Está cada vez mais difícil distinguir os mocinhos dos bandidos no bangue-bangue da crise econômica que tomou conta do País. O Banco Central (BC), como xerife do mercado financeiro, deveria agir sempre dentro da lei para manter a ordem. A realidade, porém, tem mostrado uma história diferente. Está finalmente comprovado que durante os fatídicos dias de janeiro em que tentou sustentar a malfadada banda cambial criada pelo seu ex-presidente Francisco Lopes, o Banco Central fraudou as regras do jogo e tomou conta do mercado de dólar futuro – em que são negociados contratos de compra e venda da moeda americana com base em estimativas das taxas de câmbio dos meses seguintes. Ao montar seu esquema, o BC acionou instituições de confiança para vender por ele dólares na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), em São Paulo, pela saudosa cotação de R$ 1,21 e, com isso, reverter a aposta do mercado de que a instituição acabaria por mexer no câmbio. Se mudasse a política, pagaria a conta. Como se sabe, acabou pagando. E caro, para honrar os compromissos assumidos antes da desvalorização do real. "O Banco do Brasil e outras instituições operaram em nome do BC. E isso custou R$ 8 bilhões ao Banco Central", revela Fernando Amaral, membro do Conselho de Administração do BB.

A operação secreta do BC foi discutida pelos conselheiros em seu último encontro, no dia 8 de fevereiro. Na reunião, o diretor de Finanças do BB, Carlos Gilberto Caetano, assegurou que a instituição não ficaria com o prejuízo pelas operações na BM&F. "É tudo dinheiro de cliente", garantiu. Como "cliente", entenda-se Banco Central. Um diretor do próprio BC, que prefere o sigilo para não ser prejudicado, admite que houve uma ação pesada da autoridade monetária na BM&F. Ele reconhece que o custo dessa operação foi alto, mas diz que o saldo final pode ser um pouco menor que R$ 8 bilhões – na edição de 27 de janeiro, ISTOÉ publicou que o mercado financeiro estimava que o volume das operações seria de US$ 4 bilhões e que o BB teria usado as corretoras Comercial, Omega, Sudameris e Fleming Graphus. Tomara, porque em última instância, o prejuízo vai bater no Tesouro Nacional, que será obrigado a cobrir o saldo negativo na contabilidade do BC no final do ano. A operação obscura só não passará despercebida na contabilidade do ajuste fiscal: ela já custou aos cofres públicos o dobro do que o governo vai cortar em gastos e investimentos no pacote que vem por aí.

Além de cara, a atuação do Banco Central foi irregular. As regras da BM&F o colocam no rol dos culpados, pois o regulamento da Bolsa diz que cada grupo financeiro – aqui incluído, em tese, o BC – não pode dominar mais do que 15% dos contratos com vencimento numa mesma data. No dia 12 de janeiro, antes da mudança do regime cambial, o BC controlava pelo menos 48 mil dos 79 mil contratos em aberto com vencimento em 1º de fevereiro. "Tínhamos mais de 60% do mercado", admite o diretor. E o mais grave: tudo com o consentimento da BM&F, que sabia da operação e deveria ter impedido o negócio. E por que não impediu? "A BM&F, como órgão subordinado, faz o que o BC manda", garante o dirigente.

Além de arranhar reputações e torrar bilhões de reais, a estratégia custou a cabeça de seu mentor, Francisco Lopes. Ele repetia a mesma tática utilizada durante a crise asiática, em 1997, quando vários bancos dispararam vendas nesse mercado sob ordens do BC. Mas desta vez, foi diferente. No dia 29 de janeiro – a sexta-feira negra que produziu boatos e horrorizou o presidente Fernando Henrique Cardoso – o professor Chico Lopes caiu em sua própria armadilha. Foi impedido pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan, de interferir no mercado para baixar a cotação do dólar. "Quem iria lucrar com a alta puxou o valor do dólar para o nível que quis", conta um ex-assessor de Lopes. De mãos atadas, o BC só viu seu prejuízo crescer na BM&F. Escaldado pelo desastre, o novo presidente indicado para a autarquia, Armínio Fraga, preferiu manter distância desses instrumentos nada ortodoxos. Nos últimos dias, conversou diversas vezes com Gustavo Franco – colega de turma na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio – para entender como o BC operava. E só. Fraga ainda não gastou um centavo para segurar a cotação do dólar.

Mas ao bater em retirada e deixar o mercado totalmente livre, o BC abandonou parceiros antigos. Os bancos Marka e FonteCindam, por exemplo, quebraram por confiar demais na força do xerife para manter a política cambial. Os dois duelaram o tempo todo a favor do "mocinho" e contra os "bandidos". "Eles sempre estiveram do nosso lado", conta o diretor do BC. Certamente não fizeram isso por patriotismo, mas porque esperavam colher lucros – combustível de toda instituição financeira. O sinal de recompensa veio logo: foram os primeiros a receber dólares do BC, no dia 14 de janeiro, quando a moeda estrangeira sumiu. Só que a mãozinha oficial não foi suficiente e eles quebraram. Seus proprietários estão recebendo tratamento vip e não passarão pelo constrangimento de ter os bens pessoais confiscados. O Marka já anunciou seu fim. O FonteCindam negocia com dois grupos estrangeiros.

Preocupado com a desmoralização do xerife do mercado financeiro, a Fazenda determinou uma rigorosa investigação para punir fraudes e irregularidades cometidas pelos bancos nas últimas semanas. Os fiscais já estariam debruçados sobre mil operações de remessas de divisas para o Exterior, que somam US$ 1 bilhão. Desse valor, US$ 130 milhões foram enviados por meio do Fundo de Investimento no Exterior (Fiex). Cinco bancos estrangeiros estariam na mira da fiscalização. Mas até agora nenhuma irregularidade foi encontrada. "Ainda não conseguimos apurar nada de concreto", admite um desanimado chefe do Departamento de Fiscalização do BC e futuro diretor, Luiz Carlos Alvarez. Os tradicionais vilões estão mais limpos que o mocinho.