As pedras estão lançadas. E o governo Lula garante que não está blefando: a Medida Provisória 168, que virou as mesas de bingo de todo o País, só muda para piorar a situação de quem defende o jogo. “A MP é um texto que pode ser modificado, melhorado. Se a gente encontrar alguma falha, que ainda não vi, deve-se modificar, mas dentro do espírito, que é proibir os jogos”, aposta o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, indiferente à multidão de 20 mil pessoas que se concentrava no gramado do Congresso Nacional, na quarta-feira 3, na maior manifestação popular em Brasília contra o governo Lula. Eram empregados de alguns dos 1.100 bingos do País, arrebanhados pela Associação Brasileira de Bingos (Abrabin) e mobilizados pela Força Sindical. Era o último e mais visível efeito do caso Waldomiro Diniz, o ex-chefe da Assessoria Parlamentar do ministro José Dirceu flagrado em vídeo pedindo propina a um chefão do jogo do bicho e defenestrado do governo há duas semanas.

Embolado na roleta da corrupção, o Planalto engrossou a voz e ficou surdo ao clamor das ruas, que ele regia afinado quando era oposição.
“O governo está intransigente”, reclamava o líder da Força Sindical,
Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, ao sair de mãos abanando do
encontro com os ministros da Justiça e do Trabalho em que pretendia rever a MP que, segundo o sindicalista, desemprega “numa canetada”
120 mil trabalhadores com carteira assinada. Por enquanto, os governistas não estão sensibilizados: “Se o Parlamento entender que
há brechas, pode corrigir a Medida Provisória, desde que seja para
tornar a MP mais rigorosa”, diz o deputado Miro Teixeira (sem
partido-RJ), líder do governo na Câmara.

Linha dura – Na manhã de quinta-feira, uma comissão de quatro deputados do PT, formada para estudar a MP 168, foi discutir o
problema no olho do furacão – o Departamento Jurídico da Casa Civil,
no quarto andar do Planalto, numa sala próxima de onde reinava, até meados de fevereiro, Waldomiro Diniz. Um dos membros da comissão
é o ex-procurador e deputado Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ), ferrenho adversário do jogo e autor do projeto de lei 1983 que simplesmente
proíbe bingos, caça-níqueis e quaisquer jogos de azar. Outro membro
é o professor de história e geografia Gilmar Machado (PT-MG), prova
viva da mão de ferro do Planalto no pano verde do jogo. Antes
partidário da liberação do jogo no país, Machado agora forma fileira
no pelotão petista que vai defender a MP antijogo: “Queremos
aprofundar as proibições. Os jogos online, que proliferam nos Estados,
e os bingos eventuais com pretextos beneficentes vão fechar. Até as ‘raspadinhas’ estaduais correm o risco de serem proibidas”, avisa o recém-convertido Machado.

Inaugurado oficialmente no Brasil em 1993, nos braços da Lei Zico, o
jogo de bingo andou cada vez mais na corda bamba. Antes era
atribuição dos Estados, a quem cabia dar autorização para o funcionamento das casas de jogos. Cinco anos depois, a Lei Pelé
passou a bola para a Caixa Econômica Federal, a quem foi entregue a concessão de bingos. Em 2001, uma lei do senador Maguito Vilela
(PMDB-GO) revogou a legislação, deixando os salões de bingo nas
brumas da incerteza legal. Ficaram proibidas novas concessões pela Caixa, mas os bingos existentes ganharam prazo para funcionar até
o fim das concessões. Quando elas acabaram, as casas continuaram abertas, algumas por força de liminares, outras imersas no tapete fofo
da ilegalidade. E o bingo, um negócio no qual dois milhões de jogadores movimentam cerca de R$ 5 bilhões anuais, que sustentam 120 mil empregos diretos e outros 200 mil indiretos, virou um negócio semi-clandestino. Até aparecer Waldomiro para confundir ainda mais a história. A cara feia do Planalto para os bingos deve passar, depois, pelo filtro dos tapetes do Congresso, onde os ouvidos são sempre sensíveis ao coro das ruas. Na Esplanada, ministros influentes do Governo acham que o Planalto ruge feroz agora, no calor do caso Waldomiro, para amenizar depois suas resistências. Políticos mais experientes, do governo e da oposição, imaginam uma regulamentação final dos jogos, sob controle da Caixa Econômica Federal, que imponha moralidade ao setor sem deixar de forrar os cofres públicos com o dinheiro que agora circula livre.

A confusão sobre o assunto é grande na Câmara dos Deputados, onde existem 16 projetos de lei versando sobre jogo, bingo, caça-níqueis e jogos de azar. Uns liberando, outros regulando, alguns simplesmente proibindo. Outros 16 projetos caíram no buraco sem fundo do arquivo. Sete propostas foram anexadas ao Projeto 1.037, de 1999, do ex-deputado Wagner Salustia-no (PPB-SP), proibindo que o jogo de bingo fosse explorado por entidades de fins beneficentes.

O projeto 66 de 1995, do ex-deputado Cunha Bueno (PPB-SP), permitia a realização de bingos beneficentes pelas Santas Casas de Misericórdia. Apesar deste benemérito propósito, até hoje a proposta dorme na gaveta da mesa da Câmara, depois de passar pelas Comissões de Constituição e Justiça e de Seguridade Social e Família, aguardando acordo de líderes para ser votado em plenário. Tanta gente sobrevoa os salões de jogos que até Onaireves Moura (PSD-PR), cartola do futebol paranaense, membro ilustre da tropa de choque de Collor e cassado pelos colegas em 1993 depois de oferecer US$ 50 mil para arrebanhar adesões de deputados federais ao extinto PSD, ainda sobrevive nos arquivos da Câmara. O seu projeto 3223, de 1992, permite que clubes de futebol façam jogos e sorteios, sob o pretexto: “Criar condição de subsistência, para evitar a evasão de seus atletas para o Exterior”, justificava Onaireves, cuja proposta ainda aguarda despacho da mesa.

No Senado, sempre mais cauteloso, existiam apenas duas propostas sobre jogos, ambas apresentadas em dezembro de 2003 pelo mesmo senador – o tucano Leonel Pavan (SC). O projeto 501 legalizava a prática de jogos de azar em cassinos, e o 502 regulava a exploração de jogos de bingo. Estranhamente, em dois requerimentos sucessivos, num único dia, Pavan pediu a retirada de seus projetos no dia 16 de fevereiro passado, uma segunda-feira, o primeiro dia útil após a terrível sexta-feira 13 em que o país tomou conhecimento das estripulias de Waldomiro e seu sócio do bicho. O tucano, bom de bico, percebeu logo que aquela história ia dar zebra. Talvez essa seja a sina do Congresso e do governo em relação aos bingos: falta coragem para discutir o assunto com profundidade.

A aposta favorita

Quando passar a santa ira do Palácio do Planalto com os bingos, os deputados devem apostar suas fichas no projeto de um administrador de empresas para tentar regulamentar o jogo no Brasil. Em 39 artigos, o deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP) costura, com cuidado, um texto que ancora o bingo ao projeto Fome Zero. O Projeto de Lei 2.944 autoriza três modalidades de bingo, carreando recursos para um Fundo Social da Fome, Cultura e Desporto (FSFCD), uma sopa de letras a ser administrada pelos ministérios dos Esportes, da Cultura e da Segurança Alimentar e Combate à Fome. “A aplicação dos recursos beneficiará também os Estados, com 30% da arrecadação, e as Secretarias de Cultura estaduais com 10%”, esclarece o deputado, presidente nacional do PL, partido do vice-presidente da República, José Alencar.

O projeto de Costa Neto foi apresentado em plenário no dia 9 de fevereiro e publicado no Diário da Câmara dos Deputados, por coincidência, na mesma sexta-feira 13 em que Waldomiro Diniz se exibia ao País, em vídeo e som, traficando favores e subornos com
o bicheiro Carlinhos Cachoeira. O impacto do escândalo fez o governo reagir com a MP que proíbe os bingos, mas o Congresso sabe que,
com o tempo, alguma lei mais estável terá que ser negociada para estabelecer uma regra que torne os jogos imunes às traquinagens
de waldomiros e cachoeiras. Neste momento, o projeto de Costa
Neto parece ter as salvaguardas que o País, agora, exige. Ele pretende promover os esportes e, ao mesmo tempo, arrecadar recursos contra a fome. O Fundo Social a ser criado é que fará o credenciamento das empresas envolvidas com o bingo, depois de um rigoroso filtro dos sócios e diretores nos cartórios de protesto e em entidades cíveis, trabalhistas e criminais. Cada casa terá, no mínimo, duas mil máquinas de vídeo-bingo individuais, com o depósito prévio
de R$ 1 milhão, como “caução de outorga”, na conta do Tesouro Nacional, além de capital social mínimo de R$ 3 milhões – o que afastaria aventureiros do setor. Cada máquina pagará R$ 2,4 mil por um selo de funcionamento, com validade por 90 dias.

Costa Neto quer distância dos caça-níqueis. “O projeto veda a prática de jogos de azar ou instalação de máquinas de diversões eletrônicas, já que as casas de jogos de bingo são autênticos locais de recreação”, esclarece o deputado, que vê o jogo do bingo como uma atividade lúdica. “Pretendemos uma atividade de recreação sadia,
com o compromisso social de estímulo aos esportes em geral, assegurando trabalho a milhares de pessoas – calculados atualmente em 120 mil empregos diretos e 200 mil indiretos. Serão locais legítimos, segundo a legislação trabalhista, o que será também uma segurança para esses trabalhadores”, lembra Costa Neto. A proposta pode ser, também, um anteparo aos que imaginam transformar bingos numa cachoeira de crimes. “Com a regulamentação, vamos excluir aqueles que, utilizando-se de meios fraudulentos, em locais inadequados, oferecem clandestinamente jogos sem a devida autorização ou fiscalização das autoridades públicas”, lembra o deputado. Com
estas cautelas, a chance de que um Waldomiro se interesse pelo
bingo não deve chegar a 1%.

As principais salvaguardas e atrações do projeto 2944:
• Cada casa de bingo terá um diretor de jogos, um gerente de sala, um chefe de cadastro e um gerente de caixa.
• Casa de bingo só abre com autorização do Fundo Social da Fome, Cultura e Desportos.
• Os donos dos bingos precisam ter ficha limpa na polícia, nos cartórios e na Justiça.
• A cada três meses, cada máquina precisa ser vistoriada e liberada.
• O Fundo Social será gerido pelos ministérios dos Esportes, da Cultura e do Combate à Fome.
• Os Estados ganharão 30% da receita e as Secretarias de Cultura, 15%.
• Mensagens escritas e painéis eletrônicos vão alertar os jogadores sobre os efeitos negativos da prática do bingo sem moderação e além dos limites da recreação.

Luiz Cláudio Cunha

 

 

“O governo deveria recuar”

ISTOÉ – Bingo, hoje, não é uma questão mais política do que trabalhista?
Paulinho – O governo, para desviar o assunto do Waldomiro Diniz, resolveu fazer uma MP. Aí fechou os bingos para atingir o Carlinhos Cachoeira. No outro dia o Carlinhos dava risada porque ele não foi atingido. Uma loucura.

ISTOÉ – Dias depois a Polícia Federal foi lá e fechou as casas do bicheiro...
Paulinho – E no dia seguinte ele reabriu, com liminar da Justiça. Se fechar os jogos do Carlinhos, terá que fechar um punhado. Acho que até o Silvio Santos acaba entrando na história. E aí?

ISTOÉ – Bingo não é um biombo para o crime?
Paulinho – Biombo pode ser qualquer atividade. No Planalto, por exemplo, tinha um criminoso, no andar de cima do presidente. Todas as atividades que não têm regulamentação podem ser uma porta aberta para o crime.

ISTOÉ – Como evitar que uma diversão seja utilizada pelo crime organizado para lavar dinheiro?
Paulinho – Se o governo não consegue fiscalizar as 1.100 casas de jogos que existem no País, então estamos perdidos. Se regulamenta e fiscaliza, consegue imediatamente descobrir quem é bandido, quem não é. E bandido, bota na cadeia.

ISTOÉ – O governo pode recuar, depois de editar a MP que proíbe os bingos?
Paulinho – Esta é a virtude do governante: errei, vamos refazer. Burrice não é errar, é persistir no erro.

ISTOÉ – O jogo pode ser uma atividade sadia no País?
Paulinho – Muita coisa vicia, como o cigarro e a bebida. O jogo tem o mesmo índice da bebida: aproximadamente 2% das pessoas se viciam. Quem é viciado tem que ter tratamento.

ISTOÉ – O governo pode enfrentar a reação no Congresso contra o fechamento dos bingos?
Paulinho – O governo vai jogar duro, mas essa é a primeira vez que um presidente, numa canetada, demite mais de 100 mil num país sem emprego.

ISTOÉ – E como regulamentar o jogo?
Paulinho – A cartela do bingo poderia ser editada pela Casa da Moeda e distribuída pela CEF. Os caça-níqueis podem ser controlados por um chip. É só querer.

ISTOÉ – O sr. apóia a CPI dos Bingos?
Paulinho – Dizem que no bingo tem lavador de dinheiro e traficante. Só uma CPI pode investigar e trazer isso à tona.

Luiz Cláudio Cunha