Poderia um cordeiro entrar num
covil de lobos em dia de banquete e sair de lá inteiro, com os predadores dormindo, bocejando, às babas?
É pouco provável, mas a resposta
é sim. Basta que ele pedisse emprestado um discurso do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o lesse para
as feras. Prova maior do efeito sonífero provocado pela oratória “meirellística” ocorreu na aula magna ministrada pelo chefão do BC numa faculdade de São Paulo, há dias. Ele falava a uma platéia de estudantes de economia e relações internacionais – teoricamente sedentos por ouvir a autoridade monetária na terra dos juros altos. Qual o quê! O pronunciamento nem bem chegara à metade e já contavam-se pescoços tombados pelo doce sono dos justos.

Que não se culpe os estudantes. O tal discurso da aula magna foi submetido por ISTOÉ ao professor Djalma Melo, diretor do Departamento de Linguística da Universidade de Brasília. “O texto é maçante e pretensamente rebuscado, daí torna-se obscuro e desinteressante”, diagnostica. A peça traz a fina flor do “meirellês”. Por exemplo: para falar do que os economistas chamam de crescimento sustentado (quando a economia se expande sem gerar inflação ou crise cambial), ele informou que o fenômeno resulta da “ampliação da capacidade produtiva potencial da economia brasileira”. Adiante, tentou explicar por que os juros são tão altos no Brasil, não sem antes lembrar que a coisa está ruim, mas já foi pior: “A taxa real do swap de 360 dias, ou seja, a taxa praticada pelo mercado descontada pela inflação esperada pelo mercado para o mesmo período, caiu quase pela metade ao longo de 2003.”

Pode-se argumentar que, naquela ocasião, o banqueiro central brasileiro falava a um público especializado. Então busque-se outro exemplo, o pronunciamento de prestação de contas ao Congresso Nacional, feito em outubro do ano passado, em que ele, portanto, se dirigia à nação. “Em valores nacionais, somente para referência, em 30 de junho, o Banco Central apresentava uma posição comprada líquida de R$ 105 bilhões em contratos de swap, pagando a variação cambial mais cupom e recebendo a variação da taxa de depósito interbancário”, esmiuçou, no capítulo referente ao balanço do BC em 2003. Em português, significa que a equipe de Meirelles apostou alto – e venceu! – no mercado financeiro: o BC ganhava toda vez que o dólar rendia menos que os juros.

Uma coisa pode se dizer de Meirelles: seu estilo é absolutamente democrático. Confunde tanto leigos quanto iniciados. “Acho que ele é fraco com as palavras mesmo”, opina o professor Francisco Eduardo de Souza, do Instituto de Economia da UFRJ. “Quando fala, ele complica. Quem está com sono dorme. Quem não está não entende nada”, avalia Carlos Antônio Magalhães, diretor-técnico da seção fluminense da Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais (Abamec).

Não são todos os discursos gerados diretamente das mãos de Henrique Meirelles – e olhe que são muitos, visto que ele faz, em média, três apresentações por mês. Em não raras ocasiões, o presidente pede ajuda ao diplomata João Batista Magalhães, seu assessor especial. Um escreve, o outro revisa. Mas sempre a palavra final, a azeitona da empada, é posta pelo chefe. Alguns parágrafos brotam encomendados da pena de chefes de departamento e passam pelo filtro de Magalhães antes de chegarem para a ornamentação final. O banqueiro central raramente fala de improviso e tem predileção por apresentações computadorizadas. Nelas, participa pessoalmente da construção dos gráficos. O recurso, entretanto, não melhora seu desempenho.

Um desses pronunciamentos feitos com a ajuda do projetor de slides

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foi minuciosamente analisado pela linguista Lúcia Teixeira, renomada professora da Universidade Federal Fluminense. Ao mergulhar no texto

da autoridade, ela pescou algumas idiossincrasias. Nota o uso corrente

de frases curtas, o que a princípio seria uma qualidade. Mas, somado

à estrutura geral do pronunciamento – repetições de verbos e raciocínios –, revela, segundo ela, “incapacidade de argumentar a partir de um pensamento político mais denso”.


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