O palhaço Risadinha apita e pede para a criançada cantar. "Marcha soldado…", começa ele. "… cabeça de papelão, quem não marchar direito cai na ponta do facão", completam elas. A cantiga tradicional no Sul do País é diferente em Baixa Grande, sertão baiano. De resto, o município de 22 mil habitantes reproduz todos os estereótipos dos povoados que sofrem com a falta d’água e com o desvio do dinheiro público. "Aqui, sempre nada tem", definiu o estudante de Administração Cristiano Daztrozzo. Alto, loiro e com a camiseta do Universidade Solidária – um dos projetos da Comunidade Solidária, o braço social do governo comandado por Ruth Cardoso –, o gaúcho de Lajeado, que com frequência chamava a atenção, soube em poucos minutos que naquele dia a atração seria outra. Na praça, Isaías Ramos do Nascimento estacionava o caminhão baú do Leia Brasil, programa criado pela agência carioca Argus e patrocinado pela Petrobras. Pela sua experiência – é motorista desde a primeira viagem há sete anos –, avaliava que o dia seria difícil. "Aqui o prefeito nem está", comentou, começando ali mais uma peregrinação com os atores Emannoel Ferreira dos Santos, o Manu do grupo Hombu, e Roberto Lima Noronha, o palhaço Risadinha.

Até a noite quando as crianças cantaram a versão "peixeira" de "Marcha Soldado", o motorista e os atores batalharam um ponto de luz para o espetáculo que fariam na rua. Sobrou pouco tempo para que a meninada olhasse os livros da biblioteca volante montada dentro da carroceria. Aos 13 anos Giovani Ribeiro Ferreira repetiu a terceira série. Não sabe quem é Pinóquio, nem Pedrinho ou Narizinho. "Livro aqui é muito difícil." A única história que conhece é a de João de Barro. "É um homem que ajuda os outros a construir suas casas", explicou enquanto espiava os volumes, antes de voltar para casa e se preparar para trabalhar com o pai na feira do dia seguinte. O programa Leia Brasil, uma caravana com 16 caminhões, cada um com 15 mil volumes, percorre seis Estados brasileiros durante o período letivo, formando uma parceria com as escolas públicas. Eles treinam professores e desenvolvem com os alunos atividades que estimulam a leitura. Aí emprestam livros que vão ser trabalhados em salas de aula e depois de um mês passam com o caminhão recolhendo. O programa custa R$ 3 milhões por ano à Petrobras.

Nas férias o esquema do Leia Brasil muda. A equipe cai na estrada e passa um dia em alguns dos municípios do Universidade Solidária numa espécie de complementação da agenda cultural do programa de dona Ruth Cardoso. "Com um dia em cada cidade, o Leia Brasil equivale a uma vitrine de doces que corre em frente dos famintos. É dramático", reconhece Jason Prado, criador do programa e dono da Argus. "Mas mostra ao prefeito e à comunidade o que eles podem fazer por suas crianças ", completa. Um exemplo foi Macajuba, com 13 mil habitantes, que acaba de ser cadastrada no Leia Brasil.

Em Baixa Grande, a 300 quilômetros de Salvador, o povo só se vangloria de ser a terra natal do jornalista Paulo Henrique Amorim. Mas o apresentador é do Rio de Janeiro, quem nasceu lá foi seu pai Deolindo Amorim. Os moradores sofrem com tudo. O esgoto corre ao lado de casas e do hospital. Faltam remédios e médico. Nos povoados rurais, por falta de água tratada as doenças se multiplicam no mesmo ritmo em que as jovens de 10 a 15 anos ficam grávidas. Algumas delas estupradas por parentes ou já prostituídas pelos pais em troca de comida, segundo o levantamento da equipe da Universidade Integrada do Vale do Taquari de Ensino Superior, de Lajeado, que ficou três semanas na região. As prioridades são outras. O atual prefeito Amado Ferreira (PTB) inaugurou o estádio de futebol Deputado Luís Eduardo Magalhães. Para molhar o gramado, uma bomba foi instalada, levando água de um açude até o centro esportivo. "O mais incrível é que nem time de futebol tem aqui", comenta Cristiano.

Arrancar um pouco de fantasia das crianças brutalizadas é uma luta. Nem sempre o lirismo e a inocência que a classe média projeta na pobreza brotam do coração da meninada. Em Várzea da Roça, a 60 quilômetros de Baixa Grande, alguns garotos avançavam nos atores. "Achei que as crianças fossem nos comer. A fome deles de dignidade é tanta que eles até te agridem", analisou Manu. Ainda assim, Danilo, 14 anos, o "Terrorista", surpreendeu ao participar de um jogo cênico proposto pela dupla de atores. Ele seria o rei Pantaleão e de improviso teria que fazer uma declaração de amor à princesa Josefina. Então soltou: "O paraíso é um substantivo masculino. Se houvesse contra-partida seria você, Josefina." Palmas.

Uma criança ganhar o palco e ser aplaudida nesses lugares é reverter a ordem local. Ainda assim, a cada cidade que ia se descortinando no trajeto do Leia Brasil – a reportagem de ISTOÉ esteve em quatro das nove visitadas, num raio de 350 quilômetros de Salvador – mais e mais meninos se sentiam importantes por um dia. Eles puderam ler pouco, mas tiveram a chance de viver algumas horas em outro mundo. Os atores Manu e Roberto que interagem com a meninada das favelas do Rio de Janeiro, traçam comparações entre os universos áridos das crianças do Sul e do Nordeste. "Aqui é o Bye-bye Brasil. No Rio, ainda que marginalizados, eles têm mais informação", acredita Roberto. "É recompensador saber que você está levando teatro e livros a eles pela primeira vez, mas é frustrante pensar que pode ser a última", avalia Manu.

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Questões como essas bombardeavam com a mesma intensidade as cabeças de alguns integrantes do Universidade Solidária. Mais do que os atores que estavam de passagem, os estudantes tentam interferir no abismo social do País. Mas, se as propostas apresentadas não forem levadas adiante pelo prefeito e pela população, restará só a lembrança dos jovens simpáticos. "O depois está além da nossa vontade", disse Alexandre Brollo, estudante de Engenharia Civil, da Universidade Regional de Blumenau. Durante três semanas, ele tentou que a prefeita Maria Cardoso de Lima, de Santa Terezinha, alugasse sem sucesso um trator para pôr em prática um projeto de aterro sanitário. Em Macajuba foi o oposto. A sede do município tem 80% de saneamento básico e água tratada e o prefeito Fernão Dias Sampaio se empenhou em colaborar com o professor Luiz Antônio Gaspardi, coordenador da equipe da Universidade Federal do Espírito Santo. "A realidade aqui era melhor do que imaginávamos", disse Gaspardi. Foi preciso que o prefeito alertasse aos estusiasmados estudantes do Universidade Solidária. "Gente, isso aqui não é o paraíso." Ele tinha razão. O paraíso foi Josefina, ainda que por uma noite.

 

O País real de seu Valdenor

 

Valdenor de Oliveira Pereira, 52 anos, nasceu num povoado que tem pouco mais de 20 casas e uma igreja e é um daqueles personagens que retratam a alma do País. A parede de sua casa, em Viração, área rural de Baixa Grande, é coberta por cartazes da campanha de FHC. É dono de uma roça, um bar, dez jumentos e dois porcos. Nunca viu uma nota de dólar na vida. Estudou até o segundo ano primário, mas com a ajuda de uma televisão e um rádio mostra o que sabe da crise no País.

ISTOÉ – O sr. apoiou o presidente?
Valdenor Pereira – Eu fiz campanha das duas vez. O pessoal falava do Lula, mas eu não me empatizo com o PT. Toda vida fui pobre, não tenho nada a perder, então esse plano que o Fernando Henrique criou ainda não teve prejuízo. O que eu recebo da Previdência, dá pra mim e pras minhas duas crianças. O que eu compro há quatro anos, o preço não subiu. Mas não sei daqui em diante. Tô ouvindo falar que tá subindo frango, tá subindo ovos. Mas eu peguei na televisão que o governo não autorizou. É os gananciosos que quer que a inflação volte a disparar.

ISTOÉ – O sr. acompanha a crise?
Pereira – Não durmo de touca. Pra onde eu vou eu tenho meus aparelho. Tenho minha televisão e tenho meus radinho. Eu tô trabalhando de foice, de enxada e o rádio tá lá ligado.

ISTOÉ – E se os preços subirem?
Pereira – Aí nós somos obrigados a perder a fé no homem.

ISTOÉ – Então o sr. acha que a culpa é dos ganaciosos?
Pereira – Não sou eu que acho. É o que tô vendo ao vivo na televisão. O dólar disparou e a nossa moeda ficou rebaixada. Na hora que eu ver que ele tá fazendo que nem Sarney, que nem Collor… Porque eu votei para Collor… Se ele voltasse eu votava nele.


ISTOÉ – E a alta do dólar??
Pereira – Aqui nós acompanha pela televisão. Nós tem um sinal que pega a Globo, mas ela encobre muita coisa, então na casa da minha irmã que tem parabólica a gente vê o SBT, a Manchete, vários canais.

ISTOÉ – O que o sr. achou do aumento de imposto dos aposentados?
Pereira – No mês de maio quem recebe acima de R$ 600 vai pagar 11%. Agora eu queria receber acima de 600 e pagar 11%. Não achava ruim de trocar não. O presidente tá fazendo uma coisa certa. Ele não está explorando de mim que ganho 130.

ISTOÉ – E o ministro Pedro Malan?
Pereira – Ele tá seguindo à risca o nosso presidente. Porque se ele é ministro da Fazenda e permanece no cargo é porque é de grande confiança.

ISTOÉ – O que melhorou?
Pereira – Passei a comprar tudo. Eu não tinha televisão nem rádio. Agora sobra pra cachaça e um pacote de fósqui (fósforo).

ISTOÉ – O que o sr. faria para a inflação não voltar?
Pereira – Se eu tivesse a chave do Brasil, deixava nesse patamar. Se não subisse também não baixava, que nem corpo por riba d’água.


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