O Brasil entrou em economia de guerra. A batalha de trincheiras das últimas duas semanas, em que o Planalto mergulhou ao mudar o regime de câmbio, viveu seu maior confronto na sexta-feira 29. O dólar furou a emblemática barreira dos R$ 2 e fechou em R$ 2,05. O saldo foi inusitado: só houve perdedores. A credibilidade do governo Fernando Henrique chegou ao ponto mais baixo desde a sua ascensão ao poder há quatros anos. O mercado financeiro entrou em pânico e contaminou a população, provocando histeria coletiva e onda de saques no sistema bancário. Na manhã dessa sexta-feira negra, em São Paulo, o presidente deu o tom do que vem por aí. "A crise existe e não podemos negá-la. Só tenho a oferecer sangue, suor e lágrimas", disse FHC, recorrendo ao célebre discurso em que Winston Churchill conclamou os ingleses ao sacrifício da Segunda Guerra Mundial. "Lágrimas porque não fizemos o que tínhamos de fazer a tempo e suor porque vamos superar isso e transformar o nosso país em um lugar próspero e marcado pelo avanço", completou o presidente.

Enviado secreto Para não derramar seu próprio sangue, FHC decidiu suar a camisa e negociar com o presidente Bill Clinton um aval do Tesouro americano para que o Brasil possa captar dólares no Exterior e reforçar suas reservas internacionais. A idéia, conforme relato de um tucano próximo ao presidente, é convencer os Estados Unidos a repetirem aqui um socorro semelhante àquele dado ao México em 1995. As negociações contam com o envolvimento direto de Fernando Henrique e Clinton, que conversaram por telefone na noite da quinta-feira 28. Na conversa, o presidente americano recomendou a manutenção da política de juros altos e do aperto fiscal. Enquanto FHC chamava ao Palácio da Alvorada os economistas André Lara Resende, ex-presidente do BNDES, e Armínio Fraga, executivo do megaespeculador George Soros, o governo dos Estados Unidos enviava a Brasília o secretário-assistente do Tesouro para Assuntos Internacionais, Ted Truman. Ele ficou três dias em segredo na capital e coletou "informações valiosas" sobre a situação financeira do Brasil, segundo declarou seu chefe Robert Rubin, após analisar o relatório da visita. Neste sábado 30, estava previsto o desembarque de uma nova missão de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) para rever o acordo vigente, que abriu um crédito de US$ 41,5 bilhões. Malan pretende discutir com eles um mecanismo para intervir no mercado e impedir variações abruptas da moeda.

A contrapartida ao socorro da cavalaria americana veio a galope. Na última semana, o Banco Central elevou as taxas de juros de 32,5% para 37% com a intenção de reprimir a inflação. A área econômica começou também a preparar mais um pacote de medidas fiscais para compensar o impacto negativo que a desvalorização do real e a alta dos juros terão nas contas públicas. Virão cortes profundos no Orçamento, desta vez provavelmente atingindo a área social. Outra decisão drástica em estudo é a promoção de novas demissões de funcionários públicos da União, dos Estados e dos municípios. Na quarta-feira 27, a Câmara abriu o caminho para a redução de gastos com pessoal ao regulamentar a reforma administrativa. A equipe econômica também desengavetou para novos estudos algumas medidas velhas como cortes dos incentivos e subsídios fiscais, que constavam do Pacote 51, baixado após a crise asiática em 1997, mas não foram implementadas. "É preciso um novo choque fiscal para dar credibilidade à política de câmbio e juros do Banco Central", defende o deputado Antônio Kandir (PSDB-SP), ex-ministro do Planejamento.

A urgência de novas medidas ficou mais clara na fatídica sexta-feira, um verdadeiro dia de cão. A onda de saques nos bancos varreu o País e foi mais forte em Brasília, onde os funcionários públicos correram em massa às agências para raspar suas contas. "Tirei tudo o que tinha na poupança. No governo Collor me lasquei toda e agora não sou mais boba não", disse a professora Sônia de Albuquerque ao sair da agência central do Banco do Brasil, pedindo para não ser fotografada. Dezenas de pessoas fizeram fila na tesouraria da instituição para retirar grandes volumes, informou o diretor de varejo do BB, Hugo Dantas.

Faltou dinheiro Em pleno Congresso Nacional, o senador Epitácio Cafeteira (PPB-MA) repetiu o gesto: mandou sacar R$ 50 mil e alimentou o pânico entre os funcionários da Casa. Em São Paulo, duas agências do BankBoston, entre outras, sofreram com os saques e, ainda no meio da tarde, já haviam perdido todas as suas cédulas. O Banco Itaú estimou que, em média, faltaram R$ 13 mil em cada uma de suas 992 agências para suprir os saques dos clientes. A histeria, provocada por boatos em torno de confisco da poupança, calote da dívida interna e feriado bancário, impôs ao governo um raro esforço de comunicação. Fernando Henrique, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Francisco Lopes, revezaram-se durante todo o dia em entrevistas e pronunciamentos que desmentiam categoricamente os rumores. "Eu não seria homem de fazer confisco. Seria uma traição ao povo brasileiro, ao meu passado e aos milhões de votos que eu recebi", garantiu FHC. Já Chico Lopes resignou-se: "As pessoas são desinformadas e existe um espaço grande para a especulação." A seu favor, Lopes pode exibir o fluxo cambial positivo da própria sexta, o primeiro desde o início da crise. Mas a partir desta semana, o BC não mais divulgará a entrada ou saída de dólares para evitar a especulação.

Barbeiragem A contra-informação vinha de todos os lados. Na Alemanha, o economista-chefe do Deutsche Bank, David Folkers-Landau, promoveu uma conferência telefônica intitulada "O jogo final", em que recomendou a retirada dos investimentos no País. "O Brasil será forçado a uma reestruturação desorganizada se não propuser uma política de renegociação da dívida pública para prazos mais longos", apostou Landau, sugerindo uma moratória interna. Em Washington, o banco de investimentos Salomon Smith Barney lançou a previsão de que o dólar ainda vai chegar à cotação de R$ 2,50. No Brasil, economistas de diferentes correntes avaliam que o governo alimentou essa especulação ao mudar o câmbio de forma atabalhoada e ao insistir na alta dos juros, seguindo o receituário do FMI e do Tesouro americano. "Foi uma barbeiragem. A alta dos juros não vai atrair capital, não vai conter a saída de dólares e não era necessária para conter a inflação. Apenas serviu para aumentar a incerteza sobre a capacidade do governo de honrar a dívida interna", diz o deputado Delfim Netto (PPB-SP). "A impressão que dá é que o governo mudou a política econômica, mas está totalmente desorientado porque não está convencido do que fez", acrescenta Delfim. Reforçam esta tese idas e vindas, como a política de atração do capital especulativo, que era bem-vindo, deixou de ser e agora voltou a receber medidas de apoio.

O governo bem que se esforçou para recompor o seu capital político e mudar a imagem de que falta comando na economia. No começo da última semana, articulou uma operação para abafar os rumores de novas mudanças na política econômica, com a substituição de Pedro Malan. Na noite da segunda-feira 25, o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, telefonou ao presidente do PSDB, senador Teotônio Vilela Filho (AL), para organizar uma manifestação de apoio a Malan. "Não podemos ser responsabilizados por uma eventual saída do Malan", argumentou o ministro das Comunicações na conversa. O almoço entre a cúpula tucana e o ministro da Fazenda acabou ocorrendo na quinta-feira 27 e foi acompanhado de um gesto idêntico do PFL, que levou uma brigada de parlamentares ao gabinete de Malan, dobrando a dose de solidariedade.

Mais do que todos esses apoios, a âncora que segura o ministro da Fazenda no cargo é a crise, segundo a avaliação do próprio Planalto. Sua desenvoltura no meio financeiro internacional também faz com que FHC não pense em tirá-lo agora do governo. Feita a "travessia da pinguela", ao final da qual o Planalto espera aprovar todo o pacote fiscal, conseguir estabilizar a taxa de câmbio e escapar do desastre, a situação poderá ser outra. "No momento, a saída é uma só e é a que aí está. Mas, alcançada a estabilidade, poderemos buscar várias alternativas", diz o líder do PSDB na Câmara, deputado Aécio Neves (PSDB-MG). A sensação de que a economia brasileira virou um Boeing desgovernado sem piloto a bordo aumentou depois que André Lara Resende e Armínio Fraga, dois dos economistas mais brilhantes ligados a FHC, recusaram convites para assumir responsabilidade maior com o governo. "Não há soluções mágicas para sair da crise. A minha leitura é de que devemos mudar de âncora (de cambial para fiscal), mas não podemos abandonar as reformas", disse Fraga, já de volta à sua residência em Nova York, mostrando que não há muito o que fazer de novo.

Fraga é um dos nomes que o PFL tentou impor à equipe econômica de FHC. No vazio provocado pelo enfraquecimento de Malan, tanto o PFL como o PMDB já começam a desfiar uma fieira de economistas para assumir o manche. Paulo Rabello de Castro, Paulo Guedes, Daniel Dantas, entre outros, estão sendo sutilmente sugeridos ao presidente em cada conversa com os líderes desses partidos. "Precisamos de contraponto aos tucanos na economia", afirma o líder do PFL, Inocêncio Oliveira (PE). Cacique maior do partido, o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, só espera formalizar sua recondução ao cargo, nesta segunda-feira 1º, para mudar o tom do discurso e exigir medidas de força de FHC. Contra os tucanos, é claro.

Colaboraram: André Vieira, Angélica Wiederhecker (SP) e Liana Melo (RJ)

Só depois de 2000
A ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, que confiscou a poupança em 1990, comentou, de Nova York, a boataria.

ISTOÉComo sair da crise?
Zélia Cardoso de Mello – Ou o governo faz um ajuste fiscal profundo ou recorre a instrumentos de força.

ISTOÉQuais?
Zélia – Há vários nomes: calote, moratória interna…

ISTOÉConfisco?
Zélia – Não se faz isso duas vezes no mesmo século.

ISTOÉMas o século termina logo.
Zélia – Não dá para esperar um ano.

ISTOÉA sra. voltaria ao governo?
Zélia – Para quê? Para fazer o confisco? (rindo)

 

Forte como o Fluminense

 

WLADIMIR GRAMACHO

 

O ministro da Fazenda, Pedro Malan (foto), reconhece que houve vazamento de informação sobre a mudança do câmbio e a saída de Gustavo Franco do BC, além de admitir que falhou ao não informar previamente o Fundo Monetário Internacional sobre as mudanças. No início da noite de quinta-feira 28, ele ainda tentava transparecer que a má fase pode estar passando: havia acabado de receber apoio do PSDB e do PFL e sabia que o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso trabalhava arduamente por sua reabilitação. Ao falar a ISTOÉ em seu gabinete, dizia-se renovado, tanto quanto seu time do peito, o rebaixado Fluminense, que, depois de várias derrotas, acabara de vencer o Vasco por 4 x 2.

ISTOÉ O FMI e o Tesouro americano criticaram duramente a decisão unilateral do Brasil de alterar o câmbio. Isso piorou a relação com Washington?
Pedro Malan – Às vezes, certas coisas adquirem uma dinâmica própria e acho que isso provocou uma falha no processo de comunicação (com o FMI). Mas isso está superado ou em vias de superação e estamos olhando para a frente.

ISTOÉ – O sr. avalia que, de alguma forma, seu prestígio como negociador foi comprometido nesse episódio?
Malan – Eu teria preferido que o grau de comunicação, da nossa parte, tivesse sido melhor do que foi. Mas não tenho indicações de que minha capacidade de relacionamento e discussão técnica tenha se deteriorado.

ISTOÉ – O governo, então, deveria ter informado previamente o FMI?
Malan – Eu acho que eu deveria ter comunicado a decisão presidencial de fazer a mudança na presidência do Banco Central e das implicações dessa mudança para as expectativas de mercado. O fato é que o mercado interpretou a mudança, que foi de alguma maneira percebida alguns dias antes da sua efetivação, como sendo um sinal de alteração na política cambial, e isso foi negativo.

ISTOÉ – E seu prestígio como ministro, não foi afetado?
Malan – Eu acho que nenhum ser humano, sem exceção, tem o monopólio dos acertos. Às vezes, sob tensão, fazemos coisas que, depois, com mais calma, vemos que talvez pudessem ter sido diferentes.

ISTOÉ – O sr. chegou a pedir demissão?
Malan – Não pedi, mas o cargo é do presidente.

ISTOÉ – Depois de quatro anos defendendo o sistema de bandas, o governo não perdeu credibilidade ao mudar o regime para a livre flutuação?
Malan – Não é possível imaginar nenhum ministro ou presidente do Banco Central dizendo que está pensando em mudar o câmbio em um mês ou dois. É surpresa, sim, mas não há outra maneira de fazê-lo. O mundo mudou, as circunstâncias são outras e não fazia sentido defender a taxa de câmbio com a dilapidação das reservas internacionais.

ISTOÉ – Então o sr. acha que a mudança do câmbio não teve impacto na credibilidade do governo?
Malan – Eu acho que teve na medida em que foi tentada uma fórmula (banda cambial larga), que durou dois dias e não funcionou. Acho que é forçoso reconhecer que quando uma coisa não funciona deve-se estar disposto a mudar e não persistir no erro. Foi isso que foi feito.

ISTOÉ – O sr. já sabe o que será alterado no acordo com o FMI?
Malan – Uma discussão agora será sobre a política monetária que vai assegurar a preservação da estabilidade do poder de compra do real, dado que o câmbio não está mais desempenhando esse papel. (Ou seja, o governo e o FMI vão rever a trajetória das taxas de juros.)

ISTOÉ – Vai haver uma meta para inflação?
Malan – A inflação tem de ser inferior a 10%. E faremos o que for necessário para tal, sem congelamento de preços. Podemos usar as políticas monetária e fiscal para regular a competição e preservar a abertura da economia.

 

O orçamento do Padilha

 

ISABELA ABDALA

Como nos últimos dias a palavra de ordem em Brasília é a sinalização para o Exterior, o Congresso aprovou na quarta-feira 27, a toque de caixa, uma das últimas peças para a conclusão do ajuste: o Orçamento de 1999 com superávit de R$ 16,4 bilhões. Uma conta baseada em receitas fictícias como o chamado imposto verde, uma taxação nacional a ser cobrada sobre o uso de combustíveis, que renderia R$ 2,1 bilhões. Ele já está servindo para abrir uma guerra entre o PMDB e os demais partidos governistas, que acusam o ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, de ter usado o Orçamento para recompor os cortes de sua pasta. Na mesma quarta-feira, o líder do PFL, Inocêncio Oliveira (PE), telefonou para o deputado Aécio Neves (MG), líder do PSDB, para se queixar de Padilha e do PMDB. "O Padilha e o Geddel (Vieira Lima, líder do PMDB) estão aliciando deputados das nossas bancadas com promessas de obras no Orçamento." Na quinta-feira 28, o PMDB ganhou dois novos deputados, ambos do PPB, Osvaldo Reis e Jorge Tadeu Mudalen, mas há a expectativa de que outros 14 tucanos, pefelistas e pepebistas migrem para o PMDB. Geddel Vieira Lima não confirma o número, mas admite que a cotação do partido anda em alta. Na Comissão do Orçamento, o deputado pefelista José Carlos Aleluia foi um dos mais ferrenhos críticos do relatório do senador Ramez Tabet (PMDB-MS), que segundo ele, não passa de um projeto peemedebista de poder. Segundo Aleluia, ao fixar gastos na área de transportes vinculados a receitas do imposto verde, o Congresso passou para o Executivo o poder que tinha de escolher as obras prioritárias. Como não haverá receita para executar todas as emendas que estão no Orçamento, caberá a Padilha escolher aquelas que serão prioridade. Padilha não aceita o rótulo. Diz que as verbas e obras serão distribuídas por critérios eminentemente técnicos.