Rápido, rápido! Arrumem suas coisas. Vamos partir imediatamente!" Passava pouco das seis e meia da manhã da sexta-feira 8 de janeiro quando o "comandante Ramón", das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), entrou esbaforido no Convento Don Bosco, na pequena San Vicente del Caguán, para avisar a reportagem de ISTOÉ que iríamos "subir a montanha". Era a senha que esperávamos para conhecer o quartel-general das Farc, a organização guerrilheira mais antiga e mais poderosa da América Latina, que hoje controla quase metade do território da Colômbia. "Temos que correr porque o camarada Marulanda vai estar lá", justificou o comandante. Ramón se referia ao legendário Manuel Marulanda Vélez, o "Tirofijo" (tiro certeiro), líder máximo das Farc, considerado o guerrilheiro mais antigo do mundo. De certa forma, Tirofijo é uma espécie de Che Guevara que deu certo. Por isso mesmo, seu mito está envolto em mistério desde 1964, quando ele fundou a guerrilha marxista que hoje é a última de um gênero que no passado proliferou no continente. Desde então, Marulanda nunca mais foi visto em público. Ele já foi dado como morto dezenas de vezes. Sua última entrevista tinha sido publicada em 1988 por um jornal colombiano e há 12 anos não se conheciam fotos suas além daquelas tiradas pela própria guerrilha. E, naquele dia, os rumores sobre o paradeiro do veterano comandante tinham voltado a intrigar os corações e mentes dos colombianos. Tudo porque, na véspera, Tirofijo não comparecera à abertura das negociações de paz entre o governo colombiano e as Farc, ali mesmo em San Vicente del Caguán, 700 quilômetros a Sudeste de Bogotá.

Com Ramón na nossa cola, subimos no táxi que nos esperava e entramos numa estrada de terra pedregosa em direção a uma fazenda conhecida apenas como "La Hacienda", a poucos quilômetros da cidade. O local, soubemos depois, é de propriedade de simpatizantes das Farc que o emprestaram à organização. San Vicente e os arredores estavam coalhados de guerrilheiros, cerca de 1.200 deles, por causa das negociações de paz. Desde o ano passado, quando o governo retirou as tropas do Exército de cinco municípios da região – uma exigência da guerrilha para iniciar as negociações – San Vicente virou uma espécie de santuário das Farc, a tal ponto que foi batizada de "Farcolândia", uma espécie menos gloriosa de Sierra Maestra, a mítica base da Revolução Cubana. Guerrilheiros fazem fiscalização nas estradas e patrulham a cidade. Por isso, só a presença do comandante Ramón garantiu que passássemos sem problemas pela barreira que os rebeldes haviam montado ao longo do caminho. Foi o início de uma emocionante jornada de quatro dias vivida em pleno QG das Farc, uma reportagem que ISTOÉ conseguiu com exclusividade internacional, já que nenhum dos jornalistas dos veículos presentes em San Vicente – The New York Times, CNN, agência Reuters, AP e France Presse, entre outros – teve autorização para entrar no acampamento dos rebeldes.

Ao chegar à Hacienda, fomos apresentados a Jorge Briceño, conhecido como "Mono Jojoy", o chefe militar das Farc, um homem corpulento e bonachão que muitos dizem ser o "número dois" da organização insurgente. Armas modernas e caminhonetes Off Road "zero bala" mostram uma guerrilha muito bem equipada, que arrecada dinheiro através de sequestros e extorsões. Do lado de fora da casa, sentado num banco construído sob copas de árvores, estava ele, o famoso Tirofijo, ao lado de outros líderes das Farc, conversando com dirigentes esquerdistas estrangeiros. Mesmo um pouco gordo, Marulanda aparenta bastante vitalidade para quem beira os 70 anos e há mais de quatro décadas vive embrenhado nas selvas colombianas. Afinal, quando ele começou sua luta, na década de 50, Che Guevara era apenas um jovem médico idealista viajando pela América Latina. O semblante de Tirofijo é o de um camponês desconfiado e enrijecido. Mas seu figurino de guerrilheiro parece muito mais vistoso do que os andrajos que Che vestia nas selvas da Bolívia 30 anos atrás. Metido num uniforme camuflado, Marulanda ostentava, do lado direito do cinto militar, uma pistola guardada num coldre de couro. Do lado esquerdo, um grande facão dentro de uma bainha artesanal, típica dos habitantes locais, apetrecho usado por todos os guerrilheiros. Sobre seu ombro direito, uma toalha fazia as vezes de uma manta. O uso de uma manta sobre os ombros é um costume dos camponeses da região. O comandante tinha acabado de trocar figurinhas com outro guerrilheiro histórico, o ex-presidente da Nicarágua Daniel Ortega. No peito, Tirofijo ostentava uma condecoração dourada que acabara de receber de Ortega, a ordem Augusto Sandino (patrono da Revolução Sandinista de 1979).

Fomos avisados de que deveríamos esperar a nossa vez para falar com o líder máximo, embora a entrevista ainda não estivesse garantida. "Vocês têm que ter paciência", advertiu Ramón. "E, quando forem falar com ele, devem agir com naturalidade, como se fosse um bate-papo. Evitem gravar a conversa", aconselhou. No fim da tarde as esperanças de entrevistá-lo naquele dia já tinham ido para o espaço. Quando Marulanda entrou na casa, resolvemos abordá-lo diretamente:

– Comandante, somos jornalistas brasileiros convidados pelo Ramón. Viemos aqui para fazer uma reportagem sobre as Farc. O senhor poderia nos conceder uma entrevista?

O veterano guerrilheiro nos encarou com uma expressão desconfiada.

Não, não vai ser possível. Estou de saída. Já fiquei muito tempo aqui, preciso me esconder.

– E amanhã, pode ser?

Talvez. Conversem com o Raúl (o comandante Raúl Reyes, membro da direção das Farc e um dos porta-vozes da guerrilha nas conversações de paz). Minutos depois, quando Tirofijo já tinha sumido, o próprio Reyes nos informava:

OK, vocês vão com a gente para a base.

– Quando, comandante?

Agora mesmo. Vamos comer algo e partir em seguida.

Além de nós, apenas um grupo de comunistas estrangeiros foi autorizado a "subir a montanha". O sol já estava se pondo quando montamos na traseira de uma das quatro caminhonetes que compunham o comboio e partimos com destino à base, um acampamento cerca de 100 quilômetros da fazenda. O QG foi montado pelos guerrilheiros especialmente para o acompanhamento das negociações de paz. Cada veículo do comboio era escoltado por dois guerrilheiros armados com fuzis, que se informavam, através de rádios, sobre a segurança do percurso. A estrada de terra era péssima e empoeirada e a viagem durou quase três horas de sacolejo. Já passava das 21 horas quando chegamos ao local. O acampamento estava instalado sob uma floresta de árvores muito altas. À luz de lanternas, fomos encaminhados às nossas barracas, iguais às dos guerrilheiros: camas de tábua apoiadas em madeiras a 15 cm do solo, cobertas por um toldo e protegidas por um mosquiteiro. Estávamos exaustos, mas antes de dormir notamos uma luz de lampião iluminando um conjunto de barracas distante uns 20 metros das nossas. Para a nossa surpresa era o alojamento do comandante Marulanda.

Rotina militar Na primeira noite, dormimos diretamente sobre as tábuas porque não havia colchonetes suficientes. A dificuldade em pegar no sono nos permitiu notar que as atividades das Farc no acampamento começavam antes de o dia amanhecer. Naquele sábado, como em todas as manhãs, pontualmente às 4h20, os guerrilheiros já estavam de pé. O negrume da madrugada sem lua impedia que se visse uma viva alma, mas o som da contagem cadenciada – "um, dois, três, quatro; quatro, três, dois, um" –, repetida por todos, revelava que eles estavam fazendo ginástica. A disciplina é militar. Os guerrilheiros têm que fazer formação para tudo, até para comer. De tempos em tempos, se ouviam comandantes dando ordens: "Guerrilha, formar!, Guerrilha, dispersar!" Todos trabalham duro. Cortar lenha, por exemplo, é tarefa confiada às mulheres. Às 6 horas foi servido um cafezinho colombiano solúvel. Meia hora depois, veio o desjejum, bastante consistente – dois tipos de pães, uma xícara de chocolate e ovos mexidos. Apenas no penúltimo dia os ovos foram substituídos por um prato mais forte – piranha frita.

Os guerrilheiros são todos muito jovens, alguns menores de idade, recrutados entre famílias de camponeses pobres e sem perspectivas, como Alejandro, de apenas 15 anos. "Eu ainda estou aprendendo a usar armas", justificou. Dificilmente, aliás, eles se separam de suas armas – além do fuzil, carregam o facão, essencial para abrir caminhos na selva. Alguns também usam pistolas. "A arma é o melhor companheiro do combatente", ensina uma comandante, que apesar de ter endurecido não perdeu a ternura e possui uma coleção de CDs de música romântica colombiana, que ouve em seu CD-player. É marcante, aliás, a presença feminina no acampamento. São cerca de um quarto do contingente de 200 guerrilheiros. Ramón garante que a mesma proporção de mulheres é observada nas Farc. Numa das camas, "Vivian", 18 anos, mantinha os olhos fixos no espelho enquanto passava rímel nos cílios observada por uma amiga.

– Não é estranho se embelezar no meio da selva, quando a qualquer momento vocês podem sair para combater?

Claro que não! – disse Vivian arregalando os olhos. – A mulher tem que se manter vistosa e alegre em qualquer momento –, ensinava a moça, que está há apenas quatro meses nas Farc.

– Você tem namorado?

Sim, respondeu ela, meio sem jeito. Nosso namoro só tem oito dias. Ainda nem pedimos autorização para o comando –, contou, como se revelasse um segredo. Nesse momento, um guerrilheiro que parecia ser o chefe imediato das moças as chamou de lado. Murmurou qualquer coisa em tom de reprovação. As duas voltaram cabisbaixas. – Desculpe, mas não podemos mais falar.

Não temos muito tempo para o lazer, contou Richard, 20 anos, enquanto limpava seu rifle Galil. – Temos que nos dedicar aos estudos políticos e militares.

– E vocês nunca se divertem?

Às vezes, jogamos voleibol.

– E futebol?

Futebol não, porque pode machucar os pés, o que seria fatal para um combatente –, revela, enquanto brinca com uma maritaca. Richard, que vive com uma companheira de pouca conversa, minimiza as restrições impostas à vida cotidiana dos guerrilheiros.

Aqui somos obrigados a viver um regime militar, né? Até para coisas mais íntimas. Quando queremos nos unir a alguém, por exemplo, precisamos ter autorização do comandante imediato.

– Do que depende essa autorização?

Do comportamento de ambos, político e moral. Mas na maioria das vezes não tem problema, garantiu Richard, engajado nas Farc há oito anos.

– E dá tempo para namorar?

Claro. Mesmo aqui há tempo para tudo –, interrompeu Martha, 21 anos, casada há um ano com Juan, 22.

– E vocês pensam em ter filhos?

Ah, não, não é permitido –, esclareceu a jovem guerrilheira, que só lamenta não ter tido tempo de explicar a seus pais os motivos de sua opção.

– Vocês podem tomar bebidas alcoólicas?

Não, nos acampamentos vigora a lei seca. Somente em ocasiões especiais, como no Natal, os combatentes são autorizados a tomar uns tragos. Mas nada além de uma dose a cada hora –, explicou Ramón, que estava ouvindo a conversa. Descobrimos depois que só os comandantes podem beber seu uisquezinho.

 

Tecnologia revolucionária O acampamento combina elementos da mais avançada tecnologia com métodos rudimentares de sobrevivência na selva. Exemplo do primeiro caso são os computadores portáteis usados pelos comandantes – inclusive Marulanda. Um software especial permite a transmissão, via rádio, de mensagens cifradas escritas nos PCs. A energia elétrica do acampamento, usada nas barracas dos comandantes, é fornecida por um pequeno gerador. Uma antena parabólica instalada logo na entrada da base e dois aparelhos de tevê possibilitam aos guerrilheiros assistirem, duas vezes ao dia, aos noticiários da tevê colombiana, transmitidos às 12h30 e às 19h30. Entre um intervalo e outro, eles até se permitem dar uma espiadela em novelões e até em filmes "trash". Depois das 20 horas, todos devem ir para a cama. Vinte minutos depois, o gerador é desligado e vigora um verdadeiro "toque de recolher" no acampamento. Sentimos isso na pele logo na primeira noite, quando um sentinela apareceu entre nossas barracas. – Parem de conversar que já passou da hora –, ordenou.

No dia seguinte, fomos apresentados à faceta primitiva do cotidiano guerrilheiro, com uma boa dose de criatividade camponesa. Os cuidados com a higiene estão na ordem do dia. Um córrego que corta o acampamento foi canalizado e forma uma espécie de tanque de água corrente, usado para se tomar banho e lavar roupas. Os guerrilheiros deixam seus Kalashnikovs, M-16 e FAL num tablado de madeira que fica a alguns metros do tanque. Ninguém precisa tomar conta do arsenal. Quase sempre em grupo, eles lavam suas roupas e tomam banho de caneca. Homens e mulheres se banham lado a lado, apenas com as roupas íntimas, com a mesma naturalidade com que carregam seus fuzis. Não demonstram constrangimento, mesmo quando a reportagem resolveu fotografá-los. – Tudo bem. Também iremos tirar fotos suas quando vocês forem tomar banho –, ironizou uma guerrilheira. Na cozinha, onde todos têm que se revezar, as Farc aprenderam a utilizar um tipo de fogão inventado pelos vietnamitas durante a guerra contra os Estados Unidos. "A comida é preparada numa chapa de metal perfurado de tal forma que não deixa a fumaça se propagar excessivamente, evitando chamar a atenção do inimigo", explicou o "técnico" Pablo. O cardápio era simples, mas variava todo dia: carne ou peixe com batatas no almoço, com um suco de frutas. No jantar, uma sopa, sempre acompanhada de uma xícara de chocolate. Já os "banheiros" são talvez o quesito mais precário do acampamento. A pouca distância do acampamento, foram cavadas valas de pequena profundidade. Na hora de "dar a descarga", o método é o mesmo dos felinos: joga-se terra sobre os excrementos.

Na tarde de domingo topamos com Jimmy, um negro simpático e sorridente. Ele disse que era camponês e entrara voluntariamente na guerrilha, convencido por amigos de que era a única opção possível se quisesse ter um futuro melhor. Jimmy abre um largo sorriso para citar o único brasileiro de que ouviu falar: "O rei Pelé", diz, orgulhoso.

– Você matou muita gente em combate?

Sim, claro.

– Quantos foram?

Ah, isso não sei. Quando se está na luta, tudo é muito confuso. É quase impossível saber quantos morreram.

Frio na espinha Às 10 horas da manhã de segunda-feira, fomos surpreendidos por um ruidoso ronco de um helicóptero sobrevoando a região. O barulho do intruso fez com que dezenas de guerrilheiros, fuzis em punho, corressem agitados para a entrada da base. O barulho ensurdecedor do aparelho se misturava ao ruído das armas sendo engatilhadas. O helicóptero voava em baixa altitude, ameaçador. "Por aqui, por aqui! Vamos, vamos rápido!", ordenou um comandante. "Olhem! Ele está vindo para cá!", berrou o outro. Com dois cinturões carregados de balas, Jimmy já tinha colocado o aparelho sob a mira de sua poderosa metralhadora M-60. Das caminhonetes, os comandantes se comunicavam através dos rádios. Foram apenas alguns minutos – um, dois ou cinco, impossível precisar – mas que pareceram uma eternidade. Foi o momento mais dramático da nossa estada, segundos que separaram a guerrilha da guerra. Para nossa sorte, o comando descobriu que se tratava de um helicóptero civil transportando delegados do governo colombiano para as negociações de paz com as próprias Farc, que estavam sendo realizadas em Machaca, uma cidadezinha não muito distante do acampamento. Ao que parece, o aparelho sobrevoou o local inadvertidamente.

 

Conversando com Marulanda Tirofijo estava bem mais à vontade em seu QG. Ele até se permitiu trocar a farda por roupas civis. Marulanda se aproximou do grupo de estrangeiros que tomava café e começou a conversar descontraidamente. "O Brasil, fabrica muitas armas?" Explicamos que a indústria bélica brasileira já foi muito importante em termos de Terceiro Mundo, que ainda produz blindados e lança-foguetes, mas perdeu muito de sua força. Depois a conversa mudou para o destino do general chileno Augusto Pinochet. "Esse caso mostra a incapacidade de nossos povos para julgar seus tiranos. Os chilenos é que deveriam julgar Pinochet. Se não conseguem, é porque não têm competência política", diz Marulanda com indisfarçável indignação. A conversa ficou mais amena quando um mexicano disse que precisava trocar seus dólares. "Tenho alguns pesos falsos, se você quiser", brincou o comandante Joaquín Gómez, comandante do Bloco Sul e um dos porta-vozes das Farc nas negociações. O clima se descontraiu de vez quando Gómez começou a contar piadas. "Essa é soviética. Vocês sabem qual é a semelhança entre nossos pais e nossos chefes? É que não temos o direito de escolhê-los", disse, arrancando gargalhadas de Marulanda.

 

Espionados Na terça-feira 12, depois de quatro dias sem contato com o mundo exterior, conseguimos uma condução para sair do acampamento. Enquanto esperávamos, ficamos conversando com um grupo de guerrilheiros, que a essa altura já estava totalmente à vontade com a reportagem. "Então não há luta armada no Brasil?", perguntou um deles, incrédulo. Explicamos que o último movimento guerrilheiro ocorrera na década de 70, no Araguaia, e fora exterminado pelo Exército. Mas não havia mais tempo para digressões. Antes de partir, tivemos a informação de que o Exército estava revistando todos que passavam pela estrada que liga San Vicente a Florencia. Voltamos numa velha caminhonete escoltada por uma única guerrilheira. Três horas depois, já estávamos em San Vicente.

Mal deu tempo para tomar o primeiro banho civilizado em dias. "Ei, muchachos, caiam fora daqui o mais rápido possível. Soubemos que o serviço de inteligência do Exército tem conhecimento de que dois jornalistas estiveram com o Marulanda", informou-nos outro aflito comandante que soubera da nossa volta e nos encontrara no hotel. "Também temos informações de que eles têm agentes infiltrados entre seus colegas." Começamos a esconder os filmes, as anotações e as fitas. Guardá-los na cueca talvez fosse uma boa idéia. "Não, não façam isso, vocês estão loucos. Vocês têm credencial da Presidência, não têm?", referindo-se ao credenciamento obtido junto ao governo para a cobertura das negociações de paz. "Usem-na e digam que vieram apenas para cobrir as negociações. Se os soldados descobrirem alguma coisa escondida, aí sim é que vocês estarão fritos." Pegamos um táxi para Florencia, onde tomaríamos o avião para Bogotá. No percurso de três horas, atravessamos duas barreiras das Farc e, vários quilômetros adiante, duas do Exército. Às 18 horas, quando o carro foi obrigado a parar na longa fila da última barreira militar, notamos os braceletes nos ombros dos soldados com a inscrição Batalhão de Caçadores.

– Batalhão de Caçadores? Não são da tropa que foi retirada de San Vicente?

São sim –, disse o motorista. – Caçadores de camponeses, isso sim. Eles devem estar com muita raiva porque tiveram que cair fora. Por isso estão fazendo essa palhaçada. Eles viviam nos humilhando em San Vicente.

Um soldado fez sinal para o carro parar. Ao ver as credenciais, o oficial nos mandou seguir adiante. A sorte estava do nosso lado. A má sorte, entretanto, continuava a perseguir a sofrida Colômbia. Na quarta-feira 20, uma semana depois da nossa chegada ao Brasil, as Farc acusaram o governo de conivência com os grupos paramilitares e interromperam, pelo menos provisoriamente, as negociações de paz.

 

Fôlego de gato

 

O camponês Pedro Antonio Marín tinha somente 17 anos ao eclodir a guerra civil na Colômbia, em abril de 1948, quando os conservadores no governo mergulhariam o país numa carnificina que ficaria conhecida como "La Violencia". Marín gostava de música, tinha aprendido a tirar algumas notas ao violino, mas achou melhor aprender datilografia. Acabou tendo de fugir da repressão, numa trajetória que não terminou até hoje. Integrado aos grupos guerrilheiros liberais – depois comunistas –, Marín ganhou o codinome de "Tirofijo", pois sempre era o primeiro colocado nos exercícios de tiros. Em dezembro de 1950, o sindicalista Manuel Marulanda Vélez, acusado de subversão, foi morto sob tortura pela polícia. Por sugestão de seus camaradas comunistas, Marín adotou o nome daquele mártir. Nascido em 1930 na Província de Génova, 100 anos depois da morte do libertador Simón Bolívar, como gosta de lembrar, Marulanda é hoje o último dos grandes líderes guerrilheiros ainda em atividade. Nesta entrevista exclusiva a ISTOÉ, concedida no acampamento das Farc no meio da selva, Tirofijo reitera sua crença revolucionária e diz que o fato de o capitalismo estar mais forte justifica ainda mais sua opção de luta guerrilheira.

ISTOÉ – Por que o sr. se ausentou da abertura das negociações com o governo no dia 7 de janeiro em San Vicente del Caguán?
Manuel Marulanda – Eu não me ausentei… Nossos emissários estavam lá (os comandantes Raúl Reyes, Fabián Ramirez e Joaquín Gómez). Minha presença ali não incidiu na questão de haver ou não haver paz. O que incidirá é o que vai sair da mesa das negociações. Quem criou a expectativa da minha presença foram os meios de comunicação, não nós das Farc. Nunca prometemos a ninguém que eu estaria presente. Ao contrário, dissemos que não era certa minha presença. Não houve uma só declaração oficial do secretariado das Farc garantindo que Manuel Marulanda estaria no ato de instalação do diálogo.

ISTOÉ – Mas as Farc falaram que havia um atentado em curso contra o sr.
Marulanda Temos informações seguras de que isso estava sendo preparado por agentes do Estado. Temos provas de que se preparava um atentado para eliminar Marulanda e o presidente.

ISTOÉ – Qual a expectativa que o sr. tem em relação às negociações de paz?
Marulanda Eu creio que ainda é muito cedo para dizer o que vai acontecer no futuro. Admito que as negociações serão muito, muito difíceis. O governo tem um critério para uma política de paz, um desenho político, econômico e social para uma política de paz. Nós temos outro. Então, somos duas partes que estamos dispostas a conversar, ver no que poderemos coincidir.

ISTOÉ – As milícias paramilitares de extrema direita mataram quase 150 camponeses nos últimos dias. O sr. acredita que o presidente tenha vontade política para reprimir esses grupos?
Marulanda O presidente Pastrana tem de tomar medidas drásticas porque essas ações também se voltam contra ele. Ele tem um dilema muito sério. Ou enfrenta os paramilitares e os mete na cadeia ou continua a tolerar esses massacres. Se ele enfrentar essa gente, terá o nosso apoio e o de todo o povo colombiano.

ISTOÉ – O fato de o presidente Pastrana ter se deslocado para San Vicente del Caguán para as negociações significa um reconhecimento da força política das Farc?
Marulanda – Bem, teoricamente, creio que sim. O fato de o presidente ter desmilitarizado os cinco municípios e ter-se disposto a se encontrar com os chefes guerrilheiros já foi um reconhecimento de ordem política. Agora, temos de trabalhar na direção de sermos reconhecidos não só politicamente, mas como movimento beligerante. Porque as cartas estão na mesa, mas ninguém garante que não possa haver um rompimento nas negociações.

ISTOÉ – Um dos pontos das Farc nas negociações é a reforma agrária. Como essa questão se coloca?
Marulanda
A idéia de reforma agrária aqui é muito complicada porque é necessário expropriar as grandes propriedades dos latifundiários. Vai ser muito difícil avançar sobre o tema nas conversações de paz. Mas digo a vocês: a palavra é ex-pro-pri-a-ção. Então, não sei…, vamos ver.

ISTOÉ – Como é possível continuar pensando em revolução socialista depois do colapso do bloco socialista e do triunfo do capitalismo globalizado?
Marulanda (ri abertamente) É natural que tenhamos complicações. Caiu o Muro de Berlim, certo? O campo socialista supostamente dava apoio à maioria dos partidos comunistas e revolucionários. Em nosso caso, nunca recebemos nem exigimos esse apoio. Nem sequer conhecemos a União Soviética. Para nós, a queda do socialismo não significa que o capitalismo tenha resolvido os problemas da maioria das pessoas. Pelo contrário, eles se tornaram ainda mais agudos. Por isso, temos de continuar lutando. O fim do campo socialista não mudou em nada as duríssimas condições de vida do nosso povo. Esse é o ponto. Os problemas fundamentais das massas populares continuam sem solução. Temos de lutar com socialismo ou sem socialismo e independentemente do fato de que o capitalismo esteja mais forte ou não, porque são os pobres que têm de conseguir seu bem-estar. Não podemos esperar que alguém nos mostre como teremos de viver, somos nós mesmos que vamos definir isso através da luta revolucionária.