O mangue beat, movimento musical pernambucano que tinha como figura de maior expressão o compositor Chico Science – morto em fevereiro de 1997, aos 30 anos -, continua rendendo frutos. O sucesso dessa mistura de rock, rap, coco e maracatu abriu as portas na mídia para a música pernambucana, com seus mais diferentes ritmos. Chegou a ultrapassar fronteiras, quando o disco Da lama ao caos, de Science, ganhou espaço no Exterior nas paradas de world music. O movimento influenciou decisivamente dezenas de novos grupos de música e dança que começavam a surgir, principalmente na periferia de Olinda e Recife. Na divisa entre os dois municípios, os bairros de Alto José do Pinho e Peixinhos – onde Science e sua banda, Nação Zumbi, deram os primeiros passos – firmaram-se como centros de produção cultural.

A arte ali produzida é um retrato do subúrbio. Mostra também a relação do povo com o mar e a mistura da cultura nordestina com elementos afros e ritmos diversos. “A região é carente, mas tem um potencial artístico e cultural muito forte. Se produz e se canta de tudo por aqui. E o pessoal que está na estrada há muitos anos vai influenciando quem começa a aparecer”, explica Neilton de Carvalho, guitarrista do grupo Devotos do Ódio e também artista plástico (ou técnico das tintas, como ele prefere). “O auê começou com o Chico Science. Ele abriu espaço para a arte produzida na comunidade do Alto José do Pinho. Trouxe a televisão para filmar todo o mundo e tinha prometido criar um selo para gravar o nosso som, como o primeiro trabalho.”

Agora, um projeto chamado Alto Falante – coordenado por uma ONG do Recife, o Instituto Vida, que trabalha com arte, educação e cultura para adolescentes -, deve dar muito mais visibilidade ao movimento cultural dos subúrbios pernambucanos. Em outubro, foi lançado o disco Alto Falante, que reúne músicas de oito bandas dos bairros de Peixinhos e Alto José do Pinho, entre elas a Devotos do Ódio, Faces do Subúrbio, Matalanamão e Atiaia. Mais de cinco mil pessoas participaram do show de lançamento e o disco, até o momento, vendeu duas mil cópias. O projeto, no entanto, é muito mais ousado. Prevê a construção de um centro cultural no Alto José do Pinho, onde haverá aulas de música para adolescentes, oficinas de percussão e danças (popular e afoxé), estúdio de gravação, área para shows e ensaios e até uma rádio comunitária. Salas especiais serão montadas para a apresentação de workshops. O gerenciamento do centro cultural e da escola de música será feito pelo Instituto Vida. A obra está orçada em R$ 700 mil e vai ser bancada com recursos do BNDES e de fundações internacionais como a Kelloggs e a Vitae. No momento, o banco estatal começa a preparar a liberação da verba para a compra do terreno.

Pracatum – Para fortalecer o projeto, o Instituto Vida fez uma aliança com a escola de música Pracatum, criada pelo percussionista Carlinhos Brown para atender a 200 crianças no bairro do Candeal, em Salvador (BA). Adolescentes da ONG do Recife vão apresentar na Bahia um desfile de fantasias feitas com material reciclado. Em contrapartida, a banda Lactomania, dos alunos do Pracatum, que utiliza instrumentos musicais feitos com lata e partes de fogão, irá mostrar sua experiência no Recife. O Instituto Vida também aposta suas fichas no grupo de percussão Os Filhos do Lamento, que surgiu de um outro antigo, o Lamento Negro. Foi daí que saíram Chico Science e o Nação Zumbi. Na sede do conselho de moradores da comunidade do Azeitona, em Peixinhos – onde os esgotos correm pela rua de terra batida -, 30 crianças do grupo Os Filhos do Lamento têm aulas de percussão e aprendem a fabricar instrumentos musicais, como surdo e repique. Outras 30 aprendem dança de rua e capoeira. “Essa região é um caldeirão de cultura”, garante a psicóloga Lúcia Helena Ramos, coordenadora do Instituto Vida.

A frase não é mera retórica. Além do sucesso musical dos herdeiros do mangue beat, grupos de dança afro como o Gazela Negra e o Majê Molê (crianças que brilham, na língua iorubá) fazem muito sucesso nos subúrbios de Olinda e Recife. O Gazela Negra, que também ensaia na comunidade do Azeitona, surgiu com o objetivo de tirar crianças da rua. Após os ensaios, as 43 meninas do grupo recebem sempre uma sopa. “Minha mãe fica muito orgulhosa ao ver eu dançar. E o professor, que tem a cintura muito mais mole que a gente, também é muito paciente”, afirma Genereci de Miranda, 12 anos. “Meu sonho sempre foi dançar. Assim que for possível, vou trazer meu filho aqui para aprender capoeira”, diz Ana Lúcia, 20 anos, e mãe de um garoto de um ano e meio. O Majê Molê, outro grupo famoso, tem 20 integrantes (12 dançarinas e oito músicos) e já recebeu convites para apresentar-se no Chile. Muitos de seus componentes, no passado, viviam na rua. Hoje, gastam suas energias com a dança.

Morros e Mangues – Mas os adolescentes do Recife já exportam o seu know-how, graças, principalmente, à criatividade esbanjada na montagem de fantasias do tipo Carmem Miranda, Oxum e mulher guerreira feitas pelos adolescentes do projeto Arte no Lixo. Eles usam apenas latas, plásticos, cola, jornais e revistas velhas. Todo o ano, uma semana antes do Carnaval, é realizado um desfile no Mercado Pop, no Recife, para a apresentação das peças. Agora, com a ajuda do estilista Eduardo Ferreira, os artistas da moda vão criar uma grife do subúrbio chamada Morros e Mangues. Os trabalhos serão vendidos e vão gerar renda para os adolescentes. “Para criar as roupas, a gente faz pesquisas e visitas a museus”, explica o jovem Fábio Alves Costa, 18 anos, que deseja ser estilista. “Essa chance de aprender moda, música e dança é muito boa. Melhora muito a vida da gente”, garante Lígia Neves, 15 anos, que também se tornou vocalista de uma banda de forró, a Chamego Arrochado. “Desde os dez anos, eu imitava a Daniela Mercury e queria fazer alguma coisa em termos de arte.” O sucesso dessas experiências mostra que elas podem ser reproduzidas, com êxito, em todo o País. A arte, afinal, é uma forma privilegiada de levar cultura e cidadania para jovens e adolescentes.