Nada como uma eleição de prefeito num domingo de sol para que votar no Rio de Janeiro seja, de fato, um exercício de cidadania. Principalmente se o eleitor sair do Leblon para o encontro marcado com a urna no Leme

E o dia fica ainda melhor quando ele vai a pé pela orla, parando nas barracas de coco verde, para esticar ao máximo os sete quilômetros e meio de ida, sete quilômetros e meio de volta, com todo o tempo do mundo para ver o sol girar ao longo do percurso como frango de padaria, até cair de vez no mar, por trás da pedra dos Dois Irmãos.

Foi o que fiz neste segundo turno, tratando de esticar ao máximo o tal exercício do voto. A ponto de ser recebido em casa pelo plantão do telejornal, já anunciando a derrota de Fernando Gabeira. Seu mandato durou, no domingo, cinco horas e 15 quilômetros. Nesse tempo, a julgar pelo que se via na praia, apesar de todas as pesquisas eleitorais em contrário, ele parecia mais que eleito. Parecia empossado. No começo da tarde – quer dizer: no meio do caminho, ao passar por Ipanema, com buzinaço e carro aberto, num cortejo de fotógrafos e cinegrafistas – Gabeira tinha assumido na vida pública um posto que andava baldio há décadas na vida dos cariocas. Ele estava reinaugurando na cidade a graça de votar.

E isso ninguém lhe tira. Nem o veredicto incontroverso do voto popular. Muito menos os recursos para lá de discutíveis que se conjuraram para turvar a eleição no Rio de Janeiro. Decretou-se um feriadão para lá de suspeito, antecipando para segunda-feira o dia do funcionário público, para evacuar a cidade e promover a abstenção. Fez-se panfletagem ilegal em boca-de-urna. Mexeu-se até no trânsito, para engarrafar os bairros oposicionistas.

A coligação que vai do presidente Lula ao governador Sérgio Cabral elegeu Eduardo Paes por uma beirada de 55 mil votos – vantagem tão exígua, que a próxima Câmara Municipal terá dois vereadores de oposição com mais votos do que a margem conquistada pelo prefeito. Finda a disputa, vieram as contas de sempre. Elas dizem que Gabeira perdeu entre os eleitores que não completaram o segundo grau, ganham menos de dois salários mínimos e moram em favelas, na zona oeste ou na zona norte. O que nunca faltou aos cariocas é argumento pronto, para extrair das urnas a reiteração do Rio como cidade partida. As surpresas sempre cabem no molde prévio das explicações.

Mas não era bem isso o que se via ao ar livre no dia da eleição. A praia, naquela tarde, escancarava como nunca o novo figurino social do Rio de Janeiro, onde nem o verão é mais o mesmo. Domingo, em Ipanema, atualmente, é dia de troca de guarda. Sai de cena, como que num empurrão, a turma que mora nos apartamentos com vista para o mar e paga um dos metros quadrados mais caros do mundo.

E entra o andar de baixo. Que, aos domingos, sobe. A calçada e a areia de Ipanema amanhecem tranqüilamente ocupadas por carrocinhas de churros, vendedores de sacolés, churrasqueiras ambulantes, kombis decrépitas entulhadas de refrigerantes, chuveiros improvisados com bombas para a ducha de água doce de quem encarar o ônibus para o subúrbio e biquínis desenhados para modelos esquálidos que vestem como podem corpos opulentos.

Tudo na mais perfeita desordem, sem briga nem arrastão. Pelo visto, os cariocas estão testando ali um modo informal de colar como podem os cacos da cidade partida. Quem vai ficando cada vez mais partida é a Prefeitura do Rio de Janeiro. Saiu dividida ao meio do último teste eleitoral.

Marcos Sá Correa é jornalista e editor da revista Piauí