Na manhã da terça-feira 12, o presidente Fernando Henrique Cardoso estava animadíssimo com a perspectiva de umas férias de seis dias na paradisíaca praia do Saco, no litoral de Sergipe, na divisa com a Bahia. Durante o vôo do Boeing presidencial que o levou de Brasília ao Rio de Janeiro, onde faria uma escala da viagem, teve por longos 40 minutos um descontraído bate-papo com os presidentes do Senado, Antônio Carlos Magalhães, e da Câmara, Michel Temer. Falou mal do governador Itamar Franco e ouviu historinhas sobre o embaixador e escritor Gilberto Amado, que era conhecido por ter um ego tão grande quanto o de FHC. Indagado certa vez sobre o local de seu nascimento, Amado respondeu: "Os meus leitores acham que eu nasci na Grécia, mas quem me conhece sabe que eu sou mesmo é do Sergipe." A piadinha contada por Temer fez Fernando Henrique morrer de rir. O bom humor presidencial iria durar pouco.

 

Fim da ilusão Uma hora depois, estava no aeroporto do Galeão, quando recebeu um telefonema do ministro da Fazenda, Pedro Malan. O ministro contou que a queda do presidente do Banco Central, Gustavo Franco, mantida em sigilo desde o início da noite da sexta-feira 8, já era do conhecimento de bem-informados operadores do mercado. No Rio, a ética do político falou mais alto que a do sociólogo e o presidente negou mexer no câmbio e mudanças no comando da política econômica, minutos antes de tomar duas decisões: precipitar para a manhã da quarta-feira 13 o anúncio da substituição de Franco pelo diretor de Política Monetária do BC, Francisco Lopes, e viajar para Sergipe numa tentativa de mostrar tranquilidade e evitar o pânico dos investidores.

No roteiro do Palácio do Planalto, a saída de Gustavo Franco só seria divulgada no final da tarde da sexta-feira 15, depois que estivesse encerrado o pregão. Como costuma fazer em casos de grampo e de dossiês, talvez fosse o caso de o governo investigar quem vazou a demissão de Franco, já que a precipitação de sua saída não interessava nem ao presidente nem ao ministro da Fazenda. Na alça de mira de Fernando Henrique desde 10 de setembro, quando dobrou os juros à revelia do presidente, Franco estava convencido até a noite da sexta-feira 8 de que permaneceria no cargo. FHC acabou com essa ilusão. Franco estava em seu apartamento em São Conrado, no Rio, quando o presidente lhe comunicou que o pedido de demissão apresentado no final de 1998 havia sido aceito. O destino de Franco fora selado na véspera, numa reunião no Planalto entre Fernando Henrique, Malan, o chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho, e Francisco Lopes, quando ficou decidida a mudança da política cambial, o fim da era do real forte. A notícia abateu ainda mais Franco, já deprimido com a frieza de FHC diante das dificuldades da Erco Engenharia, empresa da família de sua mulher.

Na mesma manhã em que FHC se divertia no vôo para o Rio, Gustavo Franco fazia o percurso inverso. Na viagem para Brasília escreveu a nota que leu para a imprensa na manhã da última quarta-feira. Na noite da terça-feira 12, enquanto Franco esvaziava suas gavetas no BC, Malan e o secretário-executivo da Fazenda, Pedro Parente, seguiam para a residência oficial de ACM. Apadrinhados pelo cacique pefelista, Malan e Parente aproveitaram o jantar para lhe dar a notícia em primeira mão. Todos estavam tensos por causa de um dia de cão, em que a Bolsa de São Paulo caiu 7,61% e a fuga de dólares do País bateu US$ 1,2 bilhão. Na casa ao lado da de ACM, residência oficial do presidente da Câmara, o deputado Michel Temer reunia a cúpula do PMDB para discutir uma saída para o impasse provocado pela moratória de Minas. Mesmo tão próximos, dirigentes e ministros peemedebistas nada sabiam sobre a queda de Gustavo Franco. "Quando cheguei em casa, havia um recado de Malan, mas deixei para retornar na manhã seguinte", conta Temer, que só falou com o ministro às 9h da quarta-feira 13.

 

"Pois é, voltei" Outro grupo do governo, autointitulado Frente Desenvolvimentista, formado por ministros e parlamentares que criticam a política de juros, achava que a iniciativa de deixar o cargo tinha partido de Franco, sem o empurrãozinho do próprio FHC. Seus integrantes eram contra a saída do presidente do BC agora. Eles acreditavam que Franco tinha de arcar com o resultado de sua inflexibilidade. "Gustavo Franco pode até sair como herói. Quem pariu Mateus, que o embale", disse um ministro recém-empossado, que defendia o câmbio livre. De fato, Franco só ficou no governo enquanto pôde manter, a custa de um alto endividamento externo e interno, uma moeda sobrevalorizada. Depois do jantar com ACM, Malan e Parente voltaram ao Ministério, onde entraram a madrugada telefonando para autoridades do FMI, do governo americano e para o presidente, ainda na Praia do Saco. FHC também disparava ligações. "Precisamos tomar providências para evitar pânico no mercado", orientou FHC a Malan e a Clóvis Carvalho.

As férias no litoral sergipano limitaram-se a um rápido passeio de bugre, a um mergulho no mar e a um carteado com o chefe do cerimonial da Presidência, Walter Pecly, e o professor e amigo Leôncio Martins Rodrigues. Às 10h30 da quarta-feira, o presidente já estava de volta a Brasília. Depois de trocar de roupa no Palácio da Alvorada, telefonou a Michel Temer para pedir o seu empenho nas votações das medidas do ajuste fiscal que, horas depois, foram aprovadas. "Pois é, voltei", comentou Fernando Henrique, desolado com a interrupção das suas férias.

 

"Batendo o pino" No Congresso, atribuía-se a viagem de FHC a desentendimentos com a primeira-dama, Ruth Cardoso, que foi descansar com os netos e o filho Paulo Henrique na França. Amigos íntimos do casal presidencial negam essa versão. "A verdade é que o presidente está muito cansado, está batendo o pino", disse um assessor palaciano. Na tarde da quinta-feira, em vez de voltar à praia, Fernando Henrique foi para sua fazenda no município mineiro de Buritis. O presidente saiu do Planalto às 17 horas irritadíssimo com o diretor de fiscalização do BC, Cláudio Mauch, que, uma hora antes, fora à sala de imprensa comunicar uma espécie de aviso prévio. Alegando razões de ordem pessoal, Mauch comunicou que sairia do BC dentro de um mês e meio. O anúncio do trapalhão Mauch aumentou o nervosismo no mercado. O presidente não achou graça nenhuma no gesto de Mauch, mas, sobre o episódio, repetiu para um amigo outra historinha que ouvira de Temer no vôo para o Rio. O escritor sergipano Gilberto Amado, de maxilar protuberante, tinha dificuldades em mastigar com a boca fechada. Um dia, almoçando com o amigo Oswaldo Aranha, ouviu do ministro de Getúlio Vargas a reprimenda: "Gilberto, não coma com a boca aberta." Rápido no gatilho, o escritor respondeu: "Já no seu caso, Aranha, eu aconselho que mantenha a boca fechada sempre." Como recado, a blague presidencial se aplicou ao diretor do BC, que retornou ao governo no dia seguinte, mas também poderia servir a investidores estrangeiros e cidadãos brasileiros que terminaram a semana boquiabertos com a guinada na política econômica.

RESSENTIDO Gustavo Franco deixa o auditório do Banco Central ao terminar o anúncio de sua demissão, na quarta, 13. Cinco dias antes ele foi informado de que sairia, mas sua queda só deveria ser divulgada na sexta 15

LEOPOLDO SILVA

O caso da empreiteira

Ao deixar a presidência do Banco Central, Gustavo Franco trocou a crise econômica do País por uma crise familiar. A empreiteira Erco, de sua mulher, Cristiana Laet, passa por maus momentos. Especializada em fazer obras para o setor público, a empresa que há cinco anos está mal das pernas foi atingida em cheio por um dos principais problemas do setor: a inadimplência dos governos. A preocupação com o rombo da Erco era tão grande que Franco comentou o assunto com o presidente, na quinta-feira 7. FHC ouviu as lamúrias do ex-colaborador e calou. Temia que o caso fosse usado contra seu governo. Uma semana depois, Franco justificava sua saída. "As razões para isso são, em primeiro lugar, de ordem pessoal", afirmou no discurso de despedida.

Se o tucano-mor virou as costas para o drama da Erco, Gustavo Franco não tem o que reclamar de Marco Aurélio Alencar, seu primo em primeiro grau e ex-secretário estadual de Fazenda. Na longa lista dos empreiteiros que têm dinheiro a receber do Estado em 1998, último ano da gestão de Marcello Alencar, não consta o nome da Erco. A notícia fez com que os grandes empreiteiros do Rio ficassem com o trator atrás da orelha. Afinal, a Queiroz Galvão, Odebrecht e Carioca Christiani-Nielsen, grandes empresas, estão entre as 30 que sofreram calote do ex-governador – um montante de cerca de R$ 300 milhões. A empreiteira da mulher de Gustavo mantinha outras relações com o governo de Alencar. "Ela tem rabo preso por causa da caixinha do Estado", acusa o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil do Rio, Antonio Felix. A Erco colaborou com a campanha vitoriosa ao governo do Estado em 1994.

A empresa foi fundada pelo avô de Cristiana, Ivan da Costa Pinto. Boa parte das dificuldades financeiras originou-se justamente nos contratos com o governo carioca. A empresa contava também com R$ 15 milhões relativos a um contrato com a Prefeitura do Rio para remodelar parte da avenida Brasil, que acabou não acontecendo. A falta de dinheiro fez com que a empresa saísse do consórcio Tebe, formado por quatro construtoras para administrar 156 quilômetros de estradas em São Paulo, por não ter recursos para fazer os investimentos necessários. Cristiana estaria afastada da empresa desde agosto do ano passado. O executivo Osvaldo Luís Cardoso, que responde atualmente pela Erco, não quis falar com ISTOÉ.