Bastaram três dias de investigação da CPI do Narcotráfico no Espírito Santo para começar a ruir o império montado no Estado pelo todo-poderoso presidente da Assembléia Legislativa, José Carlos Gratz (PFL). O relator da CPI, deputado Moroni Torgan (PSDB-CE), avalia que a comissão já tem provas de uma aliança entre um consórcio de banqueiros do jogo do bicho e a Scuderie Le Cocq, sucedânea do Esquadrão da Morte, ligando-os ao deputado Gratz e a uma rede de políticos, juízes, advogados, empresários e policiais. Nesta quarta-feira 15, a CPI dará o primeiro passo para a cassação do mandato do deputado estadual, pedindo seu indiciamento por participação no crime organizado. A comissão aposta que mais dados sobre o império de jogatina de Gratz e a estrutura do crime no Estado vão aparecer com a quebra do sigilo fiscal, bancário e telefônico do deputado e de mais 12 pessoas, entre elas os seus colegas na Assembléia Legislativa Gilson Lopes (PFL) e Gilson Gomes (PPS). Com ordem judicial, a Procuradoria-Geral da República no Espírito Santo teve acesso às movimentações financeiras de suspeitos de serem “laranjas” de Gratz e descobriu transferências milionárias, inclusive nas contas de sua sobrinha e assessora, Sheila Gratz. “Vamos fundo na investigação sobre o deputado. A espantosa atuação do crime organizado no Espírito Santo só é comparável à que a CPI apurou no Acre”, avalia Moroni Torgan.

Antes de cair na rede da CPI, o deputado Gratz era só arrogância. Desafiava a comissão e fazia ameaças veladas ao presidente da CPI, deputado Magno Malta (PFL-ES). Logo que desembarcaram em Vitória na terça-feira 7, os deputados Moroni Torgan, Fernando Ferro (PT-PE), Ricardo Noronha (PMDB-DF) e Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ) souberam que Gratz se recusava a depor na Su—-pe-rintendência da Polícia Federal, onde inicialmente a CPI se instalou. Além do trauma de já ter “puxado” dez dias de cadeia na sede da PF, Gratz queria falar na Assembléia tendo seguranças e claque a seu lado. O impasse foi superado e Gratz foi ouvido num auditório do Palácio Anchieta, sede do governo capixaba. Na manhã da última quarta-feira, Gratz se enrolou todo durante as quatro horas em que depôs à comissão. Em sua fala inicial, afirmou que a PF escolheu a dedo o dia para dar uma batida em um de seus cassinos e não surpreender autoridades nas roletas e nas mesas de carteado. “Quem das atuais autoridades frequentava sua casa de jogo?”, perguntou Moroni. “Não me recordo”, disse Gratz.

Não foi seu único lapso de memória. Ele também afirmou que nada sabia sobre o inquérito policial 0757/99 que o deixa em maus lençóis. Em junho deste ano, o agiota Valter Cavalcante emitiu um cheque de R$ 20 mil como empréstimo ao empresário João Luiz da Silva, um cabo eleitoral de Gratz indiciado pela PF na “Operação Marselha” que desbaratou uma quadrilha que roubava carros para trocá-los por cocaína na Bolívia. Segundo a polícia, o cheque foi utilizado por João Luiz para pagar uma dívida com Gratz, mas não chegou a ser resgatado porque foi sustado por Cavalcante. Em 3 de julho, João Luiz foi assassinado numa chacina no Tiagus Bar, que deixou dois mortos e uma pessoa paralítica. A polícia atribui o assassinato ao não pagamento da dívida. Depois da morte de João Luiz, Gratz passou a pressionar Cavalcante para quitar o débito. “Sou um homem de negócios. Pode ser que este cheque tenha de fato entrado em minha conta”, acabou admitindo Gratz, que antes havia negado até que conhecia Cavalcante.

Armeiro – Três pessoas foram indiciadas pela morte de João Luiz. Uma delas é o ex-tenente Paulo Jorge dos Santos Ferreira, um traficante de drogas e pistoleiro que está foragido. Há 20 dias, a polícia capixaba recebeu uma denúncia de que o armeiro João Godoy estaria fabricando silenciadores de armas sob encomenda do deputado Gratz. A mercadoria seria apanhada por Paulo Jorge. “O advogado Dório Antunes coagiu as testemunhas da chacina pressionando para que não reconhecessem Paulo Jorge como um dos executores”, acusa o delegado Aéliston Santos de Azeredo, responsável pela apuração da morte de João Luiz. Dório é associado do escritório de advocacia do ministro da Defesa, Élcio Álvares, e de sua irmã Solange Antunes. Organograma que liga Gratz e Élcio Álvares com o crime organizado foi publicado com exclusividade por ISTOÉ em outubro.

Além de Dório e Solange, o desembargador Geraldo Correia Lima também foi sócio de Élcio Álvares. Essas denúncias estão sendo investigadas pela CPI. “A participação do ministro Élcio Álvares e de seus associados nos casos que envolvem o crime organizado é uma garantia de impunidade”, acusou o delegado Francisco Vicente Badenes Júnior ao explicar à CPI por que colocou o nome do ministro em dois organogramas sobre o crime organizado. Os depoimentos de Badenes e do procurador-geral da República no Espírito Santo, Ronaldo Albo, ajudaram a comissão a desvendar como a bandidagem age no Estado.

A CPI resolveu também investigar outros nomes citados nos seis organogramas de Badenes, como o empresário, ex-prefeito de Serra e caixa de campanha Adalto Martinelli, um dos fundadores da Scuderie Le Cocq. Preso sob a acusação de ser o mandante de pelo menos oito assassinatos, ele confirmou à CPI que a Le Cocq é mesmo uma organização criminosa. Contou também que deu R$ 6 mil em dinheiro vivo ao cabo Dejair Camata na véspera de sua eleição para a Prefeitura de Cariacica e, depois, foi recompensado com obras no município. Como seu amigo Gratz se saiu mal na CPI, Camata inventou uma desculpa para não depor. Será convocado para se explicar em Brasília.

Mentira – Em seu depoimento, Gratz negou que fosse sócio do empresário Marcelo Queiroga no Superbingão Real ou em qualquer outro negócio. Menos de 24 horas depois, a CPI obteve um contrato particular em que Gratz e Queiroga aparecem como sócios do Aruba Café, uma das mais badaladas casas noturnas de Vitória. Quem disse que Gratz era um dos donos do Bingão foi o próprio Queiroga num depoimento à polícia. Uma história escabrosa apurada pela polícia capixaba mostra que Gratz tinha bons motivos para tentar esconder essa sociedade. De acordo com o inquérito, o ex-policial Jorge Vaz Cerquinho, pistoleiro do cartel de Cali, esteve em Vitória para cobrar uma dívida de Queiroga. Na ocasião, dois funcionários de Queiroga foram mortos. “O deputado Gratz mentiu várias vezes em seu depoimento e isso já é suficiente para pedir a cassação de seu mandato”, diz Moroni Torgan. O caminho da CPI para cassar Gratz pode ser abreviado. Há um ano aguarda na mesa do ministro Edson Vidigal, do Tribunal Superior Eleitoral, um pedido da Procuradoria-Geral da República para que Gratz seja cassado por crime eleitoral. A CPI vai pedir ao ministro para deslanchar o processo. O TSE deve julgá-lo na quinta-feira 16.

Ao mesmo tempo que junta provas para cassar Gratz, a CPI prepara um golpe fatal para o crime organizado no Espírito Santo. A comissão resolveu oficiar o Judiciário para que julgue ainda este ano o pedido do Ministério Público para que torne ilegal a Scuderie Le Cocq. “Essa Scuderie é a fachada do crime organizado. Precisamos de sua extinção para poder processar seus integrantes por formação de quadrilha”, disse o procurador Ronaldo Albo em seu depoimento à CPI. Apesar de todas as descobertas, a CPI não precisava nem ter ido a Vitória para saber como funciona o crime organizado capixaba. Bastaria a leitura de uma entrevista de José Carlos Gratz ao jornal A Gazeta em abril de 1994. “Com o dinheiro livre de impostos, proveniente das apostas, os bicheiros sempre mantiveram um caixa destinado a subornar autoridades. Até há alguns anos, sabia-se que muitos poli-ciais recebiam gordas propinas do jogo do bicho. Posteriormente, a contravenção avançou para outros terrenos, e a corrupção ingressou no campo político, no Poder Judiciário, nos meios de comunicação, enfim uma extensa rede se formou.” Como em seu depoimento à CPI, essa entrevista de Gratz mostra que há tempos o deputado vinha ofertando a corda para o seu próprio enforcamento.

Um fantasma na defesa
No começo de outubro, o procurador-geral do município capixaba de Serra, Moacir Rodrigues, tomou um susto quando soube por ISTOÉ que sua subordinada Solange Antunes Resende estava exercendo em Brasília o cargo de assessora especial do ministro da Defesa, Élcio Álvares. Como Solange não foi requisitada pelo Ministério e continuava recebendo o salário mensal de R$ 1,7 mil como procuradora do município, Rodrigues enviou o ofício 117/99 em que solicitou ao secretário de Administração e Recursos Humanos, Audífax Pimentel Barcelos, para apurar a situação da funcionária.

O secretário tomou, então, duas providências: abriu o processo número 269.1497/99 e mandou suspender o pagamento de Solange. Em seguida, enviou também o ofício 338 ao capitão-de-mar-e-guerra Adriano Silva Motta, gerente de pessoal do Ministério da Defesa, indagando se Solange está ocupando cargo remunerado no Ministério.

De acordo com o Ministério da Defesa, que respondeu ao ofício no dia 28 de outubro, a sócia e superassessora do ministro Élcio Álvares tem cargo comissionado e recebe, desde o dia 1º de fevereiro, R$ 4,9 mil como DAS 5, a segunda maior gratificação na estrutura de assessoramento dos ministérios. “Até hoje essa resposta não chegou aqui. Se ela estiver recebendo o salário integral no Ministério da Defesa, estará cometendo uma irregularidade considerada grave. Vamos tomar todas as providências administrativas e legais cabíveis”, disse, na sexta-feira 10, o secretário de Administração e Recursos Humanos, Pimentel Barcelos, a ISTOÉ.

Se não comprovar que devolve aos cofres públicos 60% do que recebe do Ministério da Defesa, Solange poderá ser punida com demissão por justa causa pela Prefeitura de Serra. Para complicar a situação, Solange foi requisitada há três meses para assessorar a Câmara Municipal de Serra. É mais uma complicação para quem já está enrolada com as denúncias de envolvimento com o crime organizado no Espírito Santo.

Sob suspeita
Dez caixas de documentos chegarão nos próximos dias ao Ministério Público de Goiânia com munição pesada para esclarecer as nebulosas relações do juiz Avenir Passo de Oliveira com um grupo de advogados da Encol durante o processo de concordata da construtora. No apagar das luzes, a CPI do Judiciário recebeu uma pilha de cheques suspeitos e extratos bancários quilométricos. A CPI investigou o juiz a partir de uma acusação publicada por ISTOÉ na edição 1552, de 30 de junho: o advogado Sérgio Mello Vieira, que trabalhou para o dono da Encol, Pedro Paulo de Souza, disse que o juiz facilitou a vida da construtora quebrada em troca de uma mala recheada de dólares – equivalente a R$ 1 milhão, levantado com a venda de 3.764 cabeças de gado. O juiz Avenir, da Vara de Falências e Concordatas de Goiânia, aceitou a concordata da Encol, embora se tratasse de um caso clássico de falência. A CPI confirmou a venda do gado, a maracutaia na troca da sede da empresa de Brasília para Goiânia – para que o caso caísse no colo de Avenir – e a parcialidade do magistrado, que ajudou a indicar um amigo, Habib Badião, como comissário da concordata.

Depois de uma dezena de depoimentos à PF, ficou provada a relação de amizade entre Avenir, Badião e os demais envolvidos. A quebra do sigilo flagrou uma suspeita movimentação bancária. Em cinco contas de Badião, a partir de novembro de 1997 (período posterior à concordata), os depósitos somam R$ 3.738.359,99. Foram encontrados ainda altos depósitos nas contas de Frederico de Carvalho Lopes e Elza do Carmo Lopes, os “laranjas que receberam o dinheiro da venda do gado. Numa das contas de Frederico foi encontrado um cheque datado de 21 de janeiro, no valor de R$ 25 mil, nominal a Badião. Frederico é cunhado do advogado Micael Mateus, ligado ao dono da Encol e apontado como intermediário entre Avenir e os advogados. Em seu depoimento, Micael admitiu que a venda do gado nunca foi declarada no Imposto de Renda. Em seu relatório final, a CPI recomenda ao TJ de Goiás que investigue o juiz Avenir.