Cientista diz que boa parte dos alimentos é criação humanae que a biotecnologia pode trazer independência na agriculturae na medicina

A professora Leila Macedo
Oda, 51 anos, é uma oradora
nata. Indispensável em suas
aulas na Fundação Osvaldo
Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro,
e nas universidades federais de Santa Catarina e Pernambuco,
essa habilidade lhe rendeu a incumbência de explicar aos políticos brasileiros a importância
de se definir leis que amparem o progresso numa das áreas mais promissoras da ciência, a biotecnologia. Presidente da Associação Nacional de Biossegurança (ANBio), a química carioca defende a engenharia genética com fervor. Tanto que guarda uma foto dos dois netos devorando batatas Pringle’s, assumidamente transgênicas.
Desde o início de fevereiro, ela circula por Brasília na tentativa de mostrar aos senadores o prejuízo que o atual Projeto de Lei de Biossegurança pode trazer ao Brasil. Principalmente por dificultar a comercialização dos alimentos geneticamente modificados e proibir as pesquisas com células-tronco embrionárias, a principal esperança no tratamento de doenças hereditárias e males como o de Parkinson e Alzheimer. Duas frentes de pesquisa em que o Brasil navega com propriedade. Leila defende uma discussão ampla sobre biossegurança,
a ciência que trata dos aspectos de segurança que envolvem a
pesquisa com seres vivos. “Não estamos acostumados a fazer lobby,
mas até que nos saímos bem”, diz, entre risos.

ISTOÉ – O País assiste à mobilização dos cientistas para que os senadores brasileiros alterem o atual Projeto de Lei de Biossegurança. Por que tanto empenho?
Leila Macedo Oda

Essa lei prioriza apenas uma tecnologia, que é a dos transgênicos. A biossegurança é uma ciência muito mais ampla. Ela engloba pesquisas sobre tudo o que diz respeito à segurança biológica. Como o manuseio correto de microorganismos em laboratórios, a prevenção do bioterrorismo e os riscos de contaminação.

ISTOÉ – Qual é o maior dilema nacional nessa área?
Leila Macedo Oda

A falta de visão sobre a importância da biossegurança nas pesquisas. Muitas instituições, várias delas públicas, fazem adaptações que facilitam as contaminações. A consciência sobre biossegurança ainda engatinha por aqui. Visitamos um laboratório onde ser mordido por cobaias era comum. Os pesquisadores nem consideravam isso um risco. Com a falta de verba das instituições, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do País, a primeira coisa a ser cortada é a biossegurança, o que é um grande erro.

ISTOÉ – No Brasil há preocupação com o bioterrorismo?
Leila Macedo Oda

Depois dos ataques de 11 de setembro, o Ministério da Saúde solicitou informações sobre quais microorganismos são manipulados nos laboratórios brasileiros, para saber onde havia vírus ou bactérias que pudessem servir como armas biológicas. Não temos esse cadastro no Brasil. O levantamento que temos é apenas parcial, cobre os laboratórios públicos. Ficam de fora todos os laboratórios particulares e os centros de pesquisa das universidades.

ISTOÉ – Somos vulneráveis a uma contaminação biológica acidental?
Leila Macedo Oda

É possível, e seria difícil descobrir de onde partiu o ataque. Não sabemos se algum laboratório tem bacilos do antraz ou bactérias multirresistentes. Fala-se muito dos transgênicos, como se eles fossem o grande mal do mundo. Ninguém cita problemas que o Brasil já viveu e pode voltar a viver. Como o vírus sabiá, que há dez anos surgiu em São Paulo como um novo surto, e ninguém sabia que doença era aquela. O Instituto Adolfo Lutz tentou isolar o vírus e profissionais do laboratório acabaram contaminados. Como aqui não existe nenhum laboratório de segurança máxima, de nível quatro, as amostras foram enviadas aos Estados Unidos para ser analisadas. Essa é outra limitação que temos.

ISTOÉ – A gripe do frango está assustando a Ásia. A doença pode ser um desses acidentes biológicos?
Leila Macedo Oda

Os vírus sofrem mutações com muita facilidade, seja por interferência do ambiente, seja por suas próprias características. A maioria deles está latente na natureza esperando a hora certa de aparecer. No caso da Sars, da gripe do frango e até mesmo da gripe espanhola, o vírus infectou o ser humano depois de se alojar em um animal. É dessa forma que ele adquire a proteína necessária para
infectar o ser humano. É como se o vírus tivesse uma chave na qual
falta uma pequena peça. Ele pega na célula animal aquilo que precisa para entrar na célula humana.

ISTOÉ – Existe o risco de a gripe do frango chegar ao Brasil?
Leila Macedo Oda

Pelas características mutantes, sim. Risco sempre existe, mas
por enquanto há muita especulação. É preciso um acompanhamento rigoroso dos novos casos e cabe aos países criar mecanismos de contenção, como o controle da vigilância agrícola, dos portos, dos aeroportos e das fronteiras.

ISTOÉ – Alguns cientistas afirmam que um dia a humanidade será dizimada pela gripe comum. Qual a sua opinião?
Leila Macedo Oda

Não gostamos dessas teses fatalistas. Não trabalhamos em cima de hipóteses. Toda doença é preocupante, mas esse cenário especulativo não faz parte da análise científica.

ISTOÉ – Com tantas falhas em segurança, o que garante que o Brasil possa criar pesquisas de ponta em biotecnologia?
Leila Macedo Oda

O brasileiro é criativo e tira leite de pedra. Com os recursos dos americanos e europeus, seríamos os primeiros do mundo. Precisamos reconhecer que a biotecnolgia pode trazer independência para o País em vários setores, como a agricultura e a medicina. As pesquisas com células-tronco embrionárias estão avançadíssimas. Não queremos num primeiro momento criar embriões, como fizeram os sul-coreanos. Queremos usar os embriões descartados pelas clínicas de fertilização. Só a clonagem terapêutica poderia salvar mais de cinco milhões de brasileiros, entre crianças e adolescentes com doenças genéticas e sem esperança de chegar à idade adulta.

ISTOÉ – O que falta para que o Brasil comece a colher os frutos da suas pesquisas?
Leila Macedo Oda

Um planejamento estratégico, no qual a biossegurança seja encarada como uma ciência. A revista inglesa The Economist disse, há pouco tempo, que o Brasil passou a ser reconhecido, além do futebol e do Carnaval, também pela genômica. Há quatro anos, a revista científica Nature publicou na capa o trabalho brasileiro do sequenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, uma praga que causa a doença do amarelinho nos laranjais. Foi uma dupla vitória, mas de que adianta esse avanço se não podemos cultivar laranjas com modificações genéticas? Não resolve investir em pesquisa se os benefícios não chegam à população. Seja na agricultura seja na medicina, a ciência tem que dar um retorno social.

ISTOÉ – Alguns desses benefícios não ficariam restritos apenas à parcela mais abastada da população?
Leila Macedo Oda

O governo deveria fazer um amplo planejamento estratégico que aliasse a ciência aos programas sociais. É necessário saber quais são as doenças prioritárias que afetam a saúde dos brasileiros. Quando forem disponibilizadas as pesquisas com células-tronco embrionárias, por exemplo, o sistema de saúde pública precisa estar preparado para colocar em prática as novas alternativas de tratamento imediatamente.

ISTOÉ – E qual seria o retorno social dos transgênicos?
Leila Macedo Oda

A Fiocruz desenvolveu um mosquito transgênico que funciona como uma vacina contra a dengue e a malária. Ele seria liberado para imunizar a população. Para facilitar sua identificação, ele brilha quando pica uma pessoa. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) também recebeu um prêmio social pelo feijão resistente ao vírus do mosaico, que acaba com as lavouras. Tem ainda um feijão resistente à seca que poderia ser plantado em regiões áridas, pois resiste meses sem água. Temos vários vegetais transgênicos prontos para comercializar, só que é proibido.

ISTOÉ – O principal argumento em favor dos transgênicos então é econômico?
Leila Macedo Oda

Os agricultores brasileiros contrabandeiam soja da Argentina. Isso não gera divisas, traz pragas desconhecidas, e não dá a produtividade ideal, porque as sementes não são feitas para o solo brasileiro. Além disso, se consolida o monopólio da Monsanto. Ninguém comenta que a Embrapa tem 11 tipos de soja transgênica para as diferentes condições de clima e de solo do Brasil. O pior mesmo é o caso da banana resistente à sigatoka negra, uma praga que está acabando com as plantações e colocando a fruta em risco de extinção. Essa variedade transgênica está sendo negociada pela Embrapa para ser cultivada em Honduras. Só resta uma pergunta: faz sentido investir em tecnologia no Brasil?

ISTOÉ – Por que alguns médicos contestam a eficácia dos alimentos com propriedades medicinais?
Leila Macedo Oda

Não dá para generalizar. Estudos realizados com frutas e vegetais enriquecidos com determinados aminoácidos ou com vitaminas já são uma realidade e tiveram sua eficência comprovada em casos de anemia. É importante ressaltar que todos os alimentos, sejam naturais, orgânicos ou transgênicos, precisam passar por uma avaliação de segurança rigorosa. Existem vários casos de patologias causadas por bactérias encontradas em alimentos orgânicos, devido ao uso de grande quantidade de adubo.

ISTOÉ – Como garantir se um alimento é realmente seguro?
Leila Macedo Oda

A maioria dos alimentos que consumimos não existia na natureza. Eles foram transformados com técnicas de irradiação, de mutação por métodos químicos ou cruzamento de espécies. Muita gente não sabe que frutas como a nectarina, o mamão papaia e o kiwi são mutantes. Algumas pessoas são alérgicas ao kiwi. Se ele fosse transgênico, os testes de segurança não permitiriam a sua liberação para consumo.

ISTOÉ – Hoje é possível escolher o sexo e a cor dos olhos de um bebê. Isso não abre precedentes para que se empregue a ciência para fins duvidosos, como a clonagem humana?
Leila Macedo Oda

O cientista é livre para pensar e pesquisar o que quiser dentro
de seus laboratórios. Desde que não afronte a ética. O bebê de proveta veio para ajudar casais que não podiam ter filhos. O resto é perfumaria.
E a ciência tem coisas mais importantes para fazer do que se preocupar com isso. O mesmo se aplica à clonagem. Clonar seres humanos é inadmissível, mas a clonagem terapêutica representa um impacto importante para a saúde pública. Pode salvar milhões de vidas. Por
isso é preciso criar mecanismos legais que estabeleçam os objetivos desses estudos.

ISTOÉ – Como a sra. avalia a crítica dos ecologistas, de que os cientistas desconsideram o princípio da precaução?
Leila Macedo Oda

Antes de atravessar uma rua devemos parar, olhar para os dois lados e atravessar, cuidadosamente, na faixa de pedestres. Isso é princípio de precaução. O que eles propõem é: não atravesse. A proposta dos ambientalistas é muito clara, é dizer não aos transgênicos. A nossa é separar o joio do trigo. Ninguém é louco de liberar produtos que não sejam seguros. Temos filhos e netos.

ISTOÉ – O que os cientistas esperam conseguir com essa mobilização política, em Brasília?
Leila Macedo Oda

Queremos contribuir para deixar o processo decisório dessas novas pesquisas o mais transparente e menos burocrático possível. Quanto menos entraves, melhor para nós e para o País. Precisamos reconhecer que o modelo agrícola se esgotou no mundo. Temos duas opções: ou continuamos com os desmatamentos ou aprimoramos os métodos agrícolas. A transgenia veio para solucionar esse problema, sem aumentar a área de plantio e com menos uso de agrotóxicos. Se não houver investimento em biotecnologia, o Brasil vai perder o trem da história. E as consequências serão piores do que se viu nos oito anos de reserva de mercado para os produtos de informática. Não se pode dizer que exista uma indústria nacional de computadores.