Nesta semana, os integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, presidida pelo vereador Mário Del Rei (PMDB), começam a
ouvir os envolvidos num processo que está sendo chamado de “nova operação gafanhoto”, numa alusão ao esquema fraudulento que em Roraima desviava dinheiro público para funcionários fantasmas e culminou com a
} prisão do ex-governador Neudo Campos,
no ano passado. Segundo Del Rei, a “praga” ganhou visibilidade no Rio de Janeiro a partir
da prisão, no dia 25 de setembro do ano passado, da psicóloga Marta Maria Menezes
de Oliveira Alves, presidente da cooperativa Labor Rio. Munida de documento de identidade falso, ela supostamente sacaria R$ 650 mil com 400 cartões do banco (dos cooperativados) e respectivas senhas em
seu poder. Foi detida dentro de uma agência do Unibanco no Shopping
da Gávea, zona sul do Rio. A partir daí, o que poderia ser apenas um
caso de falsidade ideológica passou a apontar para algo bem mais complexo. Em seu depoimento, Marta Maria fala de um esquema obscuro que envolve o secretário de Esportes e Lazer da Prefeitura do Rio, Ruy Cezar, e alude a tráfico de influência junto ao filho do prefeito César Maia, o deputado federal Rodrigo Maia (PFL), na contratação de prestadores de serviços por federações esportivas, que, por sua vez, repassavam projetos milionários para cooperativas não idôneas.

“É muito parecido com o esquema gafanhoto na forma de burlar as leis e desviar dinheiro público. E há também funcionários fantasmas, como relatou o Tribunal de Contas do Município, que apura irregularidades na Secretaria desde abril do ano passado”, explica Del Rei. O Secretário Ruy Cezar negou as acusações. Ele disse a ISTOÉ que “a Secretaria de Esportes e Lazer trabalha conveniada apenas com federações e confederações” e que não conhece a Labor Rio, já que cooperativas não têm contratos diretos com sua Secretaria. Mas, ao confirmar que as federações têm liberdade para recontratar prestadores de serviços e que somente um levantamento em sua Pasta poderá dizer quantos e quais são os terceirizados, ele deixa brecha para dúvidas. “Estamos fazendo checagem”, disse Ruy Cezar, garantindo que “há comprovação de todos os serviços prestados, os projetos existem e funcionam”.

No foco das atenções – já que é um dos pilares da organização dos Jogos Pan-Americanos no Rio, que acontecerão em 2007 – Ruy Cezar também é alvo de investigação do Tribunal de Contas do Município, cujo Relatório de Inspeção Ordinária constata contradições em contratos da Secretaria. O item 6.4 do documento detecta “um aparente conflito de horários, pois um professor de educação física ministra aula de atletismo e vôlei no mesmo horário e dia, em locais relativamente distantes, o que inviabiliza o acompanhamento simultâneo das atividades”. Ou seja, fantasma em ação. O episódio se refere a funcionários do Núcleo Esportivo Parque Royal, na Ilha do Governador, bairro da zona norte carioca, em contrato da Secretaria de Esportes e Lazer com a Confederação Brasileira de Triathlon. O mesmo documento aponta profissionais que não atuam em áreas e funções para as quais foram contratados e lista irregularidades em notas fiscais de cooperativas prestadoras de serviços, como a Aliança e a Cooperativa Múltipla de Serviços (Coomps).

Todo o quadro será investigado pela CPI da Câmara Municipal, que começa a ouvir os envolvidos na terça-feira 9. Uma das primeiras a depor será a própria Marta Maria – atualmente em liberdade graças a um habeas corpus conseguido em janeiro – que terá de esclarecer as relações entre sua empresa e a Prefeitura do Rio, além de justificar a rápida prosperidade da cooperativa Labor Rio. Segundo o chefe de Polícia Civil do Rio, delegado Álvaro Lins, há fatos surpreendentes no histórico da empresa. A Labor Rio foi criada em maio de 2002 com apenas 20 cooperados e, pouco mais de um ano depois, já estava com 620. “Na ata de constituição dos diretores, existem três nomes que chamam a atenção: Dermeval Botelho, que possui três CPFs e 13 anotações criminais na ficha – como estelionato, corrupção, roubo (vários), lesão corporal, uso de documento falso – outros dois sócios cujos CPFs não existem na Receita Federal: Monica Pereira Queiroz Maia e Pedro Carlos Rangel da Rocha.” Sem falar de Marta Maria, flagrada com carteira de identidade falsa e CPF “quente”, mas tirado a partir da carteira ilegal; portanto, também falso.

Dúvidas – O inquérito foi transferido da 15ª Delegacia Policial, na Gávea, para a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco). “Há muito o que se apurar, mas com o que já foi investigado até agora cabe, no mínimo, perguntar: como o poder público repassa mensalmente R$ 650 mil a federações que contratam uma cooperativa administrada por estelionatários?”, questiona o delegado Álvaro Lins. Um nome considerado peça-chave é do advogado Antonio Luiz Fleury de Abreu, que integrava o conselho de administração da cooperativa Labor Rio e passou a presidente após a prisão de Marta Maria. Ela o aponta como “responsável pelas negociações entre a cooperativa Labor Rio e a Secretaria de Esportes, na pessoa do secretário Ruy Cezar”. Sua versão, descrita no depoimento, diz que foi “procurada pelo sr. Jorge Dias juntamente com o sr. Antonio Fleury com uma proposta de trabalho na qual eles utilizariam a cooperativa com a finalidade de dar continuidade a um projeto de prestação de serviços nos centros comunitários do programa Favela Bairro”. A empresária reafirma que “Fleury teria acesso ao secretário de Esportes e Lazer, Ruy Cezar, através de sua amizade no meio político com seu sócio Bruno Paes, que vem a ser parente de Eduardo Paes (deputado federal) e amigo íntimo de Rodrigo Maia”.

Ainda segundo depoimento de Marta Maria, sua empresa substituiu a cooperativa Aliança, até então administrada por Antonio Fleury, na prestação de serviços à Secretaria de Esportes e Lazer. A migração teria sido feita por causa de irregularidades ocorridas na Aliança. Segundo Marta Maria, a verba mensal depositada na conta da Labor Rio era de mais de R$ 300 mil. Desse montante, a cooperativa ficava com algo entre 12% e 25% a título de taxa de administração. “Oficialmente, Antonio Fleury recebia a importância mensal aproximada de R$ 23 mil.” Ela disse que geria a empresa, mas que as negociações entre a Labor Rio e a Secretaria de Esportes e Lazer eram realizadas por Fleury – aparentemente o homem-chave para decifrar o enigma.

Antonio Fleury, que até então não tinha se pronunciado sobre o assunto, falou a ISTOÉ na quinta-feira 4. Negou que tenha relacionamento com o secretário Ruy Cezar ou com o deputado Rodrigo Maia – “Isso é um absurdo!” – e acusou a empresária de tentar desestabilizar a Labor Rio. Mas por que ela faria isso com a própria empresa? “Acho que a Marta, no dia em que deu esse depoimento, devia estar com muita raiva porque ninguém compactuou com a atitude dela aqui na empresa. Ela chegou a ligar para pedir dinheiro, para fazer isso e aquilo. Primeiro, não tinha dinheiro; e, segundo, a gente não ia compactuar com nada de errado. Ela começou a falar um monte de bobagens para tentar desestabilizar a cooperativa e o projeto em si, que é sério, que envolve trabalho com deficientes físicos, terceira idade, crianças em áreas carentes.” Apesar disso, entretanto, o marido de Marta Maria, Cláudio Alves, ainda faz parte do conselho diretor da Labor Rio.

O advogado explica que sua saída da cooperativa Aliança se deve a problemas como atraso no
pagamento dos salários, demora para fazer os
repasses e não-quitação de impostos, como o
Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
Confirma que levou para a nova cooperativa os contratos que geria na antiga, graças à “relação
muito boa” que ele e outros cooperados tinham com
as federações. “Resolvemos mudar para outra e procuramos alguém correto, que pudesse absorver a nossa mão-de-obra qualificada. Um dos diretores da Aliança conhecia a Marta havia mais de 30 anos. Sabíamos que ele nunca tinha tido problemas com pagamentos e imaginamos que deveria ser uma pessoa séria. Mas não sabíamos que tinha documento falso.”

Versões – Fleury aponta “interesses políticos” nas investigações e acha que “montaram um flagrante” para Marta Maria. “O Unibanco solicitou que só ela (Marta Maria) podia pegar os cartões. Quando ela chegou, assinou todos os recibos dos cartões que seriam posteriormente distribuídos aos funcionários e, quando deu a identidade, já havia policiais lá, prontos para prendê-la.” Ele descarta a possibilidade de alguém receber todos os pagamentos: “Falam que ela ia desviar R$ 650 mil. É mentira. Primeiro, porque não tinha esse dinheiro na conta. Depois, não conseguiria, pelo próprio esquema de segurança do banco.” Ele disse que assinava boletos bancários com a presidente para evitar “poder único e para que tudo ficasse extremamente transparente”. A versão difere da de Marta Maria. Em sua declaração, ela diz que foi informada por ele de que, na Aliança, “além dos depósitos normais das federações para pagamentos a cooperados, havia uma segunda conta suporte para atender a qualquer necessidade no valor de, mais ou menos, R$ 1,5 milhão”.

Para o vereador Del Rei, essa “conta suporte é a conhecida caixa dois”. Ele diz haver um “tripé” na base de todo o caso, “sustentado pela Secretaria de Esportes e Lazer, as federações e as cooperativas”. O presidente da CPI afirmou já ter constatado que muitos funcionários contratados não se encontram em seus postos de trabalho: “Estamos indo de local em local para verificar.” Embora ainda não seja possível calcular o valor que envolve as negociações investigadas, sabe-se
que é alto. “Há federações faturando R$ 2 milhões por ano. Como um secretário entrega fortunas de dinheiro público nas mãos de entidades não idôneas?” O relator da CPI, vereador Rodrigo Betlhem (PMDB),
afirma que “as acusações são fortes e indicam que há desvio de
recursos públicos”. Betlhem disse que “a investigação feita até agora
leva a crer que há outros contratos em outras secretarias na mesma situação”. Um supergafanhoto.