Com seu jeito calmo, o pernambucano João Falcão esfrega as mãos, ajeita-se na cadeira, olha para o espelho do camarim do Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, e avisa: "Quero desvirginar o teatro!" Na sua opinião, saudavelmente depravada, a arte de representar num palco anda muito recatada, tímida e, pior, avessa a novas experiências. Mas quem é João Falcão para questionar a mutabilidade do teatro? Marco Nanini responde. "É um ourives capaz de cunhar textos com qualidade e carga teatral." O público que o diga. As duas peças de maior sucesso nos palcos cariocas são assinadas e dirigidas por João Falcão: A dona da história, estrelada por Marieta Severo e Andréa Beltrão, e Uma noite na lua, monólogo interpretado por Nanini. Ambas estão entre os cinco melhores espetáculos do ano indicados para o Prêmio Mambembe. Aos 40 anos, João Falcão brilha em boa hora. A dramaturgia brasileira andava polarizada entre o chamado teatrão – ou o vaudeville – e o experimentalismo exagerado de diretores ansiosos em descobrir a pólvora. "A aparente modernidade virou um verniz e o bom texto não cabia neste formato. O público contemporâneo se afastou e foi fisgado pelo teatro tradicional", explica Falcão.

Agradecida por ter conhecido o autor-diretor, Andréa Beltrão é só elogios. "Poucas vezes a gente tem a sorte de ser dirigida por quem respeita o ofício do ator", diz a atriz. Abraçar o texto falconiano, no entanto, não é nada fácil. Falcão explora a repetição de certas frases, reverte o tempo sem destrambelhar a espinha início, meio e fim e cria um jogo particular com a platéia. Marieta Severo, que interpreta uma mulher de 50 anos dialogando consigo mesma, 30 anos mais jovem – papel de Andréa Beltrão –, conta que sofreu nos ensaios. "É mais difícil de decorar. João tem um universo sofisticadíssimo e traz na alma uma proposta dramatúrgica", disseca. A complexidade do metateatro proposto pelo autor, na verdade, só é perfeitamente entendida pelo diretor, ou seja, ele mesmo. Tanto é que Falcão anda sofrendo ao revisar as traduções das suas peças que estão sendo feitas para o inglês, francês, espanhol, alemão e até hebraico. Na sua pena, as rubricas se multiplicam para que um outro profissional seja capaz de encenar convenientemente.

Esta carpintaria, rica em construções imaginárias, talvez encontre respaldo no passado. João Barreto Falcão Neto queria ser arquiteto, mas abandonou a faculdade, virou músico, depois ator, peruou na publicidade e foi parar na Rede Globo. Junto com o conterrâneo Guel Arraes, filho do eterno governador Miguel Arraes, foi responsável pelo enxerto de qualidade dramatúrgica em projetos especiais da emissora, entre eles A comédia da vida privada, O coronel e o lobisomem e O homem que sabia javanês. Apesar dos três anos passados na televisão e das boas relações pessoais que lá cultivou, Falcão não sente atração alguma pelo naturalismo das novelas. "O teatro que me interessa não passa pela representação do real nem pelo confrontamento com o público. Quero que todos na platéia participem desta experiência junto comigo", deseja. E consegue. Abolindo cenografias mirabolantes e apostando na utilização do vídeo e de soluções mecânicas como painéis móveis ou esteiras rolantes, o novo xodó da ribalta leva ao palco reflexões sobre a vida banal, o amor e principalmente o teatro.

 

Bolacha no público – Sem ser hermético, faz questão de tascar uma bolacha fraterna no público logo no começo de suas peças. Seu ponto de partida é sempre a idéia teatral. Um paradoxo, já que ele é um autodidata na sua arte. "Não tenho escolaridade teatral. Gostava do Asdrúbal (Trouxe o Trombone), vi algumas coisas do Antunes Filho e confesso que já estou enjoado de Gerald Thomas", diz. Fascinação mesmo, só com o cinema. E com antigas novelas inovadoras que fizeram parte da sua juventude como O casarão, Saramandaia, O rebu e Espelho mágico. Foi justamente esta pluralidade de informações que ele resolveu levar para o palco. Marieta Severo, por exemplo, só vê vantagens na atitude. "Por ter passado por vários veículos, ele desenvolveu um canal de comunicação, que incorpora à linguagem teatral."

Sem projetos específicos, o autor anda às voltas com um projeto antigo de montar um espetáculo chamado provisoriamente Nordestina, que pretende misturar várias artes. Quer estrear no Recife. "Mas a turma lá ainda não se empolgou. Acabei recebendo um convite da Prefeitura de Curitiba, mas infelizmente não dá", lamenta, usando uma desculpa geográfica. Enquanto isso, segue a vida matutando alguma nova idéia que seduza outros grandes atores. É como a frase principal do personagem interpretado por Nanini na elogiada Uma noite na lua. "Um homem em cima do palco, pensando. Mas no que ele pensa?" Talvez nem João Falcão saiba. Mas Marieta Severo bem define. "Ele é o louco mais equilibrado que conheço. A lua dele deve ser uma beleza, pois ele vive no mundo dela…"