Comparar a violência urbana carioca com a de áreas conflagradas em outros cantos do planeta, como Iraque ou Haiti, é um lugar comum que se repete toda vez que um conflito explode no asfalto. Na noite de quarta-feira 3, aconteceu de novo, com o mesmo enredo dramático. O palco foi uma das muitas fronteiras entre o morro e o asfalto na cidade: o Cantagalo, onde fica a favela Pavão-Pavãozinho, e as ruas vizinhas em Copacabana, o bairro mais conhecido do Rio de Janeiro. A partir das 19h30, e durante as quatro horas seguintes, o que se viu poderia ter como cenário Porto Príncipe ou Bagdá. Depois de um tiroteio na favela, moradores desceram o morro irados. Ruas interditadas, pessoas correndo, pneus em chamas, carros depredados, bombas de gás, tiros, quatro mortes – todas no morro. Um túnel que liga as ruas Barata Ribeiro e Raul Pompéia foi usado como trincheira por motoristas assustados. Nos prédios da Rua Sá Ferreira, moradores se agacharam dentro das próprias casas. O comércio fechou as portas. Moradores da favela disseram que a PM entrou atirando e que pelo menos um dos mortos, o faxineiro Alexandre Firmiano de Souza, 26 anos, era um trabalhador com carteira assinada. “Eles foram executados”, diz Alzira Amaral, da associação de moradores. A PM informa que tentou encerrar um tiroteio entre traficantes. Sem os ingredientes da intolerância étnica ou do conflito político, o Rio tem seu próprio dilema: como enfrentar traficantes fortemente armados que vivem e se escondem dentro de áreas que dominam e aterrorizam?

“Enquanto existir o tráfico de drogas alimentando a indústria da violência, teremos situações de conflito”, afirma o subsecretário estadual de Segurança, delegado federal Marcelo Itagiba. “Hoje você tem o pobre da classe média consumindo droga e a classe alta das áreas carentes, também. Os dois precisam financiar o seu vício e praticam roubos e assaltos e depois buscam abrigo nessas comunidades, tirando o sossego e a paz dos moradores de bem”, aponta. O governo do Rio diz que está combatendo o tráfico com dureza e cada ação, como as ocupações de favelas, apreensões de drogas e armas e aperto no sistema disciplinar dos presídios, produz uma reação violenta. Assim como aconteceu recentemente com a Rocinha, a polícia decidiu investigar a ação da polícia enquanto ocupava por tempo indeterminado o Pavão-Pavãozinho. Distúrbios de rua serão enquadrados como crime de associação para o tráfico, inafiançável. Depois da batalha de Copacabana, o governo do Estado também decidiu repensar o trabalho do Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais (GPAE), que atua dentro das favelas. “Queremos ver se há desvio de conduta policial e desvio de finalidade do grupamento”, disse o secretário Anthony Garotinho.

Organizações de direitos humanos têm apontado a polícia do Rio, particularmente a militar, como muito violenta, enquanto moradores de favelas têm denunciado, cada vez mais, abusos policiais, como no caso de três jovens executados na Rocinha, na zona sul, e de um homem torturado barbaramente no Morro da Coroa, em Santa Tereza, no centro. No primeiro caso, o secretário Garotinho proibiu o Batalhão de Operações Especiais da PM (Bope) de entrar na Rocinha por 60 dias. No outro, mandou prender 11 policiais militares acusados de tortura. Um documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos, recém-divulgado, diz que, paradoxalmente, a polícia carioca torna a cidade ainda mais perigosa. De janeiro a setembro de 2003, a polícia fluminense matou 917 pessoas, uma média de 102 por mês, segundo o documento, o que significou um aumento de 36% em relação a 2002.

A semana terminou com outros dois casos emblemáticos da violência carioca. Na noite de quarta 3, a contadora Elisabete Duarte Gama da Silva, 40 anos, funcionária da Petrobras, foi executada depois de um sequestro relâmpago, um dos crimes que mais crescem na cidade. No dia seguinte, o subdiretor do presídio de Bangu 1, Wagner Vasconcelos da Rocha, foi morto a tiros quando ia para o trabalho. Ele já tinha sofrido ameaças, havia pedido proteção policial e, por insistência da família, pensava em largar a função. Tinha voltado de férias um dia antes de morrer. Foi a quarta morte de funcionários do alto escalão dos presídios em pouco mais de três anos.