Nos anos 40, um grupo de rapazes truculentos ganhou fama em Salvador. Pequenos e às vezes graves delitos faziam da turma do Campo da Pólvora uma das mais temidas da cidade. Na hierarquia da gangue, que ganhou o nome do bairro onde se abrigava, as ordens partiam de Umbelino, Dario e Índio, seus líderes mais violentos. Protegiam das sovas outros garotos menores. Entre eles, um meninote chamado Antônio Carlos Peixoto de Magalhães. Mais de meio século depois, as calças curtas deram lugar a ternos de grife. E o tipo mais franzino transformou-se num senhor corpulento, calvo e grisalho. Acostumado a bofetear e ofender colegas no Congresso e pretensos inimigos fora dali, ACM impõe-se como líder da mesma forma que se impunham os mandachuvas do Campo da Pólvora: à força. Na segunda-feira 13, ele deu nova prova desse temperamento explosivo. Utilizando carta timbrada da Presidência do Senado, enviou fax à Sucursal de Brasília de ISTOÉ para reclamar de uma nota. Suas palavras, reproduzidas na capa desta edição, dão o tom do mandato que exerce.

Filho de uma família da classe média baixa, o poderoso presidente do Senado passou a adolescência num modesto sobrado com apenas seis metros de frente, espremido no número 55 da rua da Independência, em Salvador. O pai de ACM, José Maria de Magalhães Neto, reprovava as amizades do filho e tentava colocá-lo num bom caminho. “Houve um caso famoso de estupro contra uma enfermeira. Mas a in-fluência dos pais abafou as investigações”, conta o médico aposentado José Ellery, contemporâneo de ACM e depois seu colega de faculdade. Apesar do depoimento, não há nada que aponte a participação do senador no episódio, ainda que isso dê uma idéia da crueldade da turma. Pouco depois, Magalhães Neto conseguiu que o filho fosse aceito na Faculdade de Medicina e também empregou-o nos Diários Associados, como redator. Começava ali uma surpreendente reviravolta.

Em cinco décadas, ACM foi capaz de acumular um patrimônio que supera em muito os salários e aposentadorias embolsados por ele nesse tempo. Declara ter R$ 5,2 milhões em bens pessoais, mas sua fortuna é pelo menos três vezes maior do que isso. São bens e empresas que estão sob seu comando e uso, mas oficialmente registrados em nome de gente de confiança, como o deputado federal Félix Mendonça (PTB-BA), e gente da família, como o genro César de Araújo Mata Pires. Todos ajudam a explicar um patrimônio para o qual ACM só pode justificar cerca de R$ 4,2 milhões, fruto de suas três aposentado-rias precoces. A mulher do senador, Arlete Maron Magalhães, por exemplo, é sócia de uma empresa e diretora de outra, segundo a Junta Comercial da Bahia (Juceb). Mas no cartório de imóveis da capital baiana é qualificada como “de prendas do lar”. Os salários de nove mandatos políticos e outros cargos obtidos por indicações partidárias mal sustentariam o padrão de vida da família, acostumada a voar em jatinhos, cultivar hábitos requintados e frequentar casas de veraneio. Conquistas dignas de uma saga em três partes.

Primeira – Em 1954, aos 27 anos e recém-casado com Arlete, filha de uma família tradicional, ACM conseguiu seu primeiro mandato, como deputado estadual pela UDN. Mudou-se do sobradinho na rua da Independência para a casa do sogro, na rua da Mangueira. Em seguida vieram três mandatos como deputado federal, a primeira aposentadoria (como parlamentar) e a indicação para a Prefeitura de Salvador. O livro de posse, assinado em 13 de fevereiro de 1967, mostra que a evolução patrimonial de ACM andava tão bem quanto sua experiência na política. O documento de duas páginas informava a propriedade de três apartamentos e uma residência de veraneio, entre outros imóveis. Somavam-se a isso ações ou cotas patrimoniais de sete empresas privadas. E mais duas mil ações do Banco Econômico. Tudo isso adquirido antes dos 39 anos, por um homem que vivia da política.

Segunda – Entronado na principal cadeira da prefeitura, ACM experimentou outra inusitada arrancada. Ao desapropriar centenas de propriedades ao longo das rodovias que chegam à capital baiana, negociou 25 milhões de metros quadrados, ou 10% do território do município. Acabou acusado por Antonino Casais, ex-colega do Campo da Pólvora, de manter um conluio com os donos de terras, que compravam barato lotes passíveis de desapropriação. Nada ficou comprovado. Seus inimigos dizem que a ditadura militar abafou as acusações. As provas, porém, acabariam queimadas em vários incêndios que destruíram documentos oficiais em Salvador depois da gestão de ACM. O Arquivo Público Municipal, que guardava os registros de terras da capital, queimou no final dos anos 60 e no início dos anos 70. Também foi incendiado o prédio dos Tribunais de Contas do Município e do Estado. Por último, o edifício do Ministério Público Estadual ardeu em chamas. Coincidên-cias que intrigam.

Terceira – A experiência como prefeito e governador instigou ACM a se aventurar pelo mundo empresarial. Em 1975, fundou a Santa Helena S/A, uma imobiliária que não deu muito dinheiro, mas ajudou a empregar gente importante como Luiz Fernando Larangeira, o Lula, um dos melhores amigos de Luís Eduardo Magalhães (falecido em 1998), e primo de Carlos Larangeira, o executivo da empreiteira OAS atualmente destacado para cuidar dos interesses do senador. Depois vieram o jornal Correio da Bahia, em 1978, e a concessão da Rede Globo, nos anos 80, que lhe garantiram a liderança de audiência no Estado e a maior fatia das verbas publicitá-rias oficiais da Bahia. Para buscar esse dinheiro, estão destacadas empresas de confiança como a Propeg, que detém todas as contas do governo baiano, ou R$ 38 milhões anuais. Outra, a MDA, levou R$ 3,7 milhões em 1998. “Mas isso não fica comigo, não”, esquiva-se Antônio Cláudio de Souza, dono da MDA. “A TV Bahia (de ACM) leva a maior parte desse dinheiro.”

O império carlista, hoje, é comandado por seu filho Antônio Carlos Magalhães Júnior, suplente do senador e responsável por todos os negócios da família, e por César de Araújo Mata Pires, casado com Tereza (filha de ACM). Há 20 anos, o genro, sócio da então pequena empreiteira OAS, ingressou no clã como um jovem promissor. E assim foi. Sua declaração de Imposto de Renda mostra isso. A partir de 1979, quando Mata Pires já estava casado com Tereza e lhe havia dado o primeiro filho, seu patrimônio experimentou um crescimento explosivo. Naquele ano compraria três fazendas e logo depois mais cinco. Em 1982, vieram outros três apartamentos, um deles com financiamento do Econômico. Tudo em meio a negócios de mão dupla. Naquele ano, a OAS vendeu a ACM o apartamento dúplex 1.402 no edifício Santa Cláudia, bairro do Canela. Pelo imóvel, de 247 metros quadrados, te-riam sido pagos Cr$ 2,7 milhões, segundo registro no 1º Ofício de Imóveis de Salvador. Dados do Banco Central indicam que esse valor equivaleria a apenas US$ 4,7 mil na época.

Favores – Atualmente, o genro também é sócio na Bahia Par, a holding que administra o complexo empresarial de ACM. E a garantia de alguns favores pessoais, como o uso da casa de 750 metros quadrados na Ilha de Itaparica e dos jatinhos da OAS, há anos servindo ACM e sua família. O senador não gosta de falar nesse assunto, mas as notas taquigráficas da Assembléia Legislativa da Bahia informam que, na sessão de 29 de abril de 1992, o então deputado estadual Antônio Imbassahy (PFL), hoje prefeito de Salvador, deu as seguintes declarações, da tribuna: “Quero afirmar que o governador Antônio Carlos voou em aviões da Empresa Baiana de Táxi Aéreo, da Centauro Táxi Aéreo e nos aviões do Grupo Aratu. Voou sem pagar. Cortesia. Também usou jatinhos da Odebrecht e da OAS. E acrescente-se ainda o avião de Ângelo Calmon de Sá, no qual ele também voa.” A prática, pelo jeito, era coisa muito normal.

Agora, aos 71 anos, ACM gasta muito pouco de seu tempo para administrar o patrimônio que tem e pouca disposição demonstra para usufruir dele, abatido com a morte do filho. Foi um grande feito para quem começou num sobradinho da rua da Independência e hoje vive numa luxuosa cobertura no edifício Stella Mares, na rua da Graça, 383. Em nome do senador também há outros seis apartamentos e três lotes, coisa até modesta em comparação com o que construiu em nome da família. Resultado de uma saga tão bem-sucedida que o senador, com ou sem razão, acabou virando paladino do combate à pobreza no País.