Depois de começar o ano a pleno vapor, legislando a toque de caixa sob o impacto da desvalorização do real, o Congresso caiu no marasmo e terminou deixando para a convocação extraordinária de janeiro de 2000 as matérias mais importantes da pauta de votação. As reformas ensaiaram uma arrancada nas comissões, mas emperraram na reta final. Governo e Congresso ainda não chegaram a um consenso sobre a reforma tributária simplesmente porque, depois de aumentar a arrecadação e superar a crise cambial do início do ano, a equipe econômica teme mexer nas regras do jogo e perder um centavo sequer. Mandou agora um novo projeto que os deputados se recusam a aceitar. “É muito conservador”, diz o ex-ministro do Planejamento, Antônio Kandir (PSDB). A reforma do Judiciário – uma das prioridades do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP) – encontrou uma série de resistências e saiu da pauta de prio-ridades. Ainda ficaram pendentes a conclusão de temas importantes para a reforma administrativa, como a emenda do subteto, e para a reforma da Previdência, como a cobrança dos inativos do funcionalismo.
Pior. O Congresso não avançou naquilo que se esperava dele, mas legislou em causa própria ao aprovar dois projetos. O primeiro, anistia de multa os candidatos que cometeram irregularidades nas duas últimas eleições. Ou seja: favorece os próprios deputados e senadores, eximindo-os de pagar pelos seus crimes eleitorais. O outro projeto aprovado foi o da chamada “Lei da Mordaça”, que tenta dificultar o trabalho da imprensa em denunciar falcatruas. A nova lei, se aprovada no Senado, irá proibir que as autoridades judiciais divulguem qualquer informação sobre o andamento de processos. Para muitos, é uma espécie de censura velada, que tende a favorecer os poderosos acusados de cometerem crimes. “É um projeto medieval. Incompatível com as exigências de transparência absoluta na prática dos atos públicos, administrativos e judiciais”, protestou o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Márcio Martins Bonilha. “Parece que uma parte da classe política quer esvaziar o poder de fiscalização sobre eles”, completa o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Luís Antônio Marrey.

Se houve quórum suficien-te para votar matérias desse tipo, faltou gente em plenário para outros projetos de interesse público. Na última sessão da Câmara, na terça-feira 14, havia 482 deputados na Casa, um quórum “pra lá de qualificado”, de acordo com o próprio presidente da Câmara, Michel Temer, mas nada de importante foi votado. “Era arriscado votar qualquer matéria de peso”, justificou o líder do governo, Arnaldo Madeira (PSDB-SP), depois de medir a pressão dos aliados e pedir adiamento da votação dos projetos vitais para o governo. Madeira preferiu aguardar até janeiro para dar tempo de “trabalhar melhor” a base governista.

Fisiologismo – O toma-lá-dá-cá, o mesmo que garantiu a aprovação da emenda da reeleição, continua. O fisiologismo tão comum, como as conversas no cafezinho da Câmara, não é admitido pelos políticos. “Os projetos é que são polêmicos. E se tem chantagem no Congresso, é o governo que está fazendo, quando não libera as verbas do Orçamento”, argumentou o deputado Roberto Brant (PFL-MG). “O governo é quem faltou, não executou o Orçamento. Se não cumpre, tem de explicar o porquê”, completou o deputado Nilo Coelho (PSDB-BA).

No final da tarde de quarta-feira 15, o deputado Aloizio Mercadante (PT-SP) foi à tribuna da Câmara dos Deputados fazer um discurso. Eram 17h55 e o plenário registrava a presença de apenas dois parlamentares. Mercadante queixava-se justamente da ausência dos colegas que deixaram todas as votações mais importantes para a convocação extraordinária, em janeiro. Poucos minutos depois, a porta do plenário foi trancada e o salão verde transformou-se num enorme vazio. O Congresso saiu de férias sem concluir ainda votações do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), rebatizado de Desvinculação de Receita Orçamentária (DRU), do Orçamento da União e do Plano Plurianual (PPA). O FEF, por exemplo, começou a sofrer nas mãos dos deputados quando o líder do PMDB, Ged-del Vieira Lima, soube que as verbas enviadas para os ministérios de seu partido vinham da pasta do Orçamento e Gestão já com seu destino carimbado pelo Palácio do Planalto, evitando que o partido tivesse qualquer poder de decisão sobre elas. Geddel não teve dúvidas: mandou tirar o projeto de pauta. Foi preciso o coordenador político do governo, ministro Aloysio Nunes Ferreira, mandar “descarimbar” as verbas para que o FEF voltasse a tramitar. Logo, os deputados notaram o interesse do governo sobre o projeto e resolveram obstruí-lo, enquanto não fossem liberadas verbas para suas emendas paroquiais. Acabou que o projeto não foi votado.

Duras críticas – Depois do descontentamento da base aliada com o governo, que vinha pautando o comportamento do Congresso, veio a cobrança em tom de baixaria. Os políticos se liberam nas festanças natalinas e aproveitam para expressar ressentimentos e frustrações. Bastam algumas doses. Há quatro anos, o então presidente da Câmara, deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), aproveitou um balacobaco de fim de ano para desancar o presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem dedicou uma versão especial da música Apesar de você, de Chico Buarque de Hollanda. Este ano, a crítica subiu um tom. Na noite da terça-feira 14, a cúpula do rebelde PMDB promoveu uma festa de confraternização num hotel de Brasília. Com o senador Luiz Estevão (PMDB-DF) ameaçado de ser cassado, o ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, tendo de explicar falcatruas DNER e os deputados irritados por não conseguirem liberar seus nacos no Orçamento da União, os dirigentes peemedebistas partiram para pesados ataques contra o FHC e o governo do qual fazem parte. “Fernando Henrique teve um comportamento cretino comigo”, queixou-se o ex-ministro da Justiça Renan Calheiros (PMDB-AL), segundo revelou O Globo na quinta-feira 16. “O governo de FHC é frouxo. É um governo de bosta”, esculhambou o líder do PMDB, Geddel Vieira Lima (BA). Sobram ainda queixas sobre a participação do partido nos cargos do Executivo e ciúmes do PSDB que, desde a última reforma ministerial, teria abarcado todos os postos de segundo escalão onde ainda há dinheiro: BNDES, Banco do Brasil e Petrobras.

Para ter a presença de 513 deputados e 81 senadores em Brasília no período de convocação extraordinária, entre janeiro e fevereiro, o governo agora terá de desembolsar R$ 9,5 milhões a mais só na folha de pagamento do Congresso. Cada parlamentar receberá R$ 16 mil extras a título de ajuda de custos para a viagem a Brasília, além dos R$ 8 mil de salário. Mas esse reforço de caixa não é garantia nenhuma de que a convocação será proveitosa. O final de ano pífio do Congresso tem tudo para se repetir na convocação extraordinária, a não ser que o governo resolva abrir as torneiras e liberar dinheiro para as emendas dos deputados, que foram tratados a pão e água neste ano de ajuste fiscal. A proximidade das eleições municipais e os baixos índices de popularidade de FHC fazem prever dias difíceis para o governo com sua indócil, rebelde e, por vezes, insaciável base parlamentar.