agenda cheia. Estão marcadas viagens para Belo Horizonte, São Luís, Recife, São Paulo, Campo Grande e Goiânia. A imagem de pai dedicado, que não fuma, não bebe e vai ao culto todos os domingos, cai como uma luva, na avaliação de seus marketeiros, num eleitorado que buscará um nome novo, mas equilibrado. Salmos, versículos e sermões, muitos sermões, o acompanham por todo lado, sempre com a Bíblia a tiracolo, comparando-se a personagens bíblicos e dando “graças ao Criador”. Antes de dormir, só troca o livro sagrado por biografias, como as de Abraham Lincoln e John Kennedy, que “elevaram a auto-estima dos americanos”.

Guardadas todas e mais algumas proporções, Garotinho e a primeira-dama, Rosinha, 36 anos, agem como John e Jacqueline Kennedy na Casa Branca. O suntuoso Laranjeiras está aberto desde janeiro ao voy-eu-rismo popular, curioso pela movimentação dos nove filhos entre os cristais e porcelanas seculares. São quatro filhos naturais, quatro agregados e um adotado – David, de sete meses. É comum os filhos interromperem despachos com autoridades como o presidente do Banco Mundial, Enrique Iglesias. Num jantar para a rainha da Dinamarca, Margrethe II, as crianças riam, nos corredores, do prendedor em forma de borboleta que ornamentava a nobre cabeleira. No meio da cerimônia, o pequeno Anthony, nove anos, fez da sacada um sinal de positivo para a soberana, que se encantou e subiu para conhecê-lo. Aos domingos, a família unida troca o palácio pelo culto na austera Igreja Presbiteriana Luz do Mundo, na beira da favela Pereirão, em Laranjeiras.

“Garotinho já é o maior líder evangélico do País. Terá 100% dos nossos votos”, exagera o deputado Francisco Silva (PPB-RJ), que financia as viagens do pregador. Dono da rádio Melodia FM, no ano passado Silva apresentou Garotinho a multidões em show-mícios gospel, ocasiões em que o pedetista, em tom messiânico, se comparava a Davi contra Golias. Golias, no caso, era o ex-prefeito Cesar Maia, hoje no PTB. “Há evangélicos escandalizados com o uso político da Bíblia. É uma volta à Idade Média”, diz Cesar, acusando o governador de trocar o gabinete de trabalho por viagens de campanha. O fato é que Garotinho precisa gastar muita sola de sapato para substituir Ciro Gomes (PPS) ou Lula como o candidato da oposição. O governador do Rio estreou em novembro numa pesquisa em que o Vox Populi mediu a força dos presidenciáveis de 2002. Apareceu em quinto lugar, com 4%, bem atrás de Lula (23%) e Ciro (20%).

Base de igrejas – A cientista política Lucia Hippolito acha que a propulsão de Garotinho na corrida de 2002 será exatamente a “gigantesca e subterrânea rede de igrejas evangélicas em rincões onde partidos, principalmente de esquerda, não chegam”. Estima-se que os evangélicos representem 20% do eleitorado. Metade disso já seria uma base considerável para empurrar um candidato para o segundo turno. “Ele tem muita chance. Depende muito menos de estrutura partidária do que Ciro Gomes”, diz Lucia. Ela ressalta que Garotinho tem “mostrado mais discurso do que ação”, mas conquistou a opinião pública como governante firme ao repelir parte do PT e enfrentar Brizola de igual para igual. Outro cientista político, Renato Lessa, duvida que Garotinho abandone a esquerda para aventurar-se num partido de raposas do porte de José Sarney e Jader Barbalho. Ele destaca o empenho do governador na questão da segurança, mas o adverte: a partir de 2000, a popularidade será proporcional a ações administrativas concretas.

Boquinha – Pragmático assumido, Garotinho confunde quem tenta decifrá-lo com lentes ideológicas. Eleito pela aliança PDT-PT-PSB-PCdoB, brigou com Brizola, ganhou apoio de Lula ao chamar o PT de “partido da boquinha”, vive num enigmático morde-e-assopra com Fernando Henrique, é criticado pela CUT e apoiado por empresários. Para Joel Korn, diretor da Câmara Americana de Comércio do Rio, ele não terá dificuldade para financiar sua campanha. “Ser do PDT não significa ter posições como as de Brizola. Ele é equilibrado e tem nosso respaldo, da Federação das Indústrias (Firjan) à Associação Comercial”, diz o empresário. Na outra ponta da chamada luta de classes, o sucesso não é grande. O presidente da CUT no Rio, Alcebíades Teixeira, acha que Garotinho “é devoto de Fernando Henrique e não aproveita as experiências da esquerda”. Teixeira acusa o governador de mentir muito para quem é evangélico. “Ele anunciou cinco vezes que estava saldando dívidas com o funcionalismo, mas, no contracheque, nada.”

Garotinho reage repetindo sem parar que foi “eleito para governar, não para fazer oposição”. E vai listando números de dar inveja aos colegas atolados em dívidas. Diz que terminará o ano concluindo os 400 quilômetros que prometeu pavimentar até 2002, reformou 47 escolas, subiu o salário dos médicos de R$ 400 para R$ 1.500 e distribui cheques de R$ 100 mensais para 25 mil famílias comprarem alimentos. Já mandou metade de presos de delegacias para casas de custódia e vai transferir o restante no próximo ano. Iniciou a expansão do metrô e criou um fundo de previdência com R$ 5 bilhões, reduzindo o déficit mensal em R$ 100 milhões, que irão para projetos sociais – muitos dirigidos pela primeira-dama, Rosinha – e para as polícias que quer unificar, expulsando os corruptos.

Um dos setores mais bem aquinhoados é o de habitação, entregue a Eduardo Cunha, que presidiu a Telerj no governo Fernando Collor e hoje representa Francisco Silva, do PPB, na presidência da Cehab. Cunha calcula que terá nas mãos R$ 400 milhões em quatro anos para construir 100 mil casas. O problema é que, até agora, só seis mil estão garantidas. Contraste semelhante entre meta e realidade ocorre no projeto Delegacia Legal. A meta é reformar 131 delegacias, mas só três estão prontas e outras cinco entraram em obras.

Factóide – Cesar Maia – que introduziu no politiquês a expressão factóide para designar atos que conquistam mídia sem necessariamente virarem realidade – diz que o hábil marketing de Garotinho tem vida curta. “Ele mente muito. Recapeia alguns metros e anuncia na tevê que pavimentou 400 quilômetros. Troca uma torneira e diz que reformou uma escola. A imprensa não vai repetir o erro da época de Fernando Collor, quando engoliu propaganda sem conferir o que acontecia em Alagoas”, fuzila. O deputado estadual petista Hélio Luz faz coro. “É um fracasso só na área de segurança, e sua polícia protege o Estado, não o cidadão.” Luz se juntou ao líder do PDT, Paulo Ramos, para denunciar irregularidades em obras de reforma em delegacias.

O gol de placa de Garotinho foi convencer a União a aceitar como pagamento da dívida do Rio os futuros royalties de petróleo. A idéia foi tirada do colete numa reunião com o ministro Pedro Malan em julho. “De repente, ele disse que poderia usar uma riqueza futura. Nem nós sabíamos da idéia”, recorda o economista Ranulfo Vidigal, chefe da Agência Reguladora de Serviços Públicos (Asep) e um dos integrantes da “República de Campos”, grupo de amigos que Garotinho escalou na cidade natal, que governou duas vezes.

Ranulfo integra o time de estrategistas que formula um conjunto de teses para projetar Garotinho como estadista das mudanças nacionais. “Ele precisa se debruçar mais nas grandes questões porque o Brasil terá peso mundial”, diz. A tese a ser lançada parte da premissa de que as reformas de Getúlio Vargas, divindade no PDT, já não beneficiam a maioria dos trabalhadores, sem carteira assinada ou sindicalização. Um pacto nacional deve ampliar investimentos e empregos. O que levaria o empresariado a integrá-lo? “Eles ganhariam o financiamento que o BNDES hoje dá para multinacionais comprarem nossas estatais”, receita o governador-candidato, intercalando afirmações otimistas como esta com citações bíblicas. A mais usada é uma frase simples de Jesus: “Tudo é possível para aquele que crê.”

À espera do trem

Na manhã de terça-feira 30, o governador Anthony Garotinho recebeu ISTOÉ no Palácio Laranjeiras. Pela primeira vez assumiu publicamente que já é candidato a presidente. Ele quer o apoio do PT e diz que não adiará o projeto para 2006 para não perder “o trem da História”.

ISTOÉ– O sr. espera apoio do PT para se candidatar?
Anthony Garotinho – Por que não? Já apoiei Lula duas vezes e o PT está no meu governo. Pode testemunhar para o Brasil a revolução que venho fazendo na administração no Rio.

ISTOÉ – Não seria mais conveniente em 2006?
Garotinho – É muito melhor disputar uma eleição quando há um vazio de lideranças, como agora, do que correr o risco de outras lideranças se firmarem e você perder o trem da História.

ISTOÉ – Os últimos governadores do Rio foram derrubados pela criminalidade, o sr. não teme ter cometido haraquiri ao concentrar seu discurso na segurança?
Garotinho – Ninguém investiu tanto em segurança. No governo passado, foram R$ 20 milhões. Investiremos R$ 240 milhões para combater a criminalidade no Estado do Rio.

ISTOÉ – De onde sai tanto dinheiro?
Garotinho – É só não roubar.

ISTOÉ – Sua candidatura terá cores revolucionárias ou conservadoras?
Garotinho – Será transformadora, aproveitará o que há de bom no governo Fernando Henrique Cardoso, a estabilidade, e fará o País crescer. Não há outro caminho. Venderam ao presidente a mentira de que crescimento e salário causam inflação. O Brasil sempre teve salário baixo e inflação alta. Os Estados Unidos não param de crescer sem inflação.

ISTOÉ – Se o sr. tivesse uma bala só, atiraria na inflação ou na recessão?
Garotinho – Na recessão. Até porque a inflação já levou um tiro.

ISTOÉ – Quando o sr. tinha 21 anos, o governo Brizola patrocinou seu programa de rádio e o elegeu deputado. Entregou-lhe o PDT para se eleger prefeito duas vezes. Em 1998, garantiu o apoio do PT à sua candidatura. Ele não tem motivo para se sentir traído?
Garotinho – Divergir não é trair. Ser leal não é ser submisso. Brizola tem me provocado para brigar, mas não vou entrar no jogo. Fui eleito para trabalhar, não para brigar.