Com apenas um pouco de esforço imaginativo, um observador neutro seria capaz de ouvir buzinas de navios, no nevoeiro em plena sala de conferência da Pax Party House, em Amsterdã, na Holanda. O fog no recinto, porém, é tão intenso que fica evidente a sua artificialidade. Nem mesmo Londres dos velhos tempos de poluição no rio Tâmisa ou San Francisco numa manhã de verão seriam capazes de produzir tal fenômeno. O que é mais significativo: esta turvação atmosférica tem um hiperacentuado odor de mato queimado. É… maconha! E maconha da melhor qualidade. Aperte o cinto, Dr. Spock, estamos entrando na Nebulosa Cannabis. Ali é o exato epicentro da 12ª edição anual da Cannabis Cup – a Copa do Mundo da Maconha, que de 22 a 25 de novembro escolheu o melhor fumo do planeta.

O caneco, na verdade, não é lá estas coisas. Trata-se de uma peça de latão: uma cuia é sustentada por duas folhas de cannabis, cujos caules servem de coluna, que está plantada sobre mais folhas em alto-relevo, tendo uma base de madeira. Mas o prestígio que o troféu confere é semelhante, por exemplo, à Taça da Fifa. Só que neste caso não se joga sobre a grama: fumam-na.

Em meio à fumaça do Forum Room – o salão principal de um prédio de três andares de exposições – é possível se vislumbrar a silhueta de umas 400 pessoas. Num dos cantos está uma mocinha loira, baixota, com cabelo rastafári moldado como se fosse o ninho de uma cegonha. A seu lado está uma criança de uns três anos. São mãe e filha. A mais velha devora um brownie de haxixe e a garota come batatinhas fritas. É de se admirar que a pequerrucha ainda esteja acordada. Pensando bem, é um milagre que qualquer pessoa esteja acordada. O fumacê seria capaz de abater um rebanho de parrudas vacas holandesas.

No palco, Kyle Kushman, dono da mitológica rede de CoffeeShops Green House e um dos maiores plantadores de cannabis do mundo, conduz um seminário sobre suas técnicas de cultivo. Num quadro, ele lista os componentes importantes para uma boa safra. Luz, ventilação, solo, nutrientes, sementes, além de conhecimentos de genética… “Se você não entende de genética, volte para a escola!”, diz com ares de professor de Biologia. “Ou então compre a coleção Genética e Cannabis, de nossa editora”, sentencia. Alguns anotam a recomendação, entre uma baforada e outra nos baseados que foram distribuídos para a degustação da classe.

Na rua Ferdinand Bolstraat, no quarteirão entre os edifícios 180 e 194, o cheiro de maconha aumenta de acordo com o crescimento dos números. No 190, por exemplo, o odor é marcante. Trata-se do endereço da delegacia de polícia do bairro, e fica exatamente ao lado da Pax Party House. Policiais entram e saem do recinto como se nada tivessem a ver com os milhares de maconheiros e suas atividades no prédio vizinho. E, de fato, os tiras não têm rigorosamente nada a ver com a turma do jererê, já que na Holanda a cannabis não é uma questão de polícia, mas do Ministério de Saúde Pública.

Legalização – Há, por toda a Europa – assim como em sete Estados americanos – movimentos legislativos fortes para a legalização da erva, pelo menos para uso médico. “O exemplo holandês é visto como passível de cópia”, diz o mitológico Sephen Gaskin. Ele ganhou fama ao liderar uma caravana de centenas de hip-pies que saíram no final da década de 60 de San Francisco para montar no Tennessee, a maior comuna hippie que se tem notícia nos EUA. Aos 64 anos, ele lançou agora sua candidatura à Casa Branca. Sua plataforma é a da liberalização da maconha. “Quando começamos a cruzada, as pessoas ficaram assustadas. Hoje em dia, todo mundo já considera uma reivindicação normal. Numa pesquisa recente, 70% dos médicos americanos disseram que receita-ri-am a cannabis a seus pacientes cancerosos caso ela fosse legalizada”, diz Gaskin.

Por estas e outras, o cheiro de maconha faz parte do cotidiano daqueles que trafegam pelas ruas de Amsterdã. Afinal, a cidade conta com uma rede de cerca de 350 coffeeshops – os barzinhos licenciados para a venda da cannabis. O primeiro desses estabelecimentos abriu as portas em 1972. Hoje fuma-se em quase todas as partes. “Mas os holandeses mesmos são muito ignorantes a respeito da maconha. Por isso abrimos a Faculdade da Cannabis. Para informar o público”, diz a recepcionista da Cannabis College, no coração da cidade. Apenas 5% dos habitantes do país fumam maconha. Por isso, não é de se espantar que os participantes da Cannabis Cup sejam na maioria estrangeiros.

Há 12 anos os editores da revista High Times – a bíblia das drogas entre as publicações americanas – resolveram se juntar com a crescente indústria da cannabis na Holanda e promover um festival. “As primeiras copas eram restritas a plantadores”, diz Steven Hager, editor chefe da High Times. “Na edição inaugural, o evento contava com apenas 40 pessoas. Depois este número foi crescendo, até decidirmos abrir para o público em geral em 1995. Foi só então que conseguimos ter lucros. Até 1995 a copa dava prejuízo”, diz. Desde então, o número de adesões vem aumentando. Neste ano a participação atingiu recordes: 1.500 inscritos, sendo 80% de americanos. As cifras amealhadas são segredo de Estado: “Este é um tema que mantemos em sigilo”, diz Gabe Moses, 38 anos, o porta-voz da Cannabis Cup, jornalista da High Times e baterista de um dos conjuntos que abrilhantam as noites de rockonha, celebrada no famoso centro cultural Melkweg.

Mas se o dinheiro está depositado em cofre fechado, pelo menos é possível se calcular os lucros. Os americanos inscritos, por exemplo, compraram pacotes turísticos na agência nova-iorquina 420 Tours (ligada à revista). Cada um pagou US$ 200, o que lhes deu direito ao crachá para a entrada nos cinco dias e noites da copa, a um périplo por 16 coffeeshops concorrentes à premiação, a vários gramas (ou até quilos) de erva para degustação e mais o título de “juiz” da competição. Na quarta-feira 24, todos depositariam seus votos em urnas, mais ou menos invioláveis. Somente em ingressos, os organizadores faturaram cerca de US$ 300 mil. Somem-se a isso as passagens aéreas, a hospedagem e as taxas de inscrição dos 50 expositores e 16 coffee-shops e tem-se uma mina de ouro.

O sucesso do plantio das várias espécies de cannabis é medido em bilhões de dólares. A Drug Enforcement Agency (DEA, a agência governamental americana de combate às drogas) estima que somente nos EUA a maconha movimente atualmente cerca de US$ 32 bilhões. Se estes números estiverem corretos, as cannabis seriam o principal produto agrícola americano neste final de milênio. O segundo colocado seria o milho, com meros US$ 14 bilhões de faturamento anual. “A cultura maconheira é responsável por cifras muito maiores, por exemplo, do que o mercado superbadalado do comércio via Internet. Nós faturamos com esta planta mais do que todos os sites de vendas eletrônicas”, lembra Hager. E ele sabe o que diz, já que vem escudado nos números obtidos com sua própria publicação: a revista vende 200 mil exemplares mensais.

E não são apenas os americanos que gostam de pitar. O prédio da Pax Party House parece uma Torre de Babel. Na manhã de terça-feira 23 sai pela porta principal um tipo caucasiano, cerca de 1,80m, totalmente vestido de sherpa nepalês. Ainda está envolto por fumaça quando ganha a rua. (Alguém precisa escrever um tratado explicando por que maconheiros gostam tanto de gorros.) Desce do terceiro andar para ajudar um amigo expositor, que chega numa perua Mercedes – do ano – carregada com roupas feitas de hemp (a espécie de cânhamo desprovida de composto psicoativo – uma falsa maconha). Lá dentro, no primeiro andar, um japonês vestindo quimono, também confeccionado com hemp, pacientemente poda um bonsai de cannabis indica (a prima mais poderosa da sativa), que enfeita um pequeno jardim zen. Este monge do barato é Kotono (nome de guerra), 32 anos, da cidade de Kioto. “Meu propósito é apenas expor meus produtos e remeter os compradores para o site que divido com meu amigo italiano fabricante de cachimbo”, diz. Não muito distante está a barraca da Paradise Seeds, um dos mais respeitados fornecedores de sementes e cachos de ervas para fumar, com nomes como “Sensi Star”, “Dutch Dragon ou “Sheherazade”. O barraqueiro, com olheiras dignas de um Omar Sharif, está paramentado da cabeça aos pés com roupa de guerreiro árabe: um tuaregue da fumaça.

PMS – Camila é uma americana filha de um militar que serviu em vários países da Europa. Seu filho, um mulatinho de pouco mais de um ano, fica preso às costas da mãe. Pelas manhãs, o garoto enfrenta a fumaceira da Pax Party House e segue até a madrugada seguinte nas festas da Melkweg. Camila, com pupilas dilatadas com circunferências das dimensões de pires, carrega o bebê como se fosse sua mochila. “Acho que no último dia vou arranjar uma baby-sitter para ele. As pessoas ficam me olhando muito”, diz. Ela é grisalha apesar de não ter muito mais de 30 anos. “Quando morei na Suíça, abusei muito da bebida. Hoje só consumo coisas naturais, como esta cannabis indica e o haxixe da marca PMS, que estou fabricando”, diz enrolando um baseado com seu produto. “Meu PMS (nome tirado da sigla em inglês para a Síndrome Pré-Menstrual) é tão forte que ninguém consegue fumá-lo. Acho que vamos ter de diminuir a dosagem”, calcula. O moleque às suas costas agradeceria, se pudesse falar.

Túnel do tempo – Na última noite, juízes e expositores estão para lá de Marrakesh. O Melkweg é uma enorme balsa ancorada e tem uma decoração tão psicodélica que acaba por transformar o lugar numa máquina do tempo. No andar térreo estão dois salões de danças. Num deles está montado o palco onde serão anunciados os resultados da Copa 99. No outro, o faquir “Crazy White Sean” faz das suas. Primeiro ele grampeia uns pedaços de papel na testa. Usa para isso um grampeador de escritório. O público, com a calma dos bovinos, nem liga para o esforço. O faquir, porém, preparou um grand finale: abaixa a calça, expõe sua genitália, agarra um martelo e prega um cravo de trilho nas pró-prias partes. “Uuuiiii!!!”, gemem os homens, cruzando as pernas. Em seguida, amarra uma corda no cravo e chama ao palco uma paraplégica numa cadeira de rodas elétrica. E exige ser arrastado. Seu desejo é cumprido. “Uuuuuiiiii!”, ouve-se o grito unissex.

O desconforto desta bad trip só termina quando, no palco do outro lado, começam a ser anunciados os vencedores. A confusão é tanta que poucos sabem quem ganhou. Na categoria de Coffeeshop-produtor, uma das mais importantes, não deu outra: Green House faturou outra vez. A casa já arrematou mais de 20 copas nos últimos 12 anos. Mas na categoria de melhor cannabis do mundo – o prêmio mais cobiçado – quem ganhou a Sativa Cup foi a Sensi Seed, com sua erva Jack Herer. Trata-se de uma planta que leva de 50 a 70 dias para floração, atinge entre 150 e 180 cm de altura, produz até 125 gramas por pé, custa 250 florins (cerca de R$ 250) e tem espantosos 12% de THC, o principal composto psicoativo da maconha. Foram precisos quase 20 anos para se chegar a esta mutação, que é uma das mais fortes variedades de cannabis sativa conhecidas no universo. Levou o caneco.