Com seu estilo vibrante, o jornalista Eduardo Bueno sacode a poeira dos livros de história do Brasil, é adotado em muitas escolas e vira best seller

mais inesperado historiador do Brasil chama-se Eduardo Bueno. O jornalista gaúcho, 40 anos, mais conhecido como "Peninha", encontrou um novo filão, que mescla minúcias do Brasil colonial com um delicioso clima aventuresco. Revela, entre outros detalhes, como era a vida e o que faziam os tripulantes das caravelas portuguesas ao desbravar o Oceano Atlântico para descobrir as Américas. É certamente o trabalho mais interessante já editado com relação aos 500 anos do descobrimento. Não por acaso, ele se tornou um fenômeno editorial, estourou no mercado com os dois primeiros volumes da coleção Terra Brasilis, lançada no segundo semestre de 1998 pela editora Objetiva. A viagem do descobrimento já vendeu 108 mil exemplares e Náufragos e degredados, 50 mil. É espantoso, por se tratar de um tema tão pouco consumido no Brasil, mas sobretudo pela biografia do autor.

Bueno começou na profissão aos 17 anos como repórter do jornal gaúcho Zero Hora. Foi aí que nasceu o famigerado Peninha, inspirado no repórter homônimo, do jornal Patada, dos quadrinhos da Disney. Ao longo da vida, Peninha exerceu os papéis mais diversos. Foi tradutor de Pé na estrada (On the road), do mitológico Jack Kerouac, um dos maiores expoentes do movimento beatnik. Não apenas mergulhou de cabeça na filosofia beat – com direito a virar vegetariano, morar no mato e viajar de ácido –, como se tornou um de seus maiores divulgadores no País. "Lá em Gramado eu plantava o alimento para o corpo e para a mente. Virei um hippie rural", diverte-se, com seu humor refinado, um usuário de maconha que deixou o hábito por absoluta falta de tempo.

Como beatnik que se preze, apaixonou-se por Bob Dylan, sobre quem ainda pretende escrever. Desembarcou no tema Brasil colonial graças a sua extraordinária biblioteca, de quatro mil volumes. Isso depois da bem-sucedida experiência de criar fascículos sobre o mesmo tema para os jornais Zero Hora e Folha de S.Paulo, que somaram 320 páginas. Pai de três filhas (Belém, 18 anos, Flora 15, Lizia, 2) e no terceiro casamento, Bueno ingressa no pequeno rol dos abastados pelo viés das letras. Uma façanha, por aqui.

ISTOÉ – Esperava tanto sucesso?
Eduardo Bueno

Não. Nem eu nem ninguém ligado ao projeto. Achava que havia interesse pela história colonial do Brasil, uma capitania hereditária sem donatários. O que existia até então era uma "revisão historiográfica", feita por jornalistas, como Fernando Moraes, sobre história contemporânea. Eu, que desde o fim da adolescência me interessava muito pelo tema, suspeitava que mais pessoas além de mim desconfiassem de que nessa névoa que envolve os primórdios do Brasil havia muita aventura e personagens intrigantes. Achava que pudesse vender pelo menos de 15 mil a 20 mil, um sucesso em termos de Brasil. Além disso, havia a esperança de que livros do gênero pudessem ser adotados nas escolas. Mas o estrondoso sucesso de 108 mil unidades vendidas de Viagem do descobrimento e 50 mil de Náufragos e degredados, com dois meses de lançamento, nem eu, a editora ou o mercado esperávamos.
 

ISTOÉ – Qual a maior mentira já ensinada pelos tradicionais livros de história do Brasil?
Eduardo Bueno

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Que a história do Brasil é mansa, pacífica e feita por grandes homens. Essa mentira dos livros escolares de primeiro grau teve um contraponto perverso em outra falácia, que são os livros adotados nos cursinhos. Neles, ninguém presta, a não ser os povos oprimidos. Na realidade existe um caminho do meio entre essas duas visões, que não é nem uma coisa nem outra. A história foi feita

ISTOÉ – Quem foi na sua opinião o maior herói do período colonial?
Eduardo Bueno

O maior herói foi Maurício de Nassau, o melhor administrador talvez de todos os tempos no Brasil, o que é em si um ato de bravura. Sua gestão durante o domínio holandês foi tão eficiente e generosa que gerou o mito historiográfico de que o Brasil holandês seria melhor que o português, o que não é verdade. Maurício, porém, era uma tendência minoritária na Companhia das Índias Ocidentais, que o destituiu do cargo de governador-geral do Brasil porque estava mais interessada no lucro imediatista do que em eficiência.
 

ISTOÉ – E o maior vilão?
Eduardo Bueno

Ao posto do pior vilão competem arduamente Duarte da Costa, segundo governador-geral do Brasil, um homem devasso e argentário, que mergulhou o País no mais absoluto caos, e seu sucessor, Mem de Sá, que, embora tenha sido um disciplinador que sanou muitos equívocos de seu antecessor, era, além de corrupto, sanguinário e cruel. Foi o responsável pelo extermínio de duas nações indígenas.
 

ISTOÉ – Quais as suas fontes para escrever a série Terra Brasilis?
Eduardo Bueno

Inúmeras. Tenho uma biblioteca de cerca de quatro mil livros sobre história colonial das Américas. A maior parte dos livros foi adquirida em extraordinários sebos de Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Também me beneficiei muito da proximidade de Porto Alegre com Buenos Aires, onde ao longo dos anos pude comprar vários livros sobre a conquista e a colonização do Rio da Prata, que acabou sendo um dos temas principais do segundo e do terceiro livros.
 

ISTOÉ – Há carência de livros interessantes sobre a história do Brasil?
Eduardo Bueno

Não. Existem dezenas de ótimos livros sobre o assunto. A questão é que boa parte deles é de leitura árdua. Para lê-los, é preciso estar imbuído de dever cívico e fazer exercícios respiratórios. O melhor exemplo é Francisco Adolfo deVarnhagen, gênio que descobriu a maior parte dos documentos originais da história colonial do Brasil, mas cujo texto é um emaranhado quase florestal, que precisa ser desbastado. Outro exemplo é Capistrano de Abreu. Embora seu estilo seja muito mais refinado do que o de Varnhagen, tem um texto muito barroco. A leitura dos dois historiadores remete aos documentos originais, e decifrá-los é tão tedioso que, quando se retorna aos dois autores a que me referi, parece que se está lendo Sidney Sheldon. Além deles, há o estupendo Sérgio Buarque de Holanda, leitura muito prazerosa, e parcela da produção acadêmica nacional, representada por Ronaldo Vainfas e Arno Wehling. Só que a porta dos colégios parece fechada para eles, que não estão no mercado.
 

ISTOÉ – Você concorda com a máxima de que brasileiro não gosta de ler?
Eduardo Bueno

 Discordo absolutamente. Concordo que brasileiro não pode pagar meio salário mínimo por um livro. Quando os preços caem – o Plano Cruzado deixou isso claro –, vende-se uma enormidade. Eu fui editor da L&PM e sei disso muito bem. As classes médias têm estímulo. Já a elite, não tanto, porque prefere alugar hotéis na Flórida.


ISTOÉ – Você tinha expectativa de ter sua coleção adotada pelas escolas?
Eduardo Bueno

Esperança sim, mas não objetivo. Se eu fosse me submeter a uma imposição dessas, ia acabar me policiando e não saberia em que padrões ou conceitos me basear. Meu desejo secreto e inconfessável era libertar a história colonial do banco de escola em que me parecia aprisionada. Meus livros estão sendo adotados por várias escolas particulares, mas não houve nenhum movimento oficial para incluí-los na lista do governo. Não vou negar que a questão financeira também me atraía. Mas, muito mais que ela, o que me move é a esperança de que milhares de alunos possam aprender por uma narrativa mais dinâmica, que desperte neles o interesse pela história do Brasil e possam descobrir coisas que eu não consegui. Com certeza, há muitas.
 

ISTOÉ – Você foi acusado de ser superficial. O que acha disso?
Eduardo Bueno

Meus livros não são perfeitos. Qualquer obra é passível de críticas. Há alguns problemas estruturais de ordem cronológica, um certo vaivém no tempo que ainda não consegui calibrar. Quanto à acusação de superficialidade, além de desprezar a fonte de onde partiu a crítica (revista Veja), não acho que seja correta. O objetivo de meus livros não é ideológico, no sentido mais rasteiro da palavra. Mas sim que os leitores cheguem às suas próprias conclusões. Só pretendo fornecer dados e informações. Tenho uma certa obsessão pela minúcia de detalhes que permita aos leitores interpretar a história por si. Acredito que seja uma postura muito mais libertária.
 

ISTOÉ – Quais serão os próximos exemplares?
Eduardo Bueno

 A coleção terá seis volumes. O terceiro, Canibais, jesuítas e donatários, será lançado em 29 de março, dia da fundação de Salvador. O quarto será sobre a França Antártica, que foi a invasão francesa no Rio. O quinto é um dos que mais me entusiasmam. Vai se chamar Os piratas do sertão, e é sobre os dois grandes ciclos do bandeirismo, de caça aos indígenas e busca do ouro. O sexto será sobre a ocupação holandesa. Provavelmente depois voltarei a um passado ainda mais remoto, ligado à pré-história. Vai ser o melhor de todos.
 

ISTOÉ – Você ficou rico ao se transformar em best seller do dia para a noite?
Eduardo Bueno

(Risos). Rico mesmo no Brasil só ganhando na Sena ou com a contravenção, acho eu. Mas deu para ganhar o suficiente para as amêndoas das crianças. Para mim, o mais importante foi ficar claro que dá para viver relativamente bem de letras no Brasil.

ISTOÉ – Qual seu sonho de consumo mais imediato?
Eduardo Bueno

É ter uma biblioteca de 22 mil exemplares. Concluí que esse número está bom, mais ou menos o que preciso para me dedicar à leitura depois da aposentadoria, ali pelos 78 anos.
 

ISTOÉ – Você, por sinal, vem de família abastada, não é portanto um novo rico. Se sente novo ou velho rico?
Eduardo Bueno

 Nem um nem outro. Meu pai teve grana, mas perdeu tudo antes que eu pudesse gastá-la.
 


ISTOÉ – Uma de suas especialidades é Bob Dylan. Como é essa paixão?
Eduardo Bueno

Bob Dylan foi uma obsessão, iniciada em 1974, ainda sem data para acabar. Durante uns três anos acreditei que ele e eu éramos a mesma pessoa. Incorporei total, me dissolvi na figura dele. Li 47 livros a seu respeito, tenho mais de 100 discos dele e acabei me tornando uma das pessoas que mais sabem sobre Bob Dylan no planeta. Com certeza mais que ele próprio, que tem memória fraca. Depois de sonhar 17 vezes que eu era seu amigo, ele acabou ficando meu amigo. Nos conhecemos em São Paulo, em 17 de janeiro de 1990. Desembarcou às 8h30, o oceano se abriu e eu atravessei de pés enxutos até a suíte 1.602 do Hilton Hotel, onde ele estava hospedado. É muito mal-humorado. Ainda não estou preparado, mas quero escrever sobre a geração beat e os anos 60. Dylan vai entrar no caldeirão.

ISTOÉ – Como foram suas incursões no universo beatnik? É verdade que chegou a visitar duas vezes a tumba de Jack Kerouac?
Eduardo Bueno

Foram jornadas de iniciação. No caso real das visitas foram viagens de peregrinação. Conheci Allen Ginsberg, que me mandou uma carta uma semana antes de morrer, agradecendo pela divulgação do movimento beat no Brasil. Conheci William Burroughs, que visitei nos cafundós do Kansas, onde vivia, em 1993. Foi uma experiência perturbadora, porque ele era muito enigmático.
 

ISTOÉ – Como era viver a filosofia beatnik na prática?
Eduardo Bueno

Acho que é uma posição que se assume em relação à sociedade estabelecida, uma postura individualista e desviante. A pessoa não se enquadra. O balanço final é positivo, embora em alguns momentos se tenha de pagar um preço. Por exemplo: não fiz carreira em lugar nenhum, a não ser com um facão no meio do mato. Isso causa alguns reveses financeiros. Na prática, vivi a filosofia nos quatro anos que morei em Gramado. Mas no plano espiritual, sempre. Nunca fiz parte, nem frequentei o convencional.
 

ISTOÉ – Você também escreveu um livro sobre os Mamonas Assassinas. Qual foi seu vínculo com os artistas?
Eduardo Bueno

 Nenhum. Fui contratado para escrever. Arrogantemente, não conhecia e não gostava, como boa parte da imprensa brasileira. Ao contrário dela, fiz um tardio mea-culpa e virei fã. Me orgulho muito do livro.
 

ISTOÉ – É verdade que você conheceu pessoalmente a atriz Kim Basinger?
Eduardo Bueno

(Risos). Só não entendo o "é verdade". É muito fácil e não muito prazeroso conhecê-la. Kim Basinger é muito normal. Eu a conheci quando fui entrevistá-la. Maurício de Souza é seu amigo e me deu o telefone. Fui naquela cidade que ela comprou, Braselton, na Geórgia.
 

ISTOÉ – Você tem fama de mentiroso. Existe algum fundo de verdade nisso?
Eduardo Bueno

 Sim. Embora não inteiramente. Eu não minto, apenas apresento uma versão turbinada da verdade. Tenho dito isso e juro que é verdade, que não me responsabilizo pelo que faço, nem pelo que digo. Só pelo que escrevo. Sou que nem bicheiro, vale o que está no papel.
 

ISTOÉ – O que você tem contra Chico Buarque, essa unanimidade nacional? .
Eduardo Bueno

 Eu????? Nada. Só gosto mais do pai dele, o historiador Sérgio Buarque de Holanda

ISTOÉ – Como estudioso da história do Brasil, que opinião tem de FHC ?
Eduardo Bueno

Poucos poderiam parecer mais bem-preparados para o cargo que FHC. Por isso, me decepcionei. O que mais me perturbou foi que, sendo um intelectual, não fez nada pela política editorial brasileira. Quanto aos parques nacionais, uma das únicas questões políticas em que eu me envolveria, fez bem menos que, veja só, Fernando Collor.
 


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