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Desde o dia 13 de março, a majestosa Praça São Pedro, com suas colunas suntuosas e estátuas imponentes, tem perdido a atmosfera intimidante e adquirido os acolhedores contornos de uma paróquia do interior. Com a presteza de um milagre, e aparentemente sem nenhum esforço, o papa Francisco já imprimiu seu estilo na Igreja Católica. E está causando um enamoramento coletivo, até por parte de quem não professa a fé cristã. Alheio, e até arredio, ao emaranhado de protocolos, burocracias e à pompa que cerca a rotina de um pontífice, o religioso latino-americano faz jus à escolha do nome e desfila uma série de atitudes e declarações coerentes com seu passado de cardeal na Argentina, quando morava em um apartamento modesto, circulava de transporte público e preparava as próprias refeições. Incomodado com o tamanho e a opulência do apartamento pontifício, no qual ele afirmou caberem umas 300 pessoas, decidiu que irá usar apenas um terço dos 230 metros quadrados do local. Sentou na última fileira da igreja onde celebrou uma missa, na sexta-feira 22, para rezar com os jardineiros do Vaticano, horas antes de dizer a 180 embaixadores que o mundo deveria fazer mais pelos pobres. Também trocou o trono no Salão Clementino por uma cadeira normal. E, contrariando a tradição, anunciou que celebrará a missa Cena Domini, quando ocorre o Lavapés, na Quinta-feira Santa, em Casal Del Marmo, um centro de detenção para jovens, não na Basílica de São Pedro. 

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DESCONTRAÇÃO
Papa Francisco fala para mais de seis mil jornalistas no dia 16 de março,
na sala Paulo VI: em questão de segundos, a plateia está conquistada

Essas foram apenas as mais recentes atitudes do jesuíta nascido na periferia de Buenos Aires. Ao embalar esses gestos, está um homem de um carisma e um poder de comunicação impressionantes. Se as pessoas iam até João Paulo II para vê-lo e até Bento XVI para ouvi-lo, vão até Francisco em busca de inspiração. E eles as retribui com uma oratória simples, de fácil alcance, recheada de palavras como perdão, misericórdia, bondade e ternura, e acompanhadas de histórias cotidianas, geralmente testemunhos pessoais de sua trajetória de décadas como pastor. Um papa que fala “bom dia” e “boa noite”. Quem seria capaz de imaginar que, numa época de grandes estratégias de marketing, um simples “bom dia” seria tão revolucionário? A impressão que dá é que o mundo de hoje estava precisando exatamente disso: de um pároco, tamanho o sucesso do novo pontífice.

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HUMILDADE
O papa Francisco senta na última fileira da igreja onde acaba de celebrar
uma missa, na sexta-feira 22, para rezar com os jardineiros do Vaticano

Justamente por se sentir à vontade entre seu rebanho, Francisco tem se misturado à multidão, quebrado todas as regras do cerimonial e enlouquecido o corpo de seguranças do Vaticano. Para a missa solene de posse, no dia 19 de março, dispensou o papamóvel blindado e optou por um pequeno jipe, para caminhar entre os milhares de pessoas que foram saudar o início oficial de seu pontificado. Assim, pôde beijar crianças, descer do veículo e abraçar um fiel doente, por exemplo. Enquanto estava misturado à massa, Jorge Mario Bergoglio mostrou-se feliz e ensolarado, como o dia que brilhava em Roma. Depois, quando a cerimônia, repleta de chefes de Estado, reis e rainhas, começou, parecia desconfortável e tenso. Tanto que, quando às 11h20 a celebração acabou, em exata uma hora e meia, o pontífice argentino olhou para seu relógio de plástico, aparentando alívio. Durante a homilia, explicaria o porquê, indiretamente, de tamanho incômodo com o evento feito para “coroá-lo”. “Hoje, juntamente com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo bispo de Roma, sucessor de Pedro, que inclui também um poder. É certo que Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? Não esqueçamos, jamais, que o verdadeiro poder é o serviço”, disse Francisco, que, tão logo pôde, se livrou da estola preta e dourada sobre a batina e foi cumprimentar as autoridades presentes. A questão do poder já havia sido tratada no livro “Sobre o Céu e a Terra”, em parceria com o rabino Abraham Skorka, que será relançado ainda neste mês. Na obra, ele fala que uma das características de um líder ruim é o abuso de autoridade e que é um erro um chefe religioso utilizar a fé para alimentar o próprio ego. “Não é só um novo papa, mas um papa novo que nasceu diante de nós nestes últimos dias”, afirma o vaticanista Luigi Accatoli, do “Corriere della Sera”. “Novidade de linguagem e de atitude são observadas a cada novo evento público.”

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FORA DOS PADRÕES
Um dia depois de ser eleito papa, na quinta-feira 14, Francisco paga
a conta na residência onde estava hospedado em Roma

Francisco já havia inovado no seu primeiro domingo como papa. Logo cedo, presidiu uma missa na pequena igreja de Sant’Anna, dentro do Vaticano, e repetia, orgulhoso, para os cardeais presentes, segundo o brasileiro dom Raymundo Damasceno Assis, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): “Vou celebrar na minha paróquia, esta é minha paróquia agora.” Na saída, burlou os seguranças e foi para junto do povo, que seguia em direção ao Ângelus. Cumprimentou e conversou com dezenas de pessoas. Pouco depois, surgiu na janela do apartamento pontifício para seu primeiro Ângelus. Cerca de 150 mil pessoas lotavam a Praça São Pedro e a via da Consolação para vê-lo e ouvi-lo. E Francisco falou, de improviso, sobre misericórdia e perdão de Deus, contando uma história sobre uma senhora argentina, temperando com um livro do cardeal teólogo alemão Walter Kasper, o único que rivaliza com Joseph Ratzinger em erudição atualmente, sobre o tema. Em silêncio, e numa mesma sintonia, foram tocados pelas palavras do novo papa. Era comum ver pessoas chorando. O Ângelus havia sido um bálsamo para elas. “Ele é simples e direto”, diz a advogada brasileira Elisa Tófoli. “Um papa bom, normal, humilde, um de nós.” “Estava afastada da Igreja, apesar de católica”, diz a vendedora italiana Chiara Angeli. “Papa Francisco me inspirou a voltar.” A Igreja de Roma estava com a popularidade e a credibilidade comprometidas. Bastaram poucos dias para o argentino transformá-la, novamente, em uma luz universal. “Agora respiramos uma mudança que a igreja e o mundo necessitavam”, diz o padre espanhol Antonio Huelga. “Um papa quebrar essa normalidade centenária é uma grandeza inesperada”, afirma a irmã Cecília, de Livigno. No Vaticano, as lojas de souvenirs, que antes preferiam João Paulo II a Bento XVI, são inundadas de produtos de Francisco, um homem que prega o desapego e o não consumismo.

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O encantamento é tal que pode se cometer um equívoco: Francisco é um homem bom, não bonzinho. Bergoglio sempre foi muito rigoroso e nada condescendente em questões de moral e doutrina. “Quem não professa a Deus, professa ao diabo”, disse, durante uma reunião com cardeais, dois dias depois de ser escolhido papa. Um jornal italiano publicou que ele teria expulsado o cardeal emérito de Boston, Bernard Law, acusado de acobertar centenas de casos de pedofilia de religiosos de sua diocese, da igreja Santa Maria Maggiore, em Roma. O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, negou a expulsão. De qualquer forma, o desconforto do encontro já dá pistas de que o novo pontífice irá lidar com bastante rigor com a chaga do abuso sexual na Igreja Católica.

O novo papa recuperou o estilo de simplicidade evangélico, tão presente no santo de Assis, também traduzidos em sua própria vestimenta (leia na pág. 73). “Na Argentina ele lavava os pés de portadores de HIV. Se permitirem, continuará a fazê-lo”, afirma padre Lindor Tofful, de Santa Fé. Especialistas dizem que o novo pontífice está resgatando o Concílio Vaticano II em toda sua plenitude. Isso pode ser observado quando, por exemplo, usa o termo bispo de Roma, e não papa, para se apresentar, ou impõe um estilo de assembleia nas missas, em que os fiéis são agentes das celebrações. O antigo cardeal de Buenos Aires é tão desprovido de cerimônia e afetação que protagonizou uma cena insólita nos últimos dias. Na segunda-feira , ligou para uma banca de jornal, em frente à Praça de Maio, no coração da capital argentina. Queria avisar aos donos, seus amigos, que não era mais necessário entregar os periódicos em sua residência. “Graças a Deus, Francisco continua Jorge”, disse Maria Elena Bergoglio, irmã do pontífice. Assim seja.

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Colaborou Suzana Borin