Existem algumas lições emblemáticas da cultura democrática. Certamente a vitória do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) sobre o Partido Popular (PP) nas eleições gerais do domingo 14 será lembrada como uma delas: um eleitorado civilizado suporta cada vez menos a mentira e a manipulação. Três dias depois dos atentados que mataram 202 pessoas, entre elas o brasileiro Sérgio dos Santos Silva, e feriram mais de 1.600 nas estações de trem de Madri, a população foi às urnas para rechaçar a conduta do governo nas investigações sobre os responsáveis pelas atrocidades. Os espanhóis se sentiram vítimas de uma manobra política do primeiro-ministro Jose María Aznar, que se apressou em responsabilizar o grupo terrorista basco ETA pelos ataques. Se fosse a ETA, como anunciaram precipitadamente as autoridades espanholas, as políticas do PP de forte repressão à organização basca, como o banimento de seu braço político, o Batasuna, e a série de encarceramentos de membros da ETA seriam aplaudidas nas urnas. Se fosse a Al-Qaeda, como já apontavam os indícios da investigação na véspera da votação, o governo sairia derrotado porque a política de alinhamento com o presidente americano, George W. Bush, e seus falcões na guerra contra o Iraque, era malvista pela maioria esmagadora dos espanhóis.

Uma semana antes das eleições, os espanhóis estavam dispostos a renovar o mandato do PP. Mas, depois do engodo, os eleitores não perdoaram os governantes. O que mais irritou o eleitorado foi o fato de Aznar ter ocultado informações disponíveis pelo governo, que indicavam o envolvimento de um grupo islâmico nos atentados. Entre elas, uma fita de vídeo encontrada em uma lata de lixo em que a Al-Qaeda reivindica o atentado. A virada eleitoral veio então de forma inesperada, pegando de surpresa até o próprio candidato vencedor, o socialista José Luis Rodríguez Zapatero, que bateu o candidato de Aznar, Mariano Rayoa, com 42,64% a 37,64% dos votos.

Nessas eleições espanholas, a política venceu a economia. Isso porque, sob o timão dos conservadores, o navio econômico navegava em águas tranquilas. Em oito anos de governo conservador, o desemprego caiu de 22% para 11% e foram criados 4,5 milhões de empregos. A inflação se estabilizou em 2,6% anuais e a casa foi colocada em ordem, com o acerto das contas públicas. Mas o interesse em viver com segurança passou a ser a maior prioridade dos cidadãos espanhóis. E hoje isso independe de quem está no poder, até porque o terrorismo do Al-Qaeda não é apenas um reflexo da guerra contra o Iraque, mas também da espiral crescente do fundamentalismo islâmico. “A invasão do Iraque não tem nada a ver com o terror. Os EUA lideraram uma invasão a um país islâmico que não tem armas de destruição em massa nem vínculos importantes com a Al-Qaeda. Creio que os espanhóis se deram conta de que Bush os enganou para que o país entrasse na guerra sob o falso pretexto e isso os tornou alvo do terror”, disse Peter Singer, professor catedrático de Ética da Universidade de Princeton.

É certo que as trapalhadas de Bush no Iraque caíram como uma luva para os extremistas islâmicos. Em seus primeiros discursos, o futuro primeiro-ministro Zapatero reforçou sua promessa de campanha ao afirmar que irá retirar os 1,3 mil soldados do Iraque até 30 de junho – a não ser que as Nações Unidas assumam o controle do país. Os soldados espanhóis formam apenas 1% do efetivo das tropas estrangeiras no Iraque, mas é um gesto político significativo porque determina o novo rumo da política externa da Espanha. “O terrorismo se combate com o Estado de Direito, com a legalidade internacional, com os serviços de inteligência”, disse o futuro premiê. Acusando Aznar de ações “unilaterais, tomadas de costas para os cidadãos”, Zapatero afirmou que estará mais inclinado ao “diálogo” para apresentar soluções de combate ao terror. Depois dos atentados, Bush perdeu o fiel aliado Aznar e, para tentar recuperar sua posição, condenou a atuação do governo espanhol ao dizer que este manipulou as informações sobre os ataques. “A votação que levou os socialistas ao poder foi um protesto do povo contra a manipulação do evento terrorista pelo governo”, afirmou o subsecretário de Estado americano, Richard Armitage. O que os EUA temem é que haja um efeito dominó de retirada de tropas do Iraque. Com as barbas de molho, o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, que assim como Aznar enviou tropas ao território iraquiano sem a aprovação da população, ameaçou retirar os três mil soldados italianos do Iraque.

A União Européia, que se mostrou cindida durante a guerra do Iraque, tenta agora se unir em volta de métodos mais eficientes para combater o terrorismo. Itália, Espanha, Polônia e Reino Unido foram aliados dos EUA, enquanto França e Alemanha lideravam o coro dos descontentes.

Mas a cisão no seio da família européia não foi causada pela guerra. Desde a queda do Muro de Berlim, quando o Ocidente deixou de ter um inimigo comum, os países europeus não falam nem no mesmo tom nem no mesmo ritmo. São vozes em desafino que se reúnem dependendo da ocasião. Mas agora, com a ameaça terrorista batendo à porta, os europeus deverão deixar de lado algumas divergências. Zapatero terá que encarar, em conjunto com os demais países europeus, um terrorismo muito mais sofisticado e letal do que o da ETA. “É prioritário criar um novo modelo de segurança muito mais firme ante o desafio do terrorismo”, afirmou o futuro primeiro-ministro. Acrescentou ainda que “o modelo atual é deficiente em matéria de coordenação policial.”

Enquanto isso, o agonizante governo Aznar tenta mostrar serviço. Além dos cinco (quatro árabes e um espanhol) detidos no dia do atentado, foram presos mais três marroquinos e dois indianos, elevando o número de suspeitos detidos para dez. Os marroquinos Jamal Zugam, Mohamed Bekkali e Mohammed Chaui são acusados de pertencer a uma organização terrorista e de ter envolvimento em 90 assassinatos e 1.400 tentativas. Zugam, dono de uma loja de celulares, é suspeito de ser ligado a Abu Dahdah, considerado o líder do Al-Qaeda na Espanha e acusado de ser o responsável pelo atentado em Casablanca em maio passado.

Enquanto a investigação prossegue, o Velho Continente tenta evitar novas tragédias. Reino Unido, Itália e até França e Alemanha temem possíveis atentados e reforçam seus esquemas de segurança. A Comissão Européia afirmou que, das dez medidas de segurança aprovadas depois do 11 de setembro de 2001, muitas ainda não foram implementadas na maior parte dos 15 países-membros. Entre as novas ações do bloco europeu deverá estar um banco de dados com informações sobre os principais terroristas procurados e os tipos de armas e explosivos usados nos últimos atentados. A França – que foi contra a guerra do Iraque, mas baniu o véu das escolas irritando a comunidade muçulmana – traça um plano de segurança nacional envolvendo 2.500 policiais e 600 soldados para patrulhar as estações de metrô e trem de Paris.

 

É a Al-Qaeda , estúpido!

Os atentados de Madri vêm mostrar que os terroristas da Al-Qaeda foragidos do Afeganistão continuam aptos a realizar as piores atrocidades. A verdade é que, neste aniversário de um ano da invasão do Iraque, os EUA estão longe de combater os verdadeiros terroristas que atacaram seu território. Dos 20 mil a 70 mil homens treinados pela organização nos anos de Taleban, apenas três mil foram presos. “Os americanos têm todos os relógios, mas nós temos o tempo”, ironizaram certa vez os seguidores de Osama bin Laden. Como disse o analista britânico Michael Clark, do King’s College em Londres, “a Al-Qaeda é disciplinada, coesa e seletiva na admissão da organização”. Nem mesmo o anúncio do Paquistão de que teria cercado o segundo homem do Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahri, aliviou as tensões. Para piorar ainda a situação, as operações terroristas de grande impacto custam pouco. O ataque ao navio USS Cole, em 2000, e a Bali, em 2002, custaram cerca de US$ 70 mil. O horror de 11 de setembro requereu meio milhão de dólares, mas deixou um prejuízo de US$ 40 bilhões, para as seguradoras, e US$ 160 bilhões em perdas comerciais.