O presidente argentino, Néstor Kirchner, sabe manejar a personalidade rebelde da população de seu país. Há 30 anos os argentinos têm aversão ao Fundo Monetário Internacional, inimigo número 1 dos países em apuros. Nunca hesitaram em improvisar bandeiras e cartazes e sair às ruas protestando contra todos que consideram inimigos – o FMI na linha de frente. Esperto, o presidente Kirchner, nesta rodada de negociação com o Fundo, criou antes um clima de hostilidade em relação às ordens que viriam de Washington – sempre excessivamente severas, seja o país que for – mas acabou por fechar um acordo na terça-feira 9, pelo qual a Argentina paga uma parcela de US$ 3,1 bilhões do pacote de US$ 21 bilhões fechado em setembro do ano passado. O Fundo, por sua vez, promete aliviar o rigor de suas exigências quanto à renegociação da dívida pública em mãos dos credores. O principal ponto do acordo: a Argentina reconhece
o comitê de credores e começará a discutir com seus representantes a partir da próxima semana.

O calote era a opção da maioria da população. Apenas 16% dos argentinos (predominantemente da classe média) se opunham a um calote ao Fundo, mas mesmo escapando do calote o presidente não perdeu o respaldo da população. Há um mês ele tinha 82% de aprovação popular, caiu para 72%, mas a “qualidade do apoio” melhorou, segundo a imprensa do país. E melhorou porque, em vez de se basear apenas em seu estilo firme de governar, esse apoio vem do respaldo a suas decisões. Kirchner pagou uma dívida que se origina no governo de outro “inimigo”, Domingo Cavallo, contraída em meados de 2001 para sustentar o déficit fiscal do país. Aparentemente, o presidente saiu intacto da negociação. Pesquisas de opinião pública feitas antes da decisão indicavam que qualquer decisão oficial em relação a “pagar ou não” contaria com o aval popular. Isso porque, revoltados contra seus antecessores, os argentinos vêem Kirchner como um homem com força, caráter, independência de poderes externos. Certamente ele não é tudo isso, mas quem teve Carlos Menem como presidente durante quase uma década não almeja nenhum estadista da estirpe de François Mitterand na Casa Rosada.

O calote – cogitado pelo governo e reivindicado em manifestações de rua – dificultaria o retorno do investimento internacional ao País. É

uma roda perversa: as empresas e o governo argentino não conseguem captar capital privado no exterior desde a moratória de dezembro de 2001. Só tem acesso a financiamentos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Se desse outro calote,

desta vez não poderia mais contar com essas duas fontes. Na nota divulgada pelo FMI na quarta-feira 10, a diretora-gerente interina da instituição, Anne Krueger, disse que “a economia está se recuperando rapidamente e a implementação disciplinada das políticas monetária e fiscal tem contribuído para fortalecer a confiança, reduzir a inflação, abaixar as taxas de juros e atrair investimentos privados”. A Argentina é o terceiro maior devedor do Fundo, atrás do Brasil e da Turquia. Juntos, Brasil, Turquia e Argentina respondem por 72% de todo o crédito que o Fundo tem a receber.