No final nem foi necessário o ataque de vírus cibernautas: o caos chegou a Nova York de modo bem tradicional, com superpopulação e disputas políticas. Bem que os profetas escatológicos ficaram roucos de avisar que neste final de milênio a cidade, cujos nativos numa auto-referência consideram “a capital do planeta”, mostraria cenários de fim de mundo. Primeiro o prefeito Rudy Giuliani, num de seus característicos ataques de vilania, montou uma campanha de perseguição a mendigos e sem-teto de fazer corar até mesmo um senhorio de opereta. A resposta da cidade foi a indignação e, ato contínuo, ergueram-se barricadas nas ruas já intrafegáveis devido à invasão de milhões de turistas. Mas estes seriam apenas os primeiros cavaleiros do apocalipse. O pior ainda estava por vir. O sindicato dos trabalhadores dos transportes coletivos ameaçou greve geral, caso não ganhassem o aumento que há muito lhes vem sendo negado. O ultimato era claro: 18% sobre os salários em três anos, ou a Big Apple ficaria parada como uma maçã numa fruteira. O pânico tomou conta das ruas.

Três milhões e meio de usuários diários ficariam sem condução. Até mesmo a presidente do sindicato dos taxistas prometia promover uma operação tartaruga em apoio aos colegas motoristas de ônibus. A população nem sequer conseguiria caminhar para o trabalho, já que as ruas estavam tomadas pelos calculados sete milhões de turistas que provocaram o maior congestionamento contínuo de pedestres de que se tem notícia. O prefeito Giuliani, em quem o slogan “Aqui os trens não atrasam” ocupa uma parede especial de seu coração, por pouco não foi acometido de apoplexia. Ameaçou os grevistas com multas de US$ 25 mil sobre seus salários – que não ultrapassam US$ 40 mil por ano para trabalhadores mais qualificados. O sindicato ainda deveria pagar US$ 1 milhão, no primeiro dia de paralisação, com esta taxa dobrando a cada dia seguinte. A intenção era quebrar o sindicato.

Correria antecipada – Na quarta-feira 15, Giuliani mandou para as ruas nada menos do que três mil policiais, além do contingente normal. E isso a despeito de, naquela madrugada, um acordo entre a companhia de transportes públicos e os trabalhadores ter acabado com a ameaça de greve. Mas uma dissidência sindical – a New Direc-tions – não ficou contente com o acerto e prometia parar ou sabotar as linhas de transportes. Lá se foram os patrulheiros do prefeito atravancar ainda mais o trânsito nas calçadas do centrão. “Todos os anos, a duas semanas do Natal, Nova York tem problemas de congestio-namentos de pedestres entre as ruas 30 e 60 e as avenidas Oitava e Lexington”, diz Oliver Simons, do setor de engenharia de trânsito da prefeitura. “Mas neste ano o congestionamento começou cinco semanas antes das festas. Também estamos com cinco vezes mais pessoas do que a população normal de Manhattan. E agora ainda chegam estes milhares de guardas e manifestantes protestando”, lamentou.

O aniversário da cidade é comemorado em 1º de janeiro, dia em que no ano de 1807, os cinco distritos (Manhattan, Brooklyn, Bronx, Queens e Staten Island) foram unidos para formar os limites de Nova York. Deste modo, é apropriado que o inferno astral – um mês antes do aniversário – seja vivenciado durante o mês de dezembro. As complicações para o prefeito Giuliani e a população começaram quando a prefeitura implantou um sistema agressivo para tentar tirar os sem-teto das ruas. Primeiro foi determinado que uma pessoa não pode dormir em locais públicos (o que é lei, mas nunca cumprida). Segundo: os que não têm onde morar deveriam ir para abrigos públicos ou hospitais (em caso de doença mental). Isso infringe o direito constitucional do cidadão, que não pode ser obrigado a ir para onde ele não deseja. Terceiro: uma vez num abrigo, a pessoa teria de aceitar um emprego providencia-do pela prefeitura para pagar sua estada. Aqueles que se recusassem seriam jogados na rua, ficando deste modo sem ter onde dormir (a tal lei proibindo que se durma em locais públicos seria evocada novamente). Além disso, pai ou mãe de filhos menores que se recusassem a trabalhar corriam o risco de perder a guarda das crianças.

No dia seguinte, 8 de dezembro, a população aplaudia o protesto feito pelos sem-teto que montaram uma autêntica cidade de 100 barracas em plena esquina da avenida Madison com a rua 42 – um dos pontos nevrálgicos da

cidade. Até que um juiz da corte de Manhattan determinou a suspensão da política do prefeito Giuliani. Os sem-teto poderiam assim dormir na chuva e no vento, como sempre fizeram, sem ter de se preocupar com a polícia. “Na verdade, esta política do prefeito é alimentada por seu desejo de mostrar aos milhões de turistas que estão na cidade que a administração Giuliani acabou com os mendigos. Ora, todo mundo sabe que temos sem-teto. Não é jogando pessoas atrás das grades que se acabará com o problema de moradia em Nova York”, disse o reverendo Al Sharpton a ISTOÉ.

Assim, o prefeito estaria tentando livrar-se dos sem-teto apenas para enganar os visitantes que vieram despejar dinheiro em sua cidade. Nos últimos 60 dias, a média de aterrissagem no aeroporto JFK foi de um jato a cada 20 segundos. “E é bom lembrar que existem ainda outros quatro aeroportos na região metropolitana da grande Nova York. Um deles, o de Newark, também é internacional”, diz Marion Letts, do birô de turismo da cidade. “Estamos imaginando um aumento de US$ 5 bilhões no faturamento anual com o turismo neste ano. Até novembro último, 40 milhões de pessoas haviam visitado a cidade, e o mês de dezembro promete bater recordes históricos. Os sete mil quartos de hotéis estão com ocupação completa e hoje é impossível se conseguir reserva num restaurante decente para o jantar de daqui a duas semanas. O Daniel’s, por exemplo, só está aceitando reservas para o final de janeiro do ano 2000”, diz Letts. Essa massa de turistas fez com que o tráfego na frente da loja de departamentos Lord & Taylor, a múltipla campeã no concurso de melhor decoração de vitrine na Quinta Avenida, chegasse a níveis assustadores. Tanto que a prefeitura colocou guardas de trânsito para comandar o fluxo de pedestres naquele trecho. “Nós estamos registrando uma média diária de um milhão de pessoas passando pela fila para ver as vitrines. É um recorde que tem dado uma trabalheira danada”, diz com voz rouca o guarda Allan McGurk, cansado de gritar comandos para a turba ignara que não flui em frente dos bonecos mecanizados da vitrine que tem como tema Wishes around the world, com representação até da Amazônia brasileira.

Ameaça terrorista – Assim, o centro da cidade mais parecia a representação do inferno feita pelo pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Esta, contudo, seria uma das poucas intersecções entre a arte e as multidões em Nova York. O MoMa (Museu de Arte Moderna), por exemplo, estava em greve. Os funcionários reivindicavam aumentos de salários e deixaram os turistas a ver navios. No Metropolitan Museum, quem se arriscou a um mergulho em suas galerias teve de suportar filas de até 40 minutos para entrar. “Se o Met está deste jeito, imagine como anda a Macy’s”, disse Linda Roberts, bilheteira do museu.

Em Times Square, onde a dez segundos do novo ano a tradicional bola de luz descerá do prédio número um da praça, mais de um milhão de almas estão sendo esperadas. O FBI e o comando antiterrorismo da polícia fazem varreduras diárias na região. Um alerta especial do Departamento de Estado dá conta de que grupos ligados ao terrorista islâmico Osama bin-Laden, arquiinimigo dos EUA, estariam prontos para agir. Doze homens foram presos na semana passada na Jordânia, acusados de estarem planejando ataques. “Sabemos que terroristas estavam preparando ataques a americanos em locais como o Vaticano e Jerusalém. Também planejam agir em território americano no dia 31”, disse a ISTOÉ uma fonte do FBI. “Imagine o que seria uma ação com bombas em Times Square. Nem seria preciso que a explosão matasse alguém: a multidão em pânico seria suficiente para desencadear a maior tragédia já vista na Costa Leste americana”, completou.

E as autoridades tiveram um pequeno ensaio do que seria tal pânico, quando no dia 15 último, um telão de televisão – sobre os novos estúdios da rede ABC de tevê – explodiu e pegou fogo. A correria da multidão que se aglomerava em frente ao janelão da ABC só por milagre não provocou vítimas fatais. Seis pessoas, todos turistas, ficaram levemente feridas. “O incidente envolveu apenas o superaquecimento da fiação do telão, mas nós sentimos o gosto amargo do que poderá ser um ataque terrorista”, disse o comissário de polícia Howard Safir. Isso, é claro, se o vírus do milênio nos computadores, o popular Y2K, não causar os estragos que os profetas do apocalipse cibernético antevêem. Por tudo isso, uma pesquisa revelou que 78% dos nova-orquinos têm intenção de passar o réveillon do século dentro de casa. E apenas 2% dizem ter curiosidade de ir a Times Square para a chamada “Festa do Milênio”. Muitos dizem que não querem nem ver as imagens da praça pela televisão. Preferem assistir a um vídeo alugado, e um dos mais procurados nas reservas, sintomaticamente, é o título Escape from New York.