O físico catarinense Reinaldo Haas, 38 anos, é um dos poucos brasileiros capazes de descrever a sensação de estar no olho de um furacão. Mais impressionante é o local de sua aventura: o litoral de Santa Catarina. O Brasil, que até a semana passada se vangloriava de estar a salvo de catástrofes naturais, como terremotos, maremotos e furacões, foi assolado por uma ventania sem precedentes. Na madrugada do domingo 28, rajadas de até 180 km/h se abateram sobre 26 municípios de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. A força dos ventos destruiu 35 mil casas e produziu um estrago considerável: 15 mil desabrigados, 60 feridos, pelo menos quatro mortos, alguns desaparecidos e prejuízo superior a R$ 1 bilhão.

A classificação do fenômeno climático batizado de Catarina ainda divide os cientistas. Os institutos nacionais de meteorologia afirmam que ele foi um ciclone extratropical, evento comum no litoral sul. Já os meteorologistas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul são categóricos em afirmar que o Catarina foi mesmo um furacão. Seus argumentos são técnicos. Enquanto o ciclone produz ventos de 90 km/h, o Catarina, em seu auge, ultrapassou os 180 km/h. Ainda assim, ficou abaixo dos 250 km/h que um furacão pode alcançar. Outra diferença é a presença de um olho no centro, uma particularidade dos furacões, e também do Catarina. “O evento teve características híbridas e parece inédito no Hemisfério Sul”, explica Pedro Leite da Silva Dias, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP).

Em vez de fugir, quando soube da aproximação do fenômeno, Reinaldo Haas, que dá aulas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), deixou sua casa, em Florianópolis, e rumou, de ônibus, até o balneário catarinense Arroio do Silva. Horas depois, ele seria engolido pela fúria do Catarina. “A curiosidade científica era muita, por isso decidi esperar pelo furacão”, conta. O aventureiro tinha como companhia um oceanógrafo e um geógrafo da UFSC, especializados em desastres naturais, além de um motorista. A equipe se abrigou num ginásio municipal munida de capas de chuva e uma caminhonete da Defesa Civil, pronta para a fuga. A improvisação foi a regra. “Como não tínhamos instrumentos, um balde virou pluviômetro e molhávamos o dedo para sentir de que lado o vento soprava”, lembra Haas.

Quando a ventania apertou, às dez horas da noite, a energia elétrica acabou e o mar avançou sobre as casas da orla. A equipe buscou abrigo no carro, mas a força dos ventos era tanta que os impediu de abrir as portas. “De repente a chuva diminuiu e os ventos se acalmaram. Era uma da manhã e estávamos no olho do furacão”, diz Haas, sobre o oásis de calmaria. “O ar quente dá uma sensação de paz, como num abraço. Dormimos profundamente”, conta.

Antes do amanhecer, o pesquisador acordou com um barulho semelhante ao de uma turbina de avião. A outra metade do furacão se aproximava. Dessa vez, com intensidade maior. O geógrafo Emerson Vieira Marcelino dava sinais de hipotermia, a redução da temperatura corporal. “Ficamos extremamente arrependidos de estar ali. Os pedaços de telha e de vidro viraram projéteis e o carro começava a tombar”, diz Haas. Enquanto isso, meteorologistas do Climerh, o instituto local de previsão climática, e técnicos da Defesa Civil corriam contra o tempo. Os pescadores foram alertados pelo rádio, mas era tarde demais. Dois barcos afundaram com nove pessoas a bordo. “Se houvesse pânico, o desastre começaria antes do furacão. Não queríamos transmitir o desespero que sentíamos”, diz o capitão Márcio Luiz, da Defesa Civil. O desespero tinha razão de ser. Na quinta-feira 25, o Instituto Nacional de Controle Oceânico e Atmosférico (Noaa), dos EUA, havia identificado o Catarina como o primeiro furacão do Hemisfério Sul. “Trabalhamos com os brasileiros, orientando sobre os rumos do Catarina”, conta o meteorologista Jack Beven. “Nosso programa diagnosticou o evento como furacão, mas sua natureza está sendo debatida”, explicou.

O Centro de Pesquisas Tecnológicas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTec-Inpe) desconsiderou o aviso. Apostou que a formação climática perderia força ao atingir a costa, como fazem os ciclones, e os ventos não passariam dos 60 km/h. “Não subestimamos o fenômeno. Para nós, ele era um ciclone com aparência de furacão”, explica Marcelo Seluchi, chefe da divisão de operações do CPTec. O diretor do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), Antônio Divino Moura, concorda. “Nem tudo é o que parece. Apesar da força, o Catarina era um ciclone. Mesmo que prevíssemos sua intensidade, não teríamos como evitar que ele arrancasse as telhas das casas”, diz Moura. Algumas emissoras de tevê aproveitavam para noticiar que o tempo estaria ótimo para o surfe. Que o digam os pescadores Amilton da Rosa e Ricardo da Silva, resgatados na quarta-feira 31, depois de passar 40 horas ao sabor das ondas. Decifrar o que foi o Catarina não é mero detalhe. Se foi furacão, ele é o primeiro na costa brasileira. Se foi ciclone, ele é bem diferente dos demais. Sua origem ainda é desconhecida. “Ele pode ser resultado do aquecimento global”, diz Enéas Salati, diretor da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável. O Catarina pode ser o primeiro de uma série, ou um evento único. Como tudo na meteorologia, não há como fazer apostas. Esperar parece ser o único remédio.