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DESESPERO
Os pais João Candido e Maria Edna e o namorado da jovem Maria Candida (acima)
durante o velório, na segunda-feira 25: família em estado de choque

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"Dor, só dor. Dor inexprimível, sem trégua, despedaçando nosso coração… Tudo nos lembra Maria Candida: os tênis dela no canto do quarto, a escova de dentes com a pasta, sua mochila, seus cadernos, algum bichinho de pelúcia preferido… Vivemos dia e noite empalados na tortura do filme que passa incessantemente em nossa mente, revivendo implacavelmente o momento inenarrável, absurdo, em que a encontrei no fundo da banheira com seus lindos olhos sem vida, abertos para o nada. Que horror, que dor, que dor meu Deus, nos estraçalha desde domingo!"

Com estas palavras, o matemático e engenheiro João Candido Portinari chora, numa rede social, a dor pela morte estúpida de sua filha, Maria Candida, de 16 anos, que inalou o gás que vazou do aquecedor do banheiro quando tomava banho, no domingo 24. Ao sentir o cheiro forte, o pai correu para o segundo andar da casa em que moram, em São Conrado, zona nobre do Rio de Janeiro, a tempo de resgatar sua caçula da água ainda com um resquício de vida. Mas ela faleceu em seus braços logo depois. A tragédia da família Portinari não é um acidente isolado na capital carioca. Estima-se que dez pessoas morram por ano por causa de vazamentos de gás no município, segundo a empresária Fátima Carvalho, coordenadora do grupo “Mortes por Gás Nunca Mais”, que diz fazer “um trabalho de formiguinha” para contabilizar as vítimas. Ela própria faz parte dessa terrível estatística, pois perdeu a filha Carolina, de 19 anos, em 2006, no mesmo “banho assassino”. Os números oficiais são menores. A agência responsável por fiscalizar o abastecimento de gás encanado fornecido pela Companhia Estadual de Gás (CEG) no Estado – ou seja, 25% dos lares cariocas, cerca de 800 mil domicílios –, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio (Agenersa), diz que, de 2005 a 2012, foram registrados oito mortes na capital, uma por ano.

Mas quem são os responsáveis por esses acidentes? As agências reguladoras, o Corpo de Bombeiros e os fornecedores de gás jogam a culpa para a parte mais fraca, os consumidores. Eles alegam que o Regulamento de Instalações Prediais (RIP) prevê que as instalações internas são de responsabilidade do cliente. Portanto, eles só poderiam responder pelo gás até os limites de uma casa ou condomínio. “A utilização do GLP (Gás Liquefeito de Petróleo, o tipo usado em residências) é de responsabilidade do Corpo de Bombeiros”, afirma a Agenersa. O Corpo de Bombeiros, por sua vez, diz que o proprietário que opta pelo GLP é responsável por seguir as normas de segurança dos fabricantes dos produtos que adquirem.

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As tentativas de mudanças, entretanto, enfrentam resistências das concessionárias, que contam com o apoio dos legisladores e da Justiça. Desde 2007, tramita na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro um projeto do deputado Alessandro Molon (PT), que transfere para a CEG a responsabilidade sobre as vistorias, gratuitas, em todos os endereços que recebem gás da concessionária. O promotor de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Rio, Rodrigo Terra, também entrou com uma ação coletiva na Justiça com o mesmo objetivo, em 2008. Mas, até agora, nada. “A lei prevê que o serviço tem de ser prestado com segurança e a CEG não tem como dizer que a segurança só vai até a porta da casa”, diz o promotor.

O presidente do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio (Crea-RJ), Antonio Guerreiro, explica que o Rio ainda guarda “essa mania antiga de usar o aquecedor de gás no banheiro”, dos tempos em que os banheiros eram enormes e bem ventilados. Hoje, os espaços são menores, mas o hábito continuou sem que as autoridades tomassem as providências para corrigir o perigo. “Banheiros viraram uma verdadeira câmara de gás em casa”, diz Guerreiro.

Neta do artista plástico brasileiro de maior prestígio internacional, Candido Portinari (1903-1962), Maria Candida pode ser apenas mais uma vítima na macabra estatística de morte por “intoxicação por monóxido de carbono”, como indica o laudo de necropsia, segundo o delegado Orlando Zaccone, responsável pela investigação. Ele vai ouvir as pessoas que estavam na casa a partir desta semana, mas adiantou à ISTOÉ que não deve indiciar ninguém, nem por negligência, nem por omissão. “Foi uma fatalidade”, afirmou. A família está em estado de choque. “Ela era uma adolescente muito alegre, cheia de amigos, estudiosa. Uma menina linda que escrevia poemas e sabia desenhar muito bem. Tinha um futuro brilhante pela frente. É um fato inacreditável”, disse Suely Avellar, coordenadora de Arte e Educação do Projeto Portinari. Na página da menina, no Facebook, multiplicam-se as mensagens de adolescentes que, igualmente, não conseguem acreditar no que aconteceu. Como expressou a amiga Caroline Viegas: “Eu só queria que isso fosse um pesadelo, que eu acordasse com você contando suas histórias de dieta…”.

Colaboraram Mariana Brugger, Tamara Menezes e Michel Alecrim
Fotos: Arquivo Pessoal; Fabio Rossi / Ag. O Globo