Contingência, segundo o Aurélio, é a incerteza se uma coisa acontecerá ou não. Armar um plano de contingência, então, é se preparar para o incerto. E, por mais gigantesca e caríssima que tenha sido a tarefa de evitar qualquer desastre – a conta pode ter chegado nos US$ 500 bilhões em todo o mundo –, ninguém é capaz de garantir que nada de ruim acontecerá. Portanto, já estão mobilizados mais de um milhão de profissionais ao redor do planeta, escalados para enfrentar neste réveillon o tão falado e pouco conhecido bug do milênio. Deverão estar prontos para o pior. Só o serviço público brasileiro escalou cerca de dez mil funcionários, sob a coordenação de quem mais entende de contingência: o Ministério da Defesa. Onde já está pronta uma verdadeira sala de guerra, que irá monitorar o funcionamento dos serviços essenciais do País, como energia, comunicações, bancos, saúde, etc. Teme-se, a rigor, que um pequeno problema, localizado, provoque uma reação em cadeia, semeando o pânico. O exemplo de confusão mais aventado deve ocorrer na área de telefonia: um número excepcional de usuários não conterá a curiosidade – inflamada pelo clima de festa – e vai tirar o fone do gancho só para saber se está funcionando. O sistema não aguentará tamanha demanda simultânea. Resultado: um “caladão”, que deixará muda a maioria dos telefones dos grandes centros urbanos. Mesmo que as consequências sejam insignificantes, o espectro do bug não desaparecerá com a entrada do Ano-Novo. O pior mesmo virá depois. Será a fase do pós-bug. Tomaram-se tantas precauções contra ele que boa parte delas terá um inevitável efeito retardado. Segundo a revista britânica The Economist, o “dia seguinte” poderá provocar uma pequena recessão na economia americana.

Tormenta – Será provavelmente a véspera de Ano-Novo mais ansiosa da história. Quando o ponteiro dos minutos se aproximar da meia-noite de 31 de dezembro, a tradicional expectativa do estouro do champanhe terá dado lugar a uma certa tensão geral. Não por causa de qualquer teoria apocalíptica de Nostradamus, mas sim por uma falha em um número incerto de computadores que, apesar de poderosos, não foram preparados para entender que 2000 é maior que 1999 – o que o jargão da informática chama de “bug do milênio”. Além do que, 2000 será um ano bissexto, com um dia a mais em fevereiro, também desconhecido pelos computadores. Alguns tecnofóbicos imaginam que o mau funcionamento dessas máquinas provocará um verdadeiro caos nos serviços de abastecimento. O mais provável, porém, é que o estrago seja menor. Especialistas respeitados, como os da empresa americana Gartner Group, acreditam que as pessoas devem se preparar, sim, mas como se estivessem esperando uma tormenta que durará menos de uma semana. Dizem também que boa parte dessa expectativa tormentosa poderia ter sido minimizada se os órgãos federais dos países mais ricos tivessem “acordado” mais cedo para o problema – o que se dirá dos países com organização precária como o Brasil. Daí o medo da contingência.

Esse é um problema absolutamente peculiar. Embora não se conheçam com precisão quais consequências trará, há uma certeza sobre ele: irá se repetir em cada um dos 24 fusos horários do planeta – a começar por uma pequenina ilha da costa da Nova Zelândia. Sua causa é banal, para não dizer ridícula. Quando o computador passou a ser uma ferramenta comercial nos anos 50, faltando, portanto, outro meio século para a virada do milênio, sua memória eletrônica era muito cara. Para se ter uma idéia, em 1965 um megabyte (suficiente para gravar um texto de 300 páginas) custava US$ 761. Hoje, o mesmo espaço em qualquer PC custa a pechincha de 75 centavos de dólar. Então, para economizar o que era muito caro, os engenheiros da época adotaram a prática de cortar e abreviar tudo o que fosse possível, inclusive os dois primeiros dígitos comuns a todos os anos do século XX. Como todos os computadores – e os chips neles embutidos– funcionam amparados em datas, a conclusão do raciocínio absolutamente lógico da máquina será a de que 00 significa 1900 e não 2000. Resultado: ou trava, porque a referência é incompreensível, ou remete qualquer cálculo para o início do século XX, com consequências desastrosas. Mesmo antes da virada, alguns incidentes já deram uma prévia do que está para vir. Computadores de um departamento de trânsito americano emitiram, em outubro, registros dos 800 primeiros carros e 1.200 caminhões ano 2000 como se fossem “carruagens sem cavalos”, classificação usada em 1916. E aqui? Bom, o Detran de São Paulo, o maior do País, garante que seus sistemas estão corrigidos. Mas sabe-se que um motorista paulista já recebeu uma multa por excesso de velocidade na rodovia Marechal Rondon com a data de 7 de setembro de 3899 (não por acaso é a soma de 1900 com 1999). E os de Estados mais atrasados? Ninguém sabe dizer.

No final das contas, aquela economia praticada nos anos 50 ficou caríssima. Para reparar essa falha (do inglês, bug) em todos os computadores do mundo estimam-se gastos estratosféricos. Só nos EUA os cálculos mais conservadores já ultrapassaram a cifra de US$ 200 bilhões. No Brasil, estaria em U$S 35,8 bilhões – cálculo feito pelo governo americano e empresas internacionais, já que aqui ninguém quer falar em números. Pior: é uma fortuna que não terá retorno em lucros ou dividendos. É dinheiro perdido para sempre. Isso sem contar o custo dos processos legais por perdas e danos causados por computadores que escaparão ao conserto, e devem movimentar nos próximos anos perto de US$ 1 trilhão em indenizações nos tribunais de todo o planeta. É realmente muito estrago por nada.

O grande perigo dessa falha banal é sua incerteza. Como nunca aconteceu e provavelmente nunca se repetirá, não há como prever suas reais consequências. Essa perspectiva, que pode tomar as pio-res cores dependendo de quem a vê, está levando muita gente a tomar atitudes drásticas, particularmente nos EUA, onde o pânico coletivo dispara facilmente. E não são apenas iniciativas pessoais ou de grupos místicos que temem o fim do mundo. Autoridades de vários países, como o primeiro-ministro japonês, incentivaram seus habitantes a estocar alimentos em casa. No seu último relatório de investigação sobre o bug, o Congresso dos EUA reitera esse conselho. Como o novo século irá raiar primeiro no Extremo Oriente, algumas organizações montaram lá grandes centrais de testes. A exemplo do Banco de Boston, que espera avaliar todas as chances de estragos em uma verdadeira war room instalada na Austrália, com 11 horas à frente da abertura do mercado no coração da organização nos EUA.

E no Brasil? – Marcos de Almeida, funcionário da Secretaria da Administração federal encarregado de supervi-sionar o conserto dessa falha em todos os computadores do governo, garante que o trabalho foi concluído a tempo. “Principalmente nas áreas mais sensíveis como energia elétrica, abastecimento de água, telecomunicações e saneamento básico.” Uma campanha publicitária do governo, que começou a ser veiculada no último dia 9, procura passar ao público essa aparente tranquilidade. Não é, porém, o que dizem especialistas internacionais. Todos prevêem que o serviço público brasileiro será o setor mais atingido. Relatório do Departamento de Estado americano chega a alertar os turistas que planejam passar o réveillon no Brasil que poderá haver “interrupções nos setores de telecomunicações, eletricidade, saúde e, possivelmente, nos serviços financeiros”. Toda a gigantesca tarefa de conserto do bug foi coordenada por um comitê formado por representantes de vários setores da vida pública. E pôde ser acompanhada passo a passo em uma página da Internet (www.a2000.gov.br).

O fato é que essa meticulosa e demorada tarefa braçal de checar todas as linhas, de todos os programas, em todos os computadores começou muito tarde. Uma das justificativas dadas pela administração brasileira é que os setores sensíveis, como as teles, ficaram temporariamente imobilizados em função das privatizações. Como que para compensar isso, as novas agências reguladoras, Anatel (telecomunicações) e Aneel (energia elétrica), emitiram somente no final do primeiro semestre portarias exigindo certificados de garantia dos novos controladores privados. Na área de energia, os testes começaram no ano passado – um deles, na hidrelétrica de Xingó (Nordeste), provocou um pânico geral nos sistemas de fornecimento. “A partir daí o setor acordou”, admite Almeida. Na virada do dia 12 para 13 de junho foi feita uma simulação com todas as 74 empresas do sistema elétrico. Não houve problemas, garantem os técnicos. Mas como o sistema brasileiro é todo interligado, pelo sim pelo não, foram instalados isoladores nas principais centrais de distribuição de energia. Se uma região ficar no escuro, impede-se que o efeito cascata atinja as outras.

O Brasil no mundo – Para os consultores internacionais que monitoraram a situação em todo o mundo, o Brasil não está tão mal quanto a maioria. O Gartner fez uma extensa pesquisa em 87 países, dividindo os principais em quatro grupos de risco crescente. Os EUA, como não poderia deixar de ser, estão no primeiro grupo, o dos mais bem preparados. O Brasil está no segundo, ao lado da França e à frente de países como a Itália, que está no terceiro grupo. Isso não significa que a eficiência brasileira seja maior que a desses países. A explicação é que o Brasil ainda não depende tanto da tecnologia da informação quanto os mais desenvolvidos. Vastas regiões do interior ainda vivem na Idade Média em termos de tecnologia. Segundo o Gartner, há no País muitos processos que comportam substituição manual. “Se a rede não estiver funcionando, os brasileiros estão acostumados a preencher manualmente uma nota fiscal. Nos EUA, isso não existe”, explica Cássio Dreyfuss, diretor de pesquisa do Gartner no Brasil. O que não quer dizer que as dificuldades serão pequenas. “O serviço público vai dar problemas por muito tempo ainda”, avalia.

Ainda há dúvidas, por exemplo, se o Dataprev terá condições de processar o pagamento dos aposentados na data certa a partir de janeiro. Uma pesquisa de opinião pública avaliou que o setor financeiro é a segunda maior preocupação do brasileiro em relação ao bug – só perde para a aviação. De acordo com os analistas, é de longe o mais preparado. Passou por cinco testes. Um deles, em agosto, envolveu todos os 184 bancos comerciais, numa operação que simulou a passagem do ano nas 19.468 agências e caixas eletrônicos em 3.585 municípios. Assim mesmo, os planos de contingência foram redobrados. Segundo o Banco Central, haverá um reforço de 30% no dinheiro em circulação – o que significa R$ 7 bilhões a mais na praça. Se for detectado algum sinal de fuga de capital ou de corrida aos bancos, o governo está autorizado a sacar US$ 4,5 bilhões dos recursos do FMI.

Mas, essa liquidez salvadora também pode provocar problemas no day after. Autoridades dos maiores centros financeiros do mundo estão preocupadíssimas com isso. E não apenas em relação ao excesso de dinheiro em circulação, que pode desestabilizar o sistema monetário. Sabem que grandes corporações fizeram estoques de produtos bem acima da média, como precaução para uma eventual falha no sistema de abastecimento. Esses dois ingredientes são fatais. Podem levar a uma recessão na economia americana e, por consequência, em todo mundo. Isso, sem contar as falhas provocadas pelo bug depois da virada. O próprio Gartner indica que 25% dos problemas relacionados ao bug ocorrerão antes do dia 31 de dezembro. Apenas 10% acontecerão na virada do milênio, e 55% pipocarão ao longo do ano 2000. Perto de 15% só irão disparar em 2001 e outros 5% nos anos seguintes.

Aviação – E, então, resta a pergunta que muita gente já se fez: e as linhas aéreas? Dá para pegar um avião na passagem do ano e não temer um acidente causado pelo bug? Bem, as companhias de aviação garantem que corrigiram todos os seus computadores, tanto os de bordo quanto os de terra. A Varig, por exemplo, contratou a IBM para consertar todos os 20 milhões de linhas de código de suas máquinas. Mais de 12 milhões foram simplesmente jogadas fora. Mas é verdade também que pouquíssima gente vai estar voando nesse período. Muitas companhias aéreas simplesmente cancelaram seus vôos horas antes e depois da meia-noite. Dizem que é por falta de passageiros. Mas quem entende do assunto garante que pesou na decisão a possibilidade, por menor que seja, de que alguma coisa não funcione direito. O Departamento de Aviação Civil (DAC) também garante que todos os sistemas de controle de tráfego aéreo, que já foram a maior preocupação do setor, estão o.k. Mas, por precaução, aumentou de um para 15 minutos o intervalo entre qualquer vôo nesse período. A cautela de todas as principais companhias internacionais irá provocar, por sinal, um outro problema inédito: não haverá espaço suficiente nos pátios dos aeroportos para estacionar todos os aviões. Nos EUA e na Europa, já foram requisitadas algumas bases aéreas militares para abrigar as aeronaves civis.