O presidente da Anfavea, José Carlos Pinheiro Neto, diz que o Mercosul é irreversível e garante que o programa da renovação de frota vinga em 2000

Felizmente os automóveis produzidos no Brasil possuem muito mais tecnologia do que no passado. Do contrário, seria difícil para José Carlos Pinheiro Neto, presidente da Anfavea (a associação das montadoras instaladas no País), aguentar tantos solavancos do mercado, freadas nas negociações do Mercosul e guinadas nos acordos com os trabalhadores. As últimas manobras que teve de enfrentar foram provocadas pelas campanhas presidenciais argentinas, que praticamente travaram as tratativas para a renovação do acordo automotivo com o Brasil. Resultado: nada pôde ser decidido até a confirmação da vitória de De la Rúa, o que pode provocar uma extensão emergencial do atual acerto por mais três meses até que os diplomatas dos dois países possam, enfim, se reunir e firmar um novo documento com as regras de comércio para o setor até 2003. Negociar, negociar, negociar. Esta parece ser a essência do trabalho de Pinheiro Neto, executivo de carreira da GM, que hoje se debruça em discutir fórmulas com governo, trabalhadores, concessionárias e fabricantes de autopeças para evitar que a indústria automobilística seja muito afetada pela crise econômica. Depois que o mercado brasileiro despencou de dois milhões de carros vendidos em 1997 para 1,5 milhão em 1998, esperava-se o pior para este ano. Alguns especialistas falavam em apenas 800 mil unidades. Com os acordos emergenciais, a indústria vai completar 1999 com 1,4 milhão de carros vendidos. “Tudo graças à negociação, que é a grande regra do mundo atual”, explica Pinheiro Neto, que aposta no programa de renovação da frota como combustível para as vendas das montadoras no ano 2000.

ISTOÉ – Por que a renovação do acordo automotivo do Mercosul está tão difícil de sair?
Pinheiro Neto

O meu pai dizia que, em casa que não tem pão, todo mundo grita e ninguém tem razão. Ambos os mercados sofreram uma queda neste ano e passaram a valorizar mais todas as suas possibilidades de vendas. Diante desse cenário, o lado brasileiro adotou uma postura extremamente flexível para concluir o acordo, já que com a mudança de câmbio o produto brasileiro ficou mais competitivo. É bom que se diga que o chamado “regime automotivo” é uma exceção ao Mercosul, que ainda não passa de um acordo aduaneiro. Se não for concluída esta renegociação até 31 de dezembro, a rigor não há Mercosul para a área automotiva. Portanto, comercializar carros na região seria como exportar para Estados Unidos ou Itália. O imposto pago seria cerca de 35%, e fim de papo.

ISTOÉ – Como esta falta de solução chegou até aqui?
Pinheiro Neto

Eu tenho dito que nós precisamos estabelecer um processo de discussão continuada de nossas divergências. E recentemente o ministro Lampréia (Luiz Felipe Lampréia, das Relações Exteriores) me informou do interesse claro do Brasil de participar de um sistema chamado “solução de controvérsias”, que é uma comissão permanente para se discutir essas divergências. É uma pretensão divina dizer que quando este acordo for assinado estará tudo resolvido. Mas não se pode negociar o Mercosul e ficar assim aos soluços, com avanços e retrocessos. Portanto, se houver problema nos carros, nos calçados ou nos tecidos, continua-se o comércio e leva-se o problema para esta área de solução de controvérsias. Na verdade, já há a OMC (Organização Mundial de Comércio) para isso, mas é extrapolar a questão, porque a OMC tem suas regras, prioridades e cronograma. É melhor ter uma “mini” OMC para o Mercosul, que agilizaria o processo.

ISTOÉ – Qual o futuro do mercado automobilístico no Mercosul?
Pinheiro Neto

A área automotiva do Mercosul é irreversível. As empresas investiram US$ 26 bilhões entre 1996 e 2000, considerando o Mercosul, não só o Brasil ou a Argentina. Em 2001, a região terá capacidade de produzir 3,7 milhões de carros. Nas negociações atuais, o Brasil adotou uma postura extremamente flexível. Aceitamos, por exemplo, estabelecer nos carros um índice de peças fabricadas por produtores instalados na Argentina. Recentemente nos acordos emergenciais brasileiros, que reduziram impostos, não houve nenhuma discriminação ao carro argentino. Tudo porque o Brasil é o grande consumidor do Mercosul. Por isso fomos surpreendidos com esta decisão da oposição argentina de criar um desconto para uma nova categoria de veículos com motores de baixa contaminação, desde que produzidos lá. Protestamos, já que não se pode beneficiar um produto por sua origem dentro do Mercosul. Afinal, ou você assume o Mercosul, ou pára de brincar.

ISTOÉ – O que estaria por trás desta prática argentina de constantemente colocar pedras no caminho do avanço do Mercosul?
Pinheiro Neto

São os chamados jogos da negociação. Estamos em um momento onde todo mundo decidiu exportar. E o mesmo “todo mundo” decidiu não importar. Apesar disso, exportamos em 1998 US$ 4,7 bilhões e este ano, em meio a toda esta competição, mais US$ 3,5 bilhões. Há dois anos, a Anfavea foi conhecer a OMC para ver que bicho-papão é esse. Para nossa surpresa, vimos que é um clube no qual os países asso-ciados concordam em seguir certas normas de comercialização de produtos no mundo. É muito formal, mas tudo acaba em negociação, que no fim das contas é a grande regra do mundo de hoje.

ISTOÉ – O que falta para o Brasil ampliar suas exportações?
Pinheiro Neto

De imediato, nós estamos propondo a celebração de acordos bilaterais com Chile, Venezuela, México e África do Sul, países nos quais a maioria das montadoras instaladas aqui também tem representação. Feito um acordo bilateral com o Chile, por exemplo, no dia seguinte nós temos condições de exportar e importar de lá. Seria muito fácil. Estamos trabalhando em parceria com o governo brasileiro para isso.

ISTOÉ – A indústria automotiva fazia muito lobby até o início da década, hoje essa estratégia não tem mais espaço?
Pinheiro Neto

Esse trabalho do lob-by individual, de você apresentar as suas razões para o convencimento das pessoas que decidem, hoje é folclore. Se aconteceu tanto no passado, eu até já nem sei mais. Agora o que nos resta é um trabalho de lobby, todavia, em conjunto. Estamos dando exemplo disso desde as câmaras setoriais. Em 1999, nós fechamos três acordos emergenciais, agora quem é que participou destas negociações? Montadoras, fornecedores, concessionários, duas grandes vertentes sindicais (CUT e Força Sindical) e o governo. Imagine a dificuldade de se achar um ponto comum. Não existe o bom para todo mundo o tempo todo. Há o bom para alguns por algum tempo. O próprio governo não concede nada. A primeira pergunta que eu ouso é: “E o nível de arrecadação como fica?”

ISTOÉ – E os cofres públicos lucraram com esses acordos?
Pinheiro Neto

Se você imaginar que, sem os acordos, as previsões de vendas para este ano no Brasil eram de apenas 800 mil carros e nós vamos chegar a dezembro com um mercado de 1,4 milhão de unidades, não tenho dúvida de que o governo ganhou.

ISTOÉ – Como se pretende movimentar este mercado em 2000?
Pinheiro Neto

O grande projeto é o Programa de Renovação de Frota, que deve começar no primeiro trimestre de 2000. Num primeiro momento, carros acima de 15 anos terão um benefício na troca por um zero-quilômetro. O bônus, que ainda está sendo negociado, seria de R$ 1,8 mil para modelos a gasolina, na seguinte composição: R$ 600 saem das montadoras e concessionários, R$ 700 do governo federal e R$ 500 do Estado de São Paulo, ambos em descontos de impostos. Um processo que deverá ter a adesão dos demais Estados. As montadoras ainda vão assumir a reciclagem, pegar a sucata e encaminhar às empresas recicladoras, que terão rígidos parâmetros ambientais a respeitar. Prevê-se um acréscimo de 200 mil a 300 mil unidades por ano. Há ainda algumas discussões, mas a Anfavea está absolutamente flexível. Temos de parar com as discussões eternas e etéreas e passar a agir.

ISTOÉ – Os governadores de oposição não podem emperrar a expansão do projeto?
Pinheiro Neto

Acredito que não porque estamos vendo o benefício do consumidor e da comunidade. Estamos falando da retirada de circulação de um carro indesejado, de segurança, da criação de uma atividade industrial, de manutenção e ampliação de emprego… Esse negócio da renovação de frota é um boi de filé mignon. É um bom negócio para todo mundo.

ISTOÉ – O sr. não teme que os aumentos salariais concedidos pelas montadoras possam alimentar a inflação?
Pinheiro Neto

Muito pelo contrário. Primeiro, eles estão representando um período de dois anos. Não houve dissídio coletivo no ano passado. Nós não estamos em momento algum falando de qualquer indexação, mas sim de instrumentos como participação nos resultados, bancos de horas, jornada de trabalho, programa de demissões voluntárias. Essas negociações são verdadeiros tratados trabalhistas. Não acredito e não desejo que possamos liderar qualquer movimentação inflacionária.

ISTOÉ – Mas está fora de questão o contrato nacional de trabalho, certo?
Pinheiro Neto

Não tem sentido você cartelizar o salário no Brasil, extrapolar para o resto do País o custo do ABC. Não é dessa forma que se ganha competitividade. Numa economia global, nós estaríamos exatamente na contramão das nossas necessidades. Fazendo isso, daría-mos todos um tiro no pé. Não é assim que se acaba com a guerra fiscal. Primeiro, porque não acho que ela seja tão má. Os resultados provados não são esses. Segundo, porque esta não é a forma de eliminá-la. Para acabar com a doença, você está matando o doente.

ISTOÉ – Quais as vantagens da chamada “guerra fiscal”?
Pinheiro Neto

Vamos ser bastante francos. Suponha uma fazenda num Estado que tem vocação agrícola. Se não acontecer nada naquele local, teremos lá uma fazenda. Se este Estado incentivar o investimento lá com uma carência para o pagamento de impostos, em dez anos, no lugar da fazenda, haverá uma fonte de renda para o Estado. Antes disso, aquela empresa gerou riqueza, emprego, etc. É fácil ver o resultado. Vão até Betim, em Minas Gerais, ou vão agora a São José dos Pinhais, no Paraná. Houve realmente uma regionalização dos investimentos promovida e estimulada pelo governo federal. Concessão de incentivos não é privilégio do Brasil. Uma das regiões que mais fazem isso é o Estado de Nova York.

ISTOÉ – As mudanças no IPI dos carros beneficiaram as montadoras?
Pinheiro Neto

Sem dúvida. Fizemos nossa minirreforma tributária: temos hoje basicamente duas alíquotas, contra as 13 de antes. E caminhamos para uma única. Os impostos representam ao todo hoje cerca de 30% do preço do veículo, contra os 38% de antes. Mas o Brasil ainda é o País que mais cobra tributos na compra de um automóvel.

ISTOÉ – Sobre o sindicalismo, como o sr. define o Vicentinho de hoje?
Pinheiro Neto

Mudaram as circunstâncias e o Vicentinho mudou. Ele é inteligente e se adaptou aos novos tempos. Também os discursos do Paulinho, da Força Sindical, e do Luiz Marinho, dos metalúrgicos do ABC, são completamente globalizados. Apesar dos conflitos que possam haver entre nós, as conversas agregam, acrescentam algo. Eles sabem o que está acontecendo lá fora. Claro que ainda se encontram áreas extremamente radicais no sindicalismo, mas acho que elas serão naturalmente esvaziadas. Os sindicalistas mudaram, mas os empregadores também. Caso contrário, seríamos atropelados pelas circunstâncias. A relação pessoal também é muito boa. Com muitos deles converso todas as semanas e o exemplo emblemático disso é que o Paulinho e o Marinho foram ao casamento da minha filha, em outubro.
 

ISTOÉ – Fusões e aquisições geralmente significam corte de pes-soal em todo o mundo. Quais serão os efeitos desse fenômeno?
Pinheiro Neto

Olha, eu sei que as montadoras não são campeãs em nível de emprego, mas a verdade é que oferecem os melhores empregos da indústria. As fusões nascem a partir da necessidade de complementação de interesses. Para se conquistar mais mercado num país ou adquirir um novo produto. E tudo isso visa a reduzir custos para se tornar mais competitivo. Não se pensa mais em fábricas de 12 mil ou 15 mil empregados. Hoje, uma megafábrica tem quatro mil trabalhadores.

ISTOÉ – A indústria hoje não produz cada vez mais carros para um mercado que não tem tanta demanda?
Pinheiro Neto

Nos Estados Unidos, a relação atual é de um carro para cada habitante. No Brasil, a relação é de nove pessoas para cada automóvel e, na Argentina, de cinco habitantes por carro. Portanto, só para se igualar aos argentinos, o País deveria dobrar sua atual frota de 20 milhões de veículos. O nosso mercado é de jovens sedentos por carros. É claro que os grandes centros urbanos têm graves problemas de congestionamentos, mas isso não ocorre nas cidades a apenas uma hora deles. De maneira que a população brasileira terá de se espalhar. As montadoras, sem dúvida, são responsáveis pelas soluções para evitar os grandes congestionamentos.