Guy Philippe, líder dos rebeldesque tomaram de assalto o Haiti nas últimas semanas, gosta de se comparar ao imperador Napoleão Bonaparte. As semelhanças: o comando de vastos exércitos quando jovens e a baixa estatura física. De resto, as similitudes entre o primeiro e o segundo são, digamos, como as da França com sua
ex-colônia no Caribe. De um lado, a nação-berço do Iluminismo e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; de outro, um agrupamento anárquico de gente vivendo num mesmo território arrasado. Philippe se autodenominou “general”, mas nunca passou de tenente. Sua especialidade, até juntar ex-militares e bandidos em esquadrões da morte fortemente armados, era o tráfico de drogas e armas. Ao que se sabe, a única promessa que cumpriu foi a de entrar na capital Port-au-Prince no domingo 29, exatamente no dia de seu 36º aniversário. Chegou depois da renúncia do presidente, Jean-Bertrand Aristide, 50 anos, que foi levado às pressas para a República Centro-Africana.

Materializou-se, desse modo, o 30º golpe de Estado nos 200 anos de história do país, que foi o primeiro a abolir a escravatura nas Américas e é hoje o mais pobre do hemisfério. Quanto ao compromisso assumido por Philippe de não tentar sentar no trono vago, na condição de ditador, este só será honrado se as forças de paz – a serem enviadas por vários países, inclusive o Brasil – conseguirem impor uma ordem social e constitucional numa terra que jamais conheceu tais premissas. Naquele mesmo domingo em que Guy Philippe fez sua entrada triunfal em Port-au-Prince, 150 fuzileiros navais americanos já estavam fincados em pontos estratégicos. São a vanguarda de uma tropa de mil homens do 3º Batalhão de Infantaria do Marine Corps, que os Estados Unidos pretendem despachar para o local. Os franceses, que negociaram com vigor a renúncia de Aristide, já tinham 50 soldados de suas tropas de elite no território e prometiam mais 450 homens. O Brasil enviou um contingente de 20 fuzileiros navais para proteger a embaixada do País na capital, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu reforços. Países como
a Argentina, o Chile e vizinhos do Caribe também estão dispostos engrossar essa legião estrangeira.

Somente com esse aparato militar o presidente da Suprema Corte, Boniface Alexandre, que assumiu como presidente interino, conseguirá organizar eleições diretas, com a ajuda da Organização das Nações Unidas (ONU). O único presidente eleito da história do país é aquele que está agora na República Centro-Africana e que, em sua tumultuada carreira, foi deposto duas vezes. A primeira queda desse ex-padre tornado político populista deu-se em 1991, quando uma junta militar o pôs para correr. Foi preciso que os Estados Unidos, confrontados com multidões de exilados haitianos desaguando na costa da Flórida, enviassem a 10ª Divisão de Montanhas e mais um contingente de marines, para que a junta militar entregasse a rapadura em 1994. Aristide voltou em triunfo e, tendo como guarda-costas as tropas americanas, desmobilizou o famigerado Exército nacional. Ficou apenas com o aparato de polícia, treinado pelos ianques e leal ao governo civil. “O problema é que as tropas haitianas perderam o emprego, mas foram para casa levando o armamento que tinham. Tentamos desarmá-los, mas eles esconderam muito arsenal. E o presidente Aristide não se mostrou interessado no trabalho de limpeza. Dizia que seu Exército era o povo, que o mantinha no poder”, disse a ISTOÉ o atual comissário de polícia de Nova York, Ray Kelly, indicado pelo governo do ex-presidente Bill Clinton para treinar a força policial nativa.

O que Aristide não mencionou a Kelly é que ele mesmo estava montando sua guarda pretoriana, com paramilitares brutais chamados chimères (quimeras, nome de diabos do vodu, a religião nacional). Somente nos últimos 30 dias de conflito, mais de 100 pessoas foram mortas, boa parte delas executada pelos chimères. A mutação de Aristide, de padre populista a chefe de governo imperial, veio depois de sua reeleição, e
foi preciso mudar as leis do país para que o segundo mandato pudesse ocorrer. A concentração de poderes do Executivo desagradou ao Parlamento e começou atiçar a oposição. Nas eleições legislativas,
houve fraude comprovada por observadores internacionais, mas o presidente agiu como os ditadores que o antecederam e simplesmente empossou quem lhe interessava.

“A impressão que se teve quando ele esteve exilado em Washington é que Aristide era maluco. Tinha confusões de aparência com a realidade e era messiânico. Além disso, mentia com convicção psicótica”, disse George Stephanopoulos, ex-conselheiro político de Clinton e atual professor da Universidade de Columbia. Stephanopoulos não é psiquiatra, mas seu diagnóstico parece estar correto. Logo ao chegar à República Centro-Africana, Aristide declarou à imprensa que havia sido sequestrado por agentes brancos americanos e que sua saída tinha sido um golpe de Estado. O secretário de Estado americano, Colin Powell, negou com veemência essa versão. A CIA, sabe-se, seria bem capaz de manobra desse quilate, mas nesse caso as evidências apontam mesmo para o miolo mole de Aristide.

Jean-Bertrand Aristide seguiu uma longa linha de figuras populares que viraram autoritárias ao empalmar o poder. Começando há 200 anos com Toussaint L’Ouverture, o líder da rebelião de escravos haitianos que lutaram pela independência. O pai da pátria virou um demônio no poder. Seus sucessores também reinaram com mão-de-ferro. O mais famoso desta plêiade foi François Duvalier, “eleito” em 1957 com o apoio do Exército. Em 1964, ele declarou-se presidente vitalício e cumpriu à risca esse decreto, só saindo do poder depois de morto, em 1971. Duvalier era conhecido como Papa Doc (“papai doutor”, em creole), porque fizera fama como médico popular no interior. Aristide parece que não aprendeu com a história e a repetiu como farsa. Outro que não sabe nada de história é Guy Philippe, pois Napoleão Bonaparte se deu muito mal no Haiti. Suas tropas voltaram para a França doentes e com o rabo entre as pernas.

 

Brasil pode comandar força de paz

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmou a participação do Brasil na Força de Paz do Haiti, durante conversa telefônica com o presidente da França, Jacques Chirac, na quinta-feira 4. Foi o presidente francês quem tomou a iniciativa de mencionar a crise do Haiti. “Creio que é fundamental a participação do Brasil na Força Multilateral da ONU no Haiti”, disse Chirac. Lula respondeu que o governo brasileiro poderá enviar ao país caribenho um contingente de 1.100 militares, composto de pára-quedistas e tropas especiais, incorporando-se à Força de Paz, cuja criação foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU no domingo 29.

Lula disse a Chirac que o Brasil se sentia honrado com a proposta do presidente francês para que um oficial brasileiro assuma o comando da Força Multilateral da ONU. O mandatário francês demonstrou estar ciente do reconhecimento pela ONU do desempenho dos militares brasileiros nas Forças de Paz de Angola, Moçambique, Bósnia e Timor Leste – onde ainda estão 64 militares brasileiros. A ONU mencionou, especialmente, “a habilidade dos soldados no trato com a população de países em crises agudas”.

A confirmação do efetivo brasileiro, que poderá estar no Haiti em 90 dias, depende de uma avaliação das condições do País. Segundo relatório da ONU, “não houve caso de rejeição de militares brasileiros nas tropas de paz”. Para o Exército, “trata-se de uma experiência profissional de alto nível, através da convivência com oficiais de diversos países”.

Hélio Contreiras