Sempre que fazia check-in em hotéis, o cineasta e publicitário paulistano Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, um
dos melhores e mais comentados filmes do ano, cravava no
registro de entrada a profissão de arquiteto. Não era uma artimanha para se manter indigitado. Apesar de ser mais conhecido até então
no meio da propaganda e de ser
um dos sócios da maior produtora do ramo no País, a O2, de fato Meirelles, 47 anos, é arquiteto de formação. Mesmo que até hoje só tenha assinado um projeto, o de
sua própria casa, na Granja Viana, zona sudoeste de São Paulo, onde vive com a mulher, a atriz e bailarina Cecília Meirelles, e os filhos
Carolina, 17 anos, e Kiko, 14. “Não me considero um publicitário”, afirma ele, sentado numa das poltronas usadas na campanha da Brastemp,
que hoje decoram sua espaçosa produtora. “Não estudei publicidade
e não entendo bulhufas de market share”, diz o premiado diretor, autor de mais de mil spots e laureado com cinco palmas de ouro no Festival
do Filme Publicitário de Cannes. “O que sei é fazer filmes.”

Sabe tanto que conseguiu transpor para as telas, de forma assombrosa e com invejável senso de ritmo, o caudaloso livro de Paulo Lins sobre o nascimento do narcotráfico nas favelas cariocas. Mais do que isso, soube retirar de seu elenco de amadores, selecionados em comunidades carentes, interpretações arrepiantes, algo raro em se tratando de um diretor no terceiro trabalho – os dois anteriores foram Menino maluquinho 2 – a aventura (1996) e Domésticas – o filme (2001). Que ninguém tenha dúvida, portanto, sobre a profissão preferida de Meirelles no momento, atividade à qual vem se dedicando sem interrupções para qualquer comercial. E da qual só colhe louros. Com mais de três milhões de espectadores, Cidade de Deus é o filme brasileiro mais visto desde a chamada retomada da produção. “Não tinha nenhuma razão para imaginar que o filme pudesse fazer algum sucesso. É uma história violenta, só com atores negros e mulatos desconhecidos. Se passa em favela, não tem sexo, mulheres bonitas. É a própria receita do fracasso”, afirma.

Indicado para concorrer a uma das cinco vagas ao Oscar de melhor
filme em língua estrangeira, o longa-metragem já iniciou sua trajetória ascendente ao constar da lista dos melhores da The National Board of Review. Evitando o clima ufanista, Meirelles acha difícil seu filme ser selecionado. Oscarizável ou não, o prestígio internacional do diretor
anda em alta, desde a ruidosa repercussão de Cidade de Deus no
Festival Internacional do Filme de Cannes, em maio. No seu escritório,
32 roteiros estrangeiros aguardam apreciação. Vão de ficções científicas passadas na Rússia a dramas de judeus na Itália ocupada. Um deles, orçado em US$ 65 milhões, tem Robert De Niro cotado para o papel principal. Mas, afora a corrida do Oscar, Hollywood ainda não consta
da agenda do diretor. Por ora, ele só pensa no lançamento de Cidade de Deus, cujas datas de estréia no Exterior sabe de cabeça – 2 de janeiro na Inglaterra, 17 de janeiro nos Estados Unidos, 26 de fevereiro na França e 14 de março na Itália. “Faz dois anos que não paro de viajar.
Na última década, meu dia-a-dia aqui na produtora era fazer reuniões com clientes, vestido com roupinha de publicitário. Para fazer Cidade
de Deus eu me mudei para o Rio de Janeiro, fiquei um ano e meio de bermuda e descalço com aquela galera. Foi um ano muito feliz”, recorda.

Além do aspecto prático, o cineasta diz que a sua concepção de Brasil também mudou. “Uma coisa é você saber dos problemas desse apartheid social brasileiro sem ter qualquer envolvimento com a realidade”, explica. “De certo modo, Cidade de Deus funcionou como uma ponte emocional. Depois que você passa um ano convivendo com os moleques que vivem neste outro País, na hora em que você vê um deles na rua é diferente, você não o vê como um garoto de outro planeta.” Meirelles parece movido por aquela inquietação que leva a pessoa a procurar o outro, ou então querer sempre se reinventar, ser outra pessoa. Quando estudava arquitetura nos anos 70, por exemplo, ele programava filmes no cineclube da escola, editando uma revista de cinema que marcou época, a Cine olho. Tomou gosto pela coisa e logo já estava fazendo desenhos animados em super 8. “A gente queria fazer cinema, mas, como era muito caro, resolveu que o negócio era produzir vídeo. Juntamos cinco amigos, cada um casou US$ 8 mil, compramos uma câmera portátil, uma ilha de edição e montamos uma produtora.”

O que nasceu como uma aventura adolescente hoje faz parte da história da produção independente brasileira, a Olhar Eletrônico, de onde saíram vídeos antológicos, como Brasília, Marli normal e Garotos do subúrbio.
Foi tamanha a renovação na linguagem audiovisual que logo Meirelles
e os cinco sócios estavam fazendo televisão na Gazeta de São Paulo. Primeiro, o programa Antenas, “o pior programa da tevê brasileira”, segundo ele; e depois o 23ª hora, de Goulart de Andrade, aquele do bordão “Vem comigo!”. Para azar da turma, o programa foi tirado do
ar porque, num belo dia, eles pontuaram as chamadas externas com imagens da equipe às voltas com um carro quebrado. A marca do automóvel? A mesma do patrocinador do programa. “Foi uma pequena cagada de marketing”, lembra Meirelles. A primeira coisa a fazer, então, era aprender a vender o peixe. E eles tinham um ótimo produto, o repórter Ernesto Varela, incorporado pelo amigo Marcelo Tas, cuja linguagem foi levada para a publicidade no final dos anos 80 através
de uma personagem encarnada por Giulia Gam, também da turma.
“Depois desta campanha, as agências começaram a chamar uma atrás
da outra e a produtora explodiu. Em 90, acabamos com ela. Eu e o
Paulo Morelli nos juntamos a Andrea Barata Ribeiro e criamos a O2.”

Mesmo não se considerando um publicitário, foi na atividade de diretor
de comerciais que Meirelles diz ter aprendido tudo de cinema. “A vantagem da publicidade é que a gente copia tanta gente que acaba aprendendo como chegar na imagem que quer”, afirma. Tem também
o lado da prática diária. Em dez anos, dirigindo até sete comerciais
por mês, ele trabalhou com praticamente todos os fotógrafos e diretores
de arte do mercado. Sem falar do número de atores que passaram pela sua mão, quase 300 num cálculo rápido. Tudo isso, somado, resulta
numa experiência considerável, vinda também dos projetos paralelos
em televisão, como o programa Rá-Tim-Bum, da TV Cultura, que dirigiu, entre 1989 e 1990, o humorístico Comédia da vida privada, da Rede Globo, e a série Ética, também da Cultura. “Sempre dei umas ciscadinhas fora, mas desde Domésticas, praticamente não voltei para a propaganda.” Agora, ele anda às voltas com um novo projeto, Intolerância 2, que tem como pano de fundo a globalização. Hollywood, portanto, que espere. Por ora, Meirelles tem seguido o exemplo de
Walter Salles e Andrucha Waddington, outros assediados pelos estúdios americanos, que têm sistematicamente declinado convites parecidos.
Ele tem também acatado o conselho do experiente diretor australiano Phillip Noyce, de Jogos patrióticos, para quem o cineasta tem muito
mais a fazer no Brasil. Como um Mefisto às avessas, sempre que Noyce encontra com Meirelles em festivais o cumprimenta com o pedido: “Fernando, don’t go” (Fernando, não vá). Melhor para o País.