Às vésperas da Euro 2004, Felipão admite ter sido procurado por empresários espanhóis, mas nega que o clube seja o Real Madrid

Gol é golo. Goleiro, guarda-rédeas e campo, relva. Se fosse só a complicada nomenclatura estava fácil. Mas essas foram as menores adaptações que Luiz Felipe Scolari teve que passar ao se tornar há um ano e meio o técnico da seleção de Portugal. Em conversa descontraída na sede portuguesa, em Lisboa, Scolari foi um gentleman, muito distante da fama de sargentão que corre pelos estádios portugueses. Isso porque o estilo Felipão continua. Ele faz questão de dizer que quem manda no time é ele, afastando os palpites de cartolas como Pinto Costa, presidente do Porto Futebol Clube, que pediu sua cabeça. Scolari se recusou a convocar o goleiro Vítor Baía, em um episódio que lembra a não convocação de Romário para a Seleção. Ao se preparar para a Copa Euro 2004, que acontece em junho deste ano em Portugal, com estádios novos em folha, Scolari se mostra otimista. Mesmo assim, ele começa a receber propostas e dá a dica de que já foi sondado por empresários espanhóis. Apesar dos boatos fortes, ele nega de pés juntos que o clube interessado seja o Real Madrid.

 

Fotos: Max G Pinto

"Desde que cheguei em Portugal, enfrento essa situação difícil com o Porto. Tenho muita rodagem e não ligo
mais para isso"

 

Fotos: Max G Pinto

"Se eu não vencer a
Euro 2004, não há
como discutir nenhuma renovação de contrato. Porque aí foi malfeito
o trabalho "

ISTOÉ – Seu sonho era estar à frente de um time europeu. Hoje o sr. se sente realizado?
Felipe Scolari

Depois da Copa do Mundo, meu projeto era trabalhar em um clube europeu. Eu nem vim para um clube, eu vim direto para uma seleção, a de Portugal, que irá disputar a Euro aqui. Então, estou em uma situação que ultrapassou a que eu imaginava. Claro que isso tem um ônus, porque Portugal também deseja ser campeão. Mas posso dizer que atingi um objetivo que eu tinha planejado, desejado.

ISTOÉ – O goleiro do Porto, Vítor Baía, um dos preferidos dos portugueses, não foi escalado para a seleção, o que causou grande polêmica. Repete-se o fenômeno Romário?
Felipe Scolari

Nem tanto. Aqui não há tantos nomes que causem transtorno. E a gente tem uma seleção já acertada. Dos que estão escolhidos, existem duas ou três divergências acentuadas. Então, não gera muito problema para mim. No início, a seleção voltou em uma situação não muito boa da Copa de 2002 e o pessoal ficou muito magoado, muito triste. Até atingir novamente um estado de confiança dos torcedores na seleção, a gente passou por um outro pedaço ruim. E houve um momento em que não jogamos bem. Agora, está tudo serenado, organizado, todos entendendo como a gente trabalha e como vemos a seleção, com expectativas de chegar a uma final. As controvérsias finais já passaram.

ISTOÉ – Mas o presidente do Porto, Pinto da Costa, pediu a sua cabeça.
Felipe Scolari

Desde que cheguei em Portugal, enfrento essa situação difícil com o Porto. Não sei se é pelo Vítor Baía. Eu só quero o meu direito de trabalhar. Eu já tenho muita rodagem e não ligo mais para isso.

ISTOÉ – Os torcedores portugueses dizem que a seleção só enfrentou times fáceis. E o sr. perdeu o jogo contra a Itália.
Felipe Scolari

Contra a Itália, jogamos bem os primeiros 30 minutos. Não fomos bem no resto da partida. Perdemos mais por distração do que pela qualidade do adversário, o que não pode acontecer com uma seleção. Mas isso também vai fazer com que fiquemos mais atentos nos próximos jogos. As pessoas têm uma imagem, mas nós trabalhamos com dados diferentes. Temos que trabalhar de acordo com os dias livres dos jogadores, que jogam pelos seus clubes, em campeonatos, praticamente três vezes por semana. Se não intercalarmos um jogo de seleções de prestígio, fortes, com seleções do segundo nível, vamos ter problemas com os clubes.

ISTOÉ – “Quem manda aqui sou eu” foi uma de suas polêmicas frases ao responder a tentativas de interferência na escolha de jogadores para a seleção portuguesa. Como é o estilo Felipão em Portugal?
Felipe Scolari

Eu ouço todos. Mas, dentro da minha comissão, quem tem que decidir sou eu. Todos me dão pareceres, dados estatísticos, mas quem decide sou eu. Não adianta a cobrança em cima do técnico. Até porque foi ele quem foi contratado para dirigir e ele é quem tem que dirigir. Claro que, com dados, estatísticas, isso fica mais fácil. Quando tu formas um grupo de trabalho que tu confias, a tua decisão é unânime no grupo. Mas quem emite essa opinião para a imprensa é o técnico. É por isso que eles dizem “quem manda aqui sou eu”. Porque, afinal, quem um dia pode ser mandado embora sou eu. Não me deixo influenciar pelos dirigentes. São pessoas que, às vezes, têm intuitos muito diferentes. Tu ouves isso ou aquilo ou alguém manda recado e passa esse recado através da mídia. Eu ouço todos e tomo minha decisão. Por exemplo, já ouvi recados assim : “O meu jogador não pode jogar tantos minutos.” Então, tá bom. Só que quem tem que decidir isso é a gente. Outro chega e diz: “Eu tenho um grande jogador no meu time que pode servir à seleção. O meu modelo é muito interessante.” A gente passa por cima e segue com o trabalho.

ISTOÉ – Depois de tanta polêmica com a naturalização portuguesa, como ficou a situação do jogador Deco?
Felipe Scolari

A situação dele ficou superlegal, normal. Foi apenas uma questão de nacionalização. Depois que ele se tornou português, Portugal me deu a chance de convocá-lo. Agora, se eu tenho que convocá-lo ou não, depende da parte técnica. E essa história de que o Deco não seria bem recebido na seleção é dessa parede para lá (referindo-se ao prédio da seleção). Por aqui, por todos, ele tem um ambiente excelente. Muitas vezes, as coisas são um pouco aumentadas e não é bem o que se passa aqui nos vestiários. O Deco está muito bem e hoje ele é um jogador português.

ISTOÉ – Os portugueses estavam desanimados quanto aos resultados da seleção. Como vê as possibilidades de Portugal vencer a Euro2004?
Felipe Scolari

No início, quando eu cheguei, os portugueses estavam desgostosos com a seleção. Depois, aos poucos, as coisas foram tomando seu rumo. Neste momento, eu acho que, com respeito às outras seleções que também são excelentes, nós temos um porcentual de credibilidade até para vencermos a Euro. Não existe uma seleção sendo anunciada como a favorita. Temos aqui, praticamente, oito seleções em idênticas condições, mais a República Tcheca, que vem jogando um futebol muito bonito, muito bom. Se alguém apostar em alguma delas, aposta com alguma condição. Portugal tem chances porque o campeonato é em Portugal e nós temos uma boa equipe.

ISTOÉ – Por quais adaptações o sr. teve que passar com os jogadores portugueses?
Felipe Scolari

No mundo inteiro, as características mudam de jogador para jogador. Sempre há pequenas diferenças, a personalidade muda de pessoa para pessoa. Quanto ao aspecto futebolístico, a cultura e a educação são diferentes em Portugal. Vou dar um exemplo em relação às refeições. Todos os jogadores sempre chegam ao mesmo tempo. O capitão senta e, automaticamente, todos sentam. Ninguém sai da mesa até o capitão se levantar. Quando o capitão sai, todos levantam. É uma coisa muito educada. Nós, por sermos sul-americanos e por termos uma cultura um pouquinho diferente, já nos sentamos e conversamos em grupo. Outro exemplo: a forma de os europeus olharem a situação dos prêmios é diferente. Aqui em Portugal, o técnico jamais participa de qualquer negociação. São o capitão e os dois ou três subcapitães que discutem, na seleção e nos clubes. No Brasil, o técnico participa até para mediar entre direção e jogadores. Aqui, não existe isso.

ISTOÉ – Os melhores técnicos vêm para a Europa?
Felipe Scolari

Eu não digo que os melhores técnicos vêm ou estão na Europa. Até porque na América do Sul há técnicos espetaculares e os resultados confirmam isso. Além de todos com quem eu tenho convivido no Brasil, há técnicos excelentes, como o argentino Carlos Bianchi, multicampeão, o Cesar Luis Menotti e outros que agora começam a despontar em países como o Chile, o Uruguai. Nós sul-americanos temos grandes técnicos. Está na hora de alguns deles virem vingar na Europa, vencer, chegar à final de campeonatos, mostrar que têm qualidade. Se eu tiver um bom trabalho aqui em Portugal, as coisas também começam a se modificar para a toda a América do Sul.

ISTOÉ – Se Portugal não ganhar a EuroCopa, como fica o Felipão?
Felipe Scolari

Depende aonde chegarmos. Se nós não passarmos de uma primeira fase, é um trabalho que não surtiu efeito. Mas se chegarmos entre os quatro finalistas – e é isso o que tento cobrar dos meus atletas –, é um trabalho vitorioso. Se eu não vencer, não há como discutir nenhuma renovação de contrato. Porque aí foi malfeito o trabalho. Se chegarmos entre os quatro melhores, existe até possibilidade de se discutir outro contrato. Embora na Europa, mesmo um técnico trabalhando no final de uma temporada, ele já começa a acertar outros contratos.

ISTOÉ – Existem especulações de que o Real Madrid procurou o sr.
Felipe Scolari

Real Madrid? Não estou sabendo.

ISTOÉ – Como analisa a atuação do técnico da Seleção Brasileira, Carlos Alberto Parreira?
Felipe Scolari

Boa, normal, dentro do planejado. Penso que, em número de pontos disputados, ele está bem. Quatro se classificam e se o Brasil for classificado para a Copa em primeiro, segundo, terceiro ou quarto, isso não importa. O importante é estar classificado. Sempre que o Brasil foi para a Copa em condições piores, ele ganhou. Não é que a gente queira que o Brasil não vá em primeiro lugar, mas o número de pontos disputados até o momento é bom.

ISTOÉ – Quem vai ser eleito pela Fifa como o melhor de 2004 ?
Felipe Scolari

O Ronaldinho Gaúcho tem grandes chances. O Kaká também.

ISTOÉ – O sr. tem a fama de ser paizão. Tem algum jogador português que já foi adotado?
Felipe Scolari

Adotei todos. Eu os trato como trato meus filhos. Claro que a gente tem uma boa diferença de idade, então dou uns conselhos. Gosto muito deles e procuro fazer com que se sintam felizes aqui. E o pai vive todas as fases, as ruins, as mais complicadas. Em determinados momentos, eu sento com eles, brinco um pouco mais e aí muitas vezes a gente não fala de futebol, fala de banalidades, de coisas da vida. São histórias gozadas que foram vividas no dia anterior.

ISTOÉ – Como vê a performance, hoje, do Rivaldo, que já foi adotado pelo sr.?
Felipe Scolari

O Rivaldo foi taticamente o jogador mais importante da Copa do Mundo. Eu sempre falo isso até nas minhas palestras. Agora, ele tem que voltar a ter alegria de jogar. Eu não sei o que está acontecendo com ele, porque perdemos o contato. Quando fui visitar o Milan certa vez, conversei com ele. Mas outro dia vi uma entrevista em que ele dizia não estar mais feliz. O Rivaldo ainda tem muito tempo para mudar, é só uma questão dele ter confiança nele mesmo e treinar. E dizer para ele: “Essa é a minha profissão e vou fazer com amor.” Como ele fazia antigamente.

ISTOÉ – Ao enfrentar a Seleção Brasileira, o sr. leva vantagem por conhecer os jogadores?
Felipe Scolari

Hoje é tudo tão escancarado, que todo mundo conhece todo mundo, a forma de jogar, etc. Então, eu não tenho vantagem por ter trabalhado no Brasil, caso jogue contra a Seleção Brasileira. O Brasil é o meu país, embora eu tenha cidadania italiana. Tenho um sentimento pelo meu país que não esqueço nunca. Mas também tem o aspecto profissional. Uma vez em outra empresa, mesmo que tu gostes do trabalho anterior, estou aqui para ter sucesso.

ISTOÉ – Um repórter da revista Focus, de Portugal, passou por todas as barreiras de segurança e entrou armado no campo. Como vê a situação da segurança nos estádios?
Felipe Scolari

Se eu fosse a polícia, prendia ele. É um absurdo isso. Porque se ele realmente tivesse a missão de alertar sobre a falta de segurança, depois do ocorrido, ele teria levado a fita para a polícia. Ele só quer o furo jornalístico.
Esse tipo de reportagem só leva mais pânico. Ninguém está livre de ser atingido
pela violência, em qualquer lugar do mundo. O que eu acho que tem que acontecer é mostrar àqueles radicais, que só pensam em atingir objetivos através da guerra, da violência, que há outras maneiras de fazer as coisas. E nisso os jogadores estão dando exemplo. Estão em entidades de caridade, estão em prol de situações sociais. E eu acredito nas autoridades de Portugal para resolver esses problemas. Além disso, o mundo todo tem uma adoração pelo jogador de futebol. Eu sempre conto uma passagem do técnico gaúcho Walmir Loruz, quando era da seleção olímpica. Antes da invasão do Iraque, eu, sem saber, por sorte saí três dias antes para treinar com a seleção. Eu saí da guerra e o Walmir entrou na guerra. Depois de um mês no Kuait, eles conseguiram deixar o país. Numa barreira final, depararam com os iraquianos. O soldado iraquiano viu o nome do técnico de futebol e o Walmir deu para ele a bola para fazer embaixadas. O soldado iraquiano já tinha sido um bom jogador. Walmir tremia as pernas, mas veja como a bola os salvou. Até numa guerra, a bola está presente.

ISTOÉ – O sr. acompanha o Brasil pelo noticiário. Como vê esse governo?
Felipe Scolari

Já estive com o presidente Lula. Falamos um pouco sobre futebol. Mas nunca tivemos uma oportunidade de falar aberto, porque precisa ter ambiente, local adequado. Eu, se pudesse, falaria isso para ele. Lula é povo e, se perder essa característica, vai ficar ruim para ele. As pessoas que o cercam têm que trabalhar dentro desse aspecto, dessa imagem.