A comoção dos brasileiros, a euforia popular e o otimismo internacional dão a medida
exata do significado da vitória
de Luiz Inácio Lula da Silva:
um triunfo histórico sem precedentes. “Um presidente pobre de um país de pobres”, estampou o jornal argentino Página 12 no dia seguinte
à eleição, resumindo a importância da chegada
de um trabalhador ao Palácio
do Planalto. O feito do ex-líder operário deu uma injeção de ânimo até nos dirigentes e na população
de outros países, principalmente nos nossos sofridos vizinhos da
América Latina. Para eles, Lula e o PT representam a idéia de que
a esquerda não precisa ser populista nem dar medo nos investidores
do Primeiro Mundo. O presidente eleito foi saudado pela comunidade internacional como um estadista, alguém com capacidade para liderar
a implantação de um novo modelo deste lado do mundo, algo como
uma “quarta via”, a versão tupiniquim da esquerda européia em tempos
de globalização. “Lula é um líder do século XXI”, atestou o insuspeito diretor-gerente do FMI, Horst Köhler, em visita ao Brasil.

Quando a maior potência latino-americana anuncia que priorizará as relações com seus conterrâneos, acende uma centelha de esperança para os países mergulhados em crises econômicas e sociais, como a Argentina, o Uruguai, a Venezuela e a Colômbia. Nossos maiores inimigos no futebol, esporte que o presidente eleito gosta de jogar, os argentinos agora olham para os brasileiros com admiração – não só pelo pentacampeonato, mas também por nossas perspectivas políticas. Os rivais da bola ouviram de Lula, em visita ao país no dia 2 de dezembro: “Os argentinos não têm o direito de deixar de lutar”, uma frase bem ao estilo de um líder político que não esmoreceu, mesmo depois de três derrotas. Era tudo o que nossos “hermanos” queriam ouvir. Afinal, junto com um pouco de inveja, há também uma boa dose de esperança.

Desde que foi eleito, no dia 27 de outubro, Lula tem dado sinais de que pretende fazer um governo para ficar na história. “O mercado deve saber que os brasileiros têm de comer três vezes ao dia”, sentenciou, dando o tom de que as promessas de campanha continuam valendo.

O anúncio de que o combate à fome seria prioridade de seu governo causou excitação nos governantes do Primeiro Mundo e em entidades como a ONU e a Unesco, que de imediato aderiram à idéia, reiterando ainda que outros países poderiam levantar a mesma bandeira. “Fiquei bastante impressionado com a visão de Lula no que se refere ao combate à fome e à desigualdade social,” elogiou Köhler, do FMI. Ao avisar, horas depois do resultado da eleição, que criaria a Secretaria de emergência Social, Lula sinalizou que privilegiaria, pelo menos de início, a tentativa de pôr fim às mazelas sociais brasileiras. E não cedeu, até o último instante, às pressões para anunciar os nomes da equipe econômica. Foram muitos dias de espera para se saber quem iria mandar na economia brasileira. Prova de que não errou a mão ao guardar o segredo é que o mercado nem se abalou, como previram analistas apressados e investidores gananciosos. Durante a campanha, o chamado terrorismo econômico tentou atingir Lula – “Se ele ganhar, será o caos”, chegou a vaticinar o megainvestidor George Soros –, mas o intento malogrou. Lula soube como agir diante de percalços como este, driblando com maestria os adversários e, como todo bom jogador, imobilizando os oposicionistas mais perigosos.

A família Lula – O resultado final da partida é mérito do próprio presidente eleito. Numa trajetória que lembra, em muitos momentos, a de Felipão, Lula começou desacreditado no campeonato eleitoral. Carregava o estigma do favorito marcado para perder. Desde o início do ano, Lula foi impondo sua vontade. Sempre tentou jogar um futebol-arte, fugindo das botinadas e não entrando em divididas. De olho na platéia de milhões de eleitores, ignorava os críticos. Antes de entrar em campo, foi preciso vencer dentro do próprio time. Em março de 2002, Lula enfrentou a prévia do PT para a escolha do candidato e derrotou o senador Eduardo Suplicy (SP) – que obteve pouco mais de 15% dos votos da militância, a maior resistência que Lula já encontrou nas suas três disputas eleitorais. O então candidato sentiu-se livre para abusar das prerrogativas de líder inconteste e ditou suas condições: a campanha seria profissional. “Não podemos traçar estratégias baseadas no ‘eu acho, eu penso’”, alertou. A decisão de dar todo o poder ao marqueteiro Duda Mendonça encontrou oposição ferrenha dentro das alas mais radicais do partido. O mais surpreendente, no entanto, ainda estava por vir. Em junho, a tabelinha com o Partido Liberal para a aquisição do passe do senador José de Alencar (MG), hoje vice-presidente eleito, deixou a torcida boquiaberta.

A partir daí, estava claro o caminho traçado por Lula e seus correligionários – abandonar a extrema esquerda e caminhar rumo ao centro –, que tinha como principais estratégias a oderação do discurso e a formação de alianças. Ampliar a base de apoio em todo o País
foi a principal tarefa da equipe, capitaneada pelo deputado José Dirceu, presidente do PT. Políticos de peso, como o senador José Sarney (PMDB-AP) e o governador de Minas Gerais, Itamar Franco (sem-partido), foram cooptados para a causa já no primeiro turno. O presidente da Câmara, Aécio Neves (PSDB), governador eleito de Minas, não vestiu a camisa do time da estrela vermelha, mas também não atrapalhou as jogadas de Lula. Outros, como o senador eleito Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), viraram a casaca só para ter o gosto de ver o escrete tucano derrotado. Depois de uma campanha de alto nível, a partida parecia ganha, mas um gol do adversário tucano José Serra, aos 45 minutos do segundo tempo, levou a decisão para a prorrogação. Um clássico: de um lado, o bicampeão PSDB; de outro, o PT, partido que desde o início liderou a oposição ao governo de Fernando Henrique Cardoso. A torcida entrou em campo para empurrar os eleitores e conseguiu.

Lula ganhou aliados como Ciro Gomes (PPS) e Anthony Garotinho
(PSB), candidatos derrotados na primeira fase. O presidente
eleito superou obstáculos considerados intransponíveis, como a
conquista de uma fatia do eleitorado que o rejeitava por sua falta
de diploma, pela origem humilde, por pertencer ao PT.

Destino original – A marcha de Lula ao longo de 2002 foi marcada por aquela que é apontada pelos amigos como sua principal virtude: a persistência. A mesma que fez com que ele não seguisse o destino comum dos miseráveis retirantes nordestinos. Para um pernambucano da antiga Vargem Comprida – ex-subdistrito de Garanhuns, hoje Caetés –, que aos sete anos fugiu da seca com a família viajando 13 dias num
pau-de-arara rumo a São Paulo, tornar-se presidente da República é
uma façanha. Lula chegou lá porque abusou de sua capacidade de diálogo, característica que fez dele o mais importante líder operário
da história. “Sei que tem gente que não gosta de mim, mas não
me lembro de ter feito algum inimigo na vida”, costuma dizer.

A infância teve tudo de ruim que o Brasil pode oferecer aos miseráveis filhos da terra: fome, seca, casa de barro, trabalho desde criança, pai violento. Ainda em Garanhuns, o menino juntava água da chuva para beber. Já em São Paulo, foi engraxate e vendedor de tapioca até conseguir seu primeiro emprego, de office-boy. A alegria de Lula, aos dez anos, era poder comer um sanduíche de mortadela e tomar um copo de tubaína depois de fazer brilhar os sapatos dos transeuntes. Ele gosta de dizer que o curso de torneiro mecânico do Senai, que concluiu em 1963, foi uma das melhores coisas de sua vida: “Por causa dele pude ganhar mais que um salário mínimo, comprar uma geladeira, um carro. Eu me sentia um cidadão.” No dia da formatura do curso, usou terno e gravata pela primeira vez, mas o orgulho do adolescente de 15 anos era poder voltar para casa com o macacão sujo de graxa depois de um dia de trabalho, mesmo que fosse necessário simular a sujeira, como fez algumas vezes para agradar à mãe, Eurídice, a dona Lindu. O primeiro pedido de aumento recusado resultou em outro pedido, o de demissão, gesto que já antecipava o inconformismo do jovem Luiz Inácio.

Quinze anos depois, em 1978, Lula surgia como líder das greves dos operários da região do ABC paulista, ainda em plena ditadura militar. O filho de dona Lindu era então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo do Campo e Diadema (hoje do ABC), posto que havia conquistado três anos antes com 92% dos votos da categoria. O País, governado pelo general Ernesto Geisel, vivia um jejum de dez anos de greves operárias quando nasce o chamado novo sindicalismo: o primeiro passo foi a paralisação da fábrica de caminhões Scania, no dia 12
de maio. Exigiam reajuste dos salários. De São Bernardo, onde estava instalada a empresa sueca, o movimento contagiou toda a região.
Era uma reivindicação “ordeira”, nas palavras de Lula, sem violência
ou quebradeira nem ligada às organizações de esquerda. Resultado:
cerca de 150 mil trabalhadores cruzaram os braços.

A região do ABC e o Brasil viam nascer a liderança de Lula, e ainda veriam aquele torneiro mecânico discursar para 100 mil grevistas, no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo, naquela que se
tornou uma das mais simbólicas passagens de sua vida. Por essa
s e outras, em fins da década de 70,
o metalúrgico mais famoso do País era visto como um comunista assombroso.

Por diversas vezes, Lula teve de negar que fosse simpático à causa. Certa vez, perguntado se era marxista, respondeu, irônico: “Não, sou torneiro mecânico.” Preso em abril de 1980, ele passou 31 dias numa cela do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops. A essa
altura, começava a se acostumar a ser manchete de jornais, capa de revistas e a dar autógrafos nas ruas. Lula cresceu e apareceu mais que o próprio novo sindicalismo, do qual foi o principal mentor. Mais tarde, o mesmo aconteceria em relação ao PT, partido que fundou em 1980 e se tornaria a maior legenda de esquerda do continente. Começava ali a escalada política que culminaria na sua eleição em 2002.

Real politik – Há exatos 20 anos, ele debutava na disputa eleitoral, candidatando-se ao governo de São Paulo. Ficou em quarto lugar,
mas aprendeu muito sobre o mundo da política partidária. Ampliou
sua projeção ao discursar em comícios que reuniram milhares pelo
Brasil durante a campanha diretas-já, em defesa da volta de eleições para a Presidência, em 1984. Dois anos depois, foi o deputado federal mais votado do País, com 650 mil votos, eleito para representar São Paulo na Assembléia Constituinte. Aos poucos, Lula foi construindo, ajudado pela organização do partido e por seu inegável carisma, a imagem de principal líder da esquerda brasileira. Em 1989, na primeira eleição direta pós-regime militar, foi candidato ao Planalto.

“Meu primeiro voto para fazer brilhar nossa estrela”, dizia o jingle de campanha que se tornou hino da militância e, este ano, foi recuperado por Duda Mendonça. Lula não chegou lá, como dizia o famoso lema. Perdeu por 6% de diferença para Fernando Collor de Mello. Mas protagonizou uma campanha inédita no País, regada pelo tom emocional. Mobilizou multidões em comícios. Ele já era identificado como uma
espécie de símbolo do Brasil, por sua origem humilde. Desde aquele tempo, no alto dos palanques, se emocionava ao lembrar a figura mais importante de sua vida, dona Lindu. Com a cara e a coragem, a mãe
de Lula criou oito filhos, mesmo sem a ajuda do marido, que a
abandonou quando ainda estava grávida do futuro presidente.

Mesmo não vencendo o pleito de 1989, Lula surpreendeu. Não
constava da lista de favoritos, mas durante a campanha, com
poucos recursos, subiu nas pesquisas e deixou para trás políticos
como Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e Mário Covas. No ano
anterior, havia rodado o País de norte a sul, nas chamadas Caravanas
da Cidadania. Andou de ônibus, carros, barco, trem e avião. Não fosse
isso, hoje não diria com tanta convicção: “Ministro meu não vai ficar
em gabinete, tomando decisões baseadas só em estatísticas. Vai
viajar, conhecer as pessoas que vivem neste país.”

Uma moeda no caminho – Se nos anos 80 Lula era o líder sindical,
na década seguinte ele se transformou no maior líder popular do País.
Foi nesta condição que se lançou candidato em 1994. Entrou na disputa em clima de “já ganhou”. Mas o presidente Itamar Franco surpreendeu
o candidato do PT ao lançar o Plano Real, que foi o algoz da nossa vergonhosa inflação. FHC, o candidato oficial, disparou no final e
venceu fácil, no primeiro turno. Lula, convencido de que deveria se preparar para a eleição de 1998, criou o Instituto Cidadania, ONG na
qual passou a coordenar grupos de estudos para a elaboração
de projetos governamentais. Muitos petistas tinham dúvida se Lula deveria lançar-se candidato novamente. O desgaste da imagem do
líder, causado por duas derrotas consecutivas, aliado à popularidade
de FHC a à crise econômica que se abateu sobre o País, indicava que
a campanha seria duríssima. Ainda assim, Lula tentou mais uma vez. Ganhou, sim, experiência, que ainda lhe seria muito útil em 2002.

No ano em que, finalmente, “a esperança venceu o medo”, como
disse o próprio Lula, colheu quase 53 milhões de votos. A festa da
vitória parecia mesmo final de Copa do Mundo. Quando Lula contou
ao primeiro-ministro britânico, Tony Blair, por telefone, que a comemoração tinha virado carnaval, ouviu: “Eu queria estar aí, e
não aqui em Londres.” Enquanto Lula recebia os cumprimentos formais
de chefes de Estado, multidões se aglomeravam em várias cidades
do País, numa mostra do quão assediado estava fadado a ser o presidente eleito. Por onde vai, são beijos, abraços, autógrafos, presentes, como um verdadeiro ídolo popular, uma espécie de
Getúlio Vargas do século XXI. O jornal francês Libération traduziu a expectativa: “Para sair da crise, os brasileiros crêem no milagre Lula.”