O que os brasileiros estavam fazendo no dia 31 de março de 1964? Para responder a esta pergunta aparentemente simples, quatro observadores privilegiados da história recente do País – os escritores Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura – escreveram os libretos da coleção Vozes do golpe (Companhia das Letras, 336 págs., em quatro volumes, R$ 41), que acaba de chegar às livrarias. O lançamento vem acompanhado de outras leituras urgentes. Quatro décadas após o golpe que instaurou o regime militar no País, calando suas vozes mais expressivas entre 1964 e 1985, uma espécie de revanche toma conta das livrarias com a publicação de textos que procuram jogar um pouco de luz sobre esse período obscuro. Na esteira do painel em cinco volumes elaborado pelo jornalista Elio Gaspari, dos quais já foram lançados o díptico As ilusões armadas (A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada) e o primeiro volume do tríptico O sacerdote e o feiticeiro (A ditadura derrotada), pelo menos uma dezena de títulos sobre o assunto chega ao mercado.

Entre eles destacam-se as biografias do presidente deposto, Jango, um perfil (1945-1964) (Editora Globo, 288 págs., preço a definir), de Marco Antonio Villa, e a de seu sucessor, Castello – a marcha para a ditadura (Editora Contexto, 432 págs., R$ 43,90), de Lira Neto. Além do fundamental Visões do golpe – a memória militar de 1964 (Ediouro, 260 págs., R$ 32), de Maria Celina D’Araújo, Gláucio Ary Dilon Soares e Celso Castro, originalmente lançado em 1994 e elogiado pelo próprio Gaspari, que deve finalizar o quarto volume de sua obra em junho. Na mesma linha, a edição atual da revista Nossa história (Biblioteca Nacional/ Editora Vera Cruz, 98 págs., R$ 6,80) traz um dossiê com cinco reportagens escritas por especialistas sobre os antecedentes do golpe. O envolvimento da Marinha é reavaliado em Vozes do mar – o movimento dos marinheiros e o golpe de 1964 (Cortez Editora, 280 págs., R$ 38), de Flávio Luis Rodrigues, e Trajetória rebelde (Cortez Editora, 208 págs., R$ 28), de Pedro Viegas, cujos autores são marinheiros presentes nos acontecimentos.

Em meio à enxurrada de dados, datas e testemunhos, a série Vozes do golpe confere um pouco de humanidade àquele momento lembrado com tanto pesar. Enquanto o carioca Carlos Heitor Cony e o mineiro Zuenir Ventura partem da situação real – onde estavam?, o que faziam?, como se sentiram? – para descrever o turbilhão que foi a passagem do dia 31 de março para o 1º de abril, os gaúchos Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo se valem da ficção para transmitir o desconforto experimentado. Em Mãe judia, 1964, Scliar entremeia o fim de um caso de amor com o relato da enlouquecida mãe de um ativista político, “depoimento” transcrito de fitas gravadas pelo microfone oculto em uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual a velha se confessava em voz alta. A obsessão de um homem em encontrar o cativeiro em que foi mantido é transformada por Verissimo em A mancha, na fria descoberta da sobrevivência do status quo.

Curiosamente, Cony e Ventura, apesar de serem jornalistas atuantes na época, estiveram à margem dos fatos. Em Um voluntário da pátria, o mineiro conta que passou os três dias que antecederam o golpe fazendo a viagem Rio–Brasília apertado em um fusquinha junto com a mulher, Mary, grávida, e a amiga Maria Luiza. O trio viajara para assumir um posto na “universidade do Darcy”, em uma referência a Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de Jango, ambos às vésperas da deposição. O jornalista preenche as dúvidas e a sensação de vazio com dados que recolheu de 1964 para cá, incluindo passagens hilariantes com Ribeiro. Já Cony, em A revolução dos caranguejos, confessa que convalescia de uma operação de apendicite quando saiu pela primeira vez de casa, no dia 31, levado pelo poeta e amigo Carlos Drummond de Andrade. Juntos assistiram à tomada do Forte de Copacabana pelos rebeldes contra João Goulart, o que lhes pareceu pouco mais que uma pantomina. De volta à redação do Correio da
Manhã
, os textos de Cony logo seriam tachados de comunistas pelos militares e de alienados pela esquerda, o que o fez ser perseguido por seguidores de ambas as ideologias. A hard day’s night, que acabava
de surgir na voz dos Beatles, foi a última música que ouviu a caminho
do hospital, sentindo que os jovens começavam a assumir uma outra espécie de poder. Mas, para a maioria, era o início de uma verdadeira noite de um dia difícil.


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