Como já diziam as vovós, tem momentos em que o melhor é ficar de boca fechada. No caso do escritor português José Saramago, o excesso de publicidade que cercou o lançamento mundial de seu mais recente livro, Ensaio sobre a lucidez (Companhia das Letras, 328 págs., R$ 39,50), só fez ressaltar os defeitos de um trabalho que desequilibra o nível de excelência que o autor vinha mantendo ao longo de sua profícua trajetória. Não é que o livro seja de todo ruim. Afinal, Saramago é um escritor que conhece a mecânica da construção literária a fundo e é um exímio esgrimista da língua. E ainda há um agravante, no caso específico dos leitores brasileiros, que é a rabugice de ele não permitir que se adeque sua obra ao português brasileiro. Mesmo descontando a atitude invocada
por Saramago como sendo manifestação de força da língua-mãe, o novo livro
não chega aos pés do que ele poderia fazer de melhor a esta altura da vida,
ainda mais considerando que se trata de uma obra complementar ao excelente Ensaio sobre a cegueira.

Quando for realizado o ato solene de lançamento oficial, na sexta-feira 29 em Lisboa, na presença dos principais luminares da esquerda lusitana, o autor deve protestar contra as críticas ao livro. Muito provavelmente dirá que a razão de a imprensa falar mal reside no fato de Ensaio sobre a lucidez ridicularizar todas as instituições da sociedade moderna, incluindo a mídia. A ela, por sinal, o livro atribui o poder de atrair desgraças e de criar crises em nome das vendas e do amor pelo escândalo que excita a morbidez do leitor. São os repórteres que, esparramados no decorrer da trama, agem como verdadeiros urubus a serviço das tragédias da população.

Curiosamente, Ensaio sobre a lucidez é um dos livros mais politizados da produção recente de Saramago. Mas o tratamento do tema político que conduz a obra chega a ser pueril ao percorrer os chavões do gênero. A única novidade é que ele atira para todos os lados e frentes, na intenção ostensiva de incomodar gregos, troianos e brasileiros. A história parte de um fenômeno inesperado, o de que praticamente toda uma população votou em branco nas eleições, para espanto das autoridades constituídas. Tamanho protesto leva os governantes a submeter as pessoas ao estado de sítio e depois ao de emergência com táticas no melhor estilo ditatorial.

O desencanto com a humanidade e as instituições democráticas se reflete na posição defendida pelos adversários políticos intragoverno, que afirmam ser a lucidez personificada pelo voto em branco. Qualquer outra opção seria, por exclusão, uma pantomima da democracia. As igrejas de todos os credos, velhas adversárias de Saramago, também levam seu quinhão de críticas. Com medo de represálias, elas surgem com a submissa contingência de evitar orações pelos mortos de um atentado provocado pelo próprio governo para incriminar os insurretos. Uma alusão incontestável ao papel que a religião, principalmente na Península Ibérica, historicamente manteve como principal pilar de sustentação das ditaduras.

Ao longo dos cada vez mais generosos parágrafos de Saramago – uma literatura em que o discurso se enreda na narrativa e o resultado, arrastado por páginas a fio, nem sempre fica claro à primeira leitura –, os personagens não crescem nem ocupam os espaços que lhes deveria caber. Eles vão se arrastando malformados e, quando em raras oportunidades são realçados, deixam patente não terem vida própria. É como se o leitor estivesse diante de uma paródia universitária sobre os defeitos mais óbvios da democracia burguesa, e não da obra de um escritor maior.