A doméstica desempregada Elizabeth Aparecida Ferreira fez do espaço público sua morada. Aos 46 anos, ela nunca teve uma casa e acaba de ser despejada do viaduto em que se abrigava, em São Paulo. O paulista Sebastião Barbosa dormiu muito ao relento antes de conseguir cavar e transformar um buraco em residência. As portas que já se fechavam para essas pessoas estão ainda mais cerradas desde que nas grandes cidades pontes começaram a ser protegidas por grades, marquises excluídas de projetos arquitetônicos, obstáculos pontiagudos instalados em fachadas, potentes holofotes colocados em prédios para impedir que qualquer ser humano pegue no sono, enfim tudo para evitar que moradores de rua façam desses locais um teto, mesmo que provisório. Denominado por urbanistas como "arquitetura dos excluídos", esse "movimento" ganha destaque na paisagem metropolitana a cada dia. Sem que se apresentem alternativas de habitação, esse arsenal de defesa do patrimônio serve para empurrar para bem longe de pontos turísticos e do centro um contingente formado só em São Paulo por 5.334 pessoas, segundo a defasada contagem da Secretaria Municipal de Bem-Estar Social, de 1997. "Essas intervenções não são para expulsá-los, mas para preservar o espaço público e privado dos vândalos. O problema é que os moradores de rua vão juntos nesse roldão", diz o secretário da pasta, Deniz Ferreira Ribeiro.

Essa "cidade" que cresce à margem da cidade formal se torna mais evidente porque o desemprego e a crise econômica ajudam a despejar mais miseráveis nas calçadas. "Com o desemprego o perfil mudou. Agora são jovens, mulheres e famílias inteiras na rua", alerta o vigário do movimento do Povo da Rua, Júlio Lancelotti. Nos últimos três meses a procura por albergues cresceu 80%, segundo dados da Pastoral da Rua. Há menos de um ano a Comunidade São Martinho de Lima, na qual o padre trabalha, atendia 150 pessoas diariamente. De dezembro para cá esse número passou para 400. "Não bastam albergues. É urgente uma política pública para essa área", diz Lancelotti. No Rio de Janeiro, não há nenhuma estatística sobre a população de rua, mas uma das preocupações do prefeito Luís Paulo Conde é desocupar os espaços urbanos. "Rua não é lugar de moradia", costuma dizer. Em sua gestão, nove viadutos foram desocupados e devidamente gradeados.

 

Paredes invisíveis Mesmo que a segregação seja resultado muitas vezes de uma política de preservação do patrimônio, a paulista Elizabeth Aparecida e seus companheiros sabem que cercar o viaduto em que vivem foi uma solução velada para afastá-los de uma das regiões mais nobres da cidade, o Ibirapuera. A grade desmontou a "casa" imaginária de três cômodos com muros invisíveis, "cozinha" equipada com fogão e armários, "sala" com sofás e "quarto" com colchões. Fiscais da Prefeitura levaram tudo. "Perdi as contas de quantas vezes isso aconteceu, mas daqui não saio", afirma. Os obstáculos à ocupação clandestina não se limitam às barreiras de ferro. Em São Paulo onde a iniciativa privada encampou um projeto de revitalização do Centro, o chão de fachadas comerciais e bancárias se transformou em camas de faquir e prédios antigos são iluminados evitando a depredação, mas, ao mesmo tempo, como ficam acesos à noite, impedem que mendigos se acolham. Na estação de metrô Parada Inglesa, os paralelepípedos foram assentados em pé sob o viaduto. Alguns prédios recorrem a chuveirinhos de água, mecanismos contra incêndio, que jorram das marquises à menor presença de moradores de rua.

"Essa profilaxia urbana é um reflexo mundial e não acontece apenas no Brasil", afirma Maria Cecília Loschiavo dos Santos, pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Em Nova York, lembra ela, a operação tolerância zero também tirou os mendigos de pontos turísticos. Para Oscar Niemeyer, que hoje vê o Plano Piloto em Brasília ser engolido pela miséria das cidades satélites, a arquitetura deveria evoluir em função da técnica e do progresso social. "Está tudo muito ruim. Teríamos que ser mais humanos. Para retirar os sem-teto das ruas, é preciso oferecer um lugar a eles. Por que querem esconder o Brasil?"

Mesmo com todas as adversidades os moradores de rua encontram maneiras de resistir à exclusão social. Para Sebastião Barbosa, alçapão é porta e porta é janela. Paraplégico sem ter onde se abrigar, escavou durante quatro anos um túnel de cinco metros de profundidade por três de largura embaixo de sua modesta banca em que vende gibis usados. O "homem-tatu", como é conhecido em Sapopemba, bairro da zona leste de São Paulo, caprichou no acabamento. Colocou lajotas, rebocou as paredes, fez uma laje, conseguiu instalações clandestinas de água e luz e equipou a casa com televisão, ventiladores e chuveiro. Tem dois colchões extras. "É para quando minhas filhas vierem me visitar", diz. Ele continua escavando, quer mais um cômodo.

Em Brasília, a dois quilômetros do Congresso Nacional, próximo ao eixo Monumental, o eletricista Edno Silva Santos construiu sua casa numa paineira. Migrante de Porto Seguro que buscava a sorte no Paraná, ele cochilou na parada feita na capital e perdeu o ônibus. Ficou desabrigado, com a mulher e a filha, na época, com seis meses. Por isso, a solução foi morar numa árvore. Montou o piso a 1,2 metro do chão, ao redor do tronco, com três folhas de madeirite. As paredes são de zinco e o teto de madeira. O acesso é feito por uma escada elevadiça, presa por roldanas e cordas. O material de construção foi garimpado nas ruas, enquanto ele recolhia latinhas que vende para reciclagem. "Quando vim morar aqui, pensei: quem é dono da natureza? Deus. Ora, eu sou filho de Deus. Então posso morar aqui", explica ele, que já foi expulso do local pelo governo do Distrito Federal, mas voltou.

No Rio, Severino Gomes, 47 anos, improvisou um quarto na fenda de uma pedra, próximo à pista de cooper Cláudio Coutinho. Morador de rua há 20 anos, ele acredita ter encontrado o lugar certo, já que dispõe de vista para o mar e está cercado pela mata. Foi também um vão que Geraldo Francisco de Paiva, a mulher, Maria, e as duas filhas transformaram em moradia. O espaço vazio fica debaixo do viaduto e entra-se nele através de uma abertura retangular de um metro de altura, no elevado da Perimetral, que liga a avenida Brasil ao Aterro do Flamengo. Quem passa por ali imagina que a família espreme-se no buraco. Nada disso. As estruturas da Perimetral escondem uma área livre de 75 metros quadrados que eles souberam aproveitar muito bem. Maria Dalva e o marido, José de Jesus, fizeram de um terreno debaixo do viaduto da cadeia pública, na marginal do rio Pinheiros, em São Paulo, uma espécie de chácara. Em frente ao barraco de três cômodos, eles construíram um playground para os sete filhos com direito a um balanço e um carrossel. O antigo quartinho onde a família toda dormia espremida hoje já virou um "closet". As melhorias são resultado do dinheiro conseguido com a venda das casinhas de cachorro e de bonecas que eles fazem na serralheria que montaram ali mesmo.

 

Sobras da metrópole A urbanista Suzana Pasternak, professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que estuda há anos o modo de vida dessa população com a ajuda da psicóloga social Elaine Rabinovich, analisa essa ação "sanitária" das administrações e dos comerciantes e as soluções dos moradores de ruas como mais uma prova do aprofundamento do abismo entre as classes. "Fazendo suas casas com as sobras da cidade, eles mostram o lado dramático da apropriação urbana evidenciando uma distância física cada vez menor entre pobres e ricos numa distância social cada vez maior." É como se a cidade fosse se autodigerindo. E esse processo fere o olhar até dos mais insensíveis. Em um dos canteiros da marginal Tietê, próximo à ponte da Casa Verde, a reportagem de ISTOÉ encontrou um homem recolhido em um tubo de esgoto coberto por um plástico preto. A improvisação, em casos como esse, fica aquém da dignidade humana.

Colaboraram: Valéria Propato (RJ) e Raquel Mello (DF)