Diz a lenda que, em 1992, o então senador Bill Clinton acabara de ungir-se presidenciável pelo Partido Democrata. Convocou os assessores para tecer as linhas-mestras da campanha. Começou a falar de saúde pública, mudanças na educação e outros temas sociais caros aos democratas americanos. O marqueteiro James Carville impacientou-se com a cantilena. Interrompeu o candidato com um estampido: ?É a economia, estúpido!? A partir dali, a retórica de Clinton apoiou-se em críticas ferozes ao desempenho da economia. Ele acabou derrotando George Bush ? o pai do atual presidente dos EUA ? e chegando à Casa Branca. Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva protagonizou cena parecida, só que ao avesso. No meio do furacão político Waldomiro Diniz, o presidente convocou seus principais ministros. Usava um tom preocupado quando abriu a reunião: ?Olha, estou convencido de que a maior crise não é política, é essa idéia de que o País está parado.? Referia-se aos números divulgados na sexta-feira 27, de que o PIB decresceu 0,2% em 2003, dando ao ano inaugural do mandato o triste carimbo de primeira recessão desde 1992 e de que a taxa de desemprego subiu para 11,7% em janeiro.

A partir de então, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, tomou novo ânimo. Interlocutores desenvoltos do Planalto contam que nessa mesma reunião Dirceu, pela primeira vez desde o estouro do caso Waldomiro, contra-argumentou o que dizia o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Foi como um renascimento. Palocci falava sobre a retomada da economia nos últimos meses do ano. Dirceu pediu a palavra e comentou que novas medidas para estimular o crescimento seriam muito bem-vindas. Satisfeito, Lula pegou o mote. Tomou o cuidado de chamar de ?irrepreensível? o trabalho de Palocci à frente da economia antes de mandá-lo pôr na rua já o projeto-de-lei contendo regras de estímulo à construção civil. Também apressou o passo das articulações para fazer do prefeito de Manaus, Alfredo Nascimento (PL), titular do Ministério dos Transportes. Para tanto, conseguiu-lhe R$ 3 bilhões para obras imediatas nas estradas País afora. Por fim, tomou a decisão de desfazer o nó que impede o BNDES de chegar à velocidade de cruzeiro: Carlos Lessa, crítico da política econômica, deve perder o posto. O nome do ex-ministro do Planejamento João Sayad já foi citado mais de uma vez como o sucessor.

Desde o início do mandato, foi a primeira vez que a mão forte presidencial apareceu no Ministério da Fazenda. Não é sinal de descontentamento. O arrocho fiscal sobreviverá, mas, em relação aos juros, o Banco Central deverá, finalmente, aliviar a mão pesada. A ordem é acelerar medidas pontuais de estímulo ao crescimento. Nos próximos dias, Palocci apresentará o projeto de marco regulatório do setor de saneamento. Com ele, o governo estará livre para gastar os R$ 2,9 bilhões liberados do ajuste fiscal pelo FMI, injeção na veia do PIB.

Em outro flanco, Lula aproveitou a visita do diretor-gerente do FMI, Horst Köhler, para lançar um movimento mundial por mudanças nos critérios contábeis da instituição. O Brasil quer fazer com que os investimentos em infra-estrutura, como a construção de estradas e hidrelétricas, sejam liberados
dos programas de ajuste fiscal. Durante a semana, o presidente buscou o apoio de seu colega
dos EUA, George W. Bush, do primeiro-ministro francês, Jacques Chirac,
e do premiê alemão, Gerard Schröder. Telefonou para os três homens
que literalmente mandam no FMI. As reformas não são para já, mas a negociação ajudou a destruir o imaginário de paralisia gerado a partir
da notícia de recessão.

O alerta presidencial de que a crise política passou a ser menos importante do que a econômica revelou-se profético. A semana
chegou ao fim com possibilidades remotíssimas de instalação de CPIs, seja a proposta pelo senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), para investigar Waldomiro Diniz, seja a do senador Magno Malta (PL-ES),
para investigar os bingos.

Uma e outra esbarraram no senador sergipano José Almeida Lima (PDT).
O parlamentar protagonizou um dos maiores micos já vistos no Parlamento. Na segunda-feira 1º, anunciou dispor de documentos comprovando a ligação do ministro Dirceu com Waldomiro. Seria
realmente um golpe mortal, visto que Dirceu afirma ter sido traído
pelo ex-assessor, flagrado enquanto achacava o bicheiro Carlinhos Cachoeira. As tais provas seriam apresentadas no plenário do Senado,
na terça-feira 2. O dia começou nervoso. A Bolsa caía. O dólar subia.

O caso ultrapassou as raias do absurdo quando o senador subiu à tribuna. Ele começou a ler trechos de um relatório parcial da PF, feito em julho do ano passado. Na peça, o delegado Hebert Reis Mesquita cita indícios de que o ministro José Dirceu teria lançado mão de uma operação abafa depois que ISTOÉ revelou as ligações de Waldomiro Diniz com empresários de bingo ? a reportagem foi publicada na edição de 2 de julho.

Só que o discurso em si foi de uma confusão amazônica. Almeida Lima é um orador pouco brilhante, tanto que os colegas o apelidaram de Rolando Lero, personagem interpretado pelo falecido humorista Rogério Cardoso na Escolinha do Professor Raimundo. Como se não bastasse, o delegado da PF colheu os ?indícios? apenas em matérias de jornais da época. E o relatório propriamente dito fora objeto de outras reportagens no fim do ano passado. Não havia nada concreto. Pior: nada de novo. A líder do PT no Senado, Ideli Salvatti (SC), cresceu. ?A montanha rugiu e não pariu nem um rato, porque essas denúncias não têm estatura para rato?, bradou. Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), da tropa de choque de Lula, recorreu à ironia. ?O PT deveria erguer uma estátua em homenagem ao senador Almeida Lima.? O anticlimax foi tamanho que o governo encontrou forças para engavetar a CPI dos Bingos sem grandes traumas. Na quinta-feira 4, o líder do PMDB, Renan Calheiros (AL), articulou uma manobra que pôs a instalação da CPI nas mãos do presidente da casa, José Sarney (PMDB-AP). Que sutilmente já sinalizou: investigação engavetada.

Os 23 anos de história da americana Gtech podem ser confundidos com um roteiro à la Coppola, da série O poderoso chefão. Cenas de espionagem, escândalos, favorecimentos e pagamentos milionários por serviços prestados, lícitos e ilícitos, por empresas de políticos ou assessores influentes do alto escalão dos governos estaduais fazem parte do roteiro que fermentou esta gigante, responsável pela loteria nos Estados Unidos. As operações flagradas em vídeo de Waldomiro Diniz com o bicheiro Carlinhos Cachoeira não são novidade na metodologia pouco ortodoxa da empresa, hoje responsável por 70% dos jogos de loterias no mundo, com receitas globais da ordem de US$ 1,5 bilhão, sendo 15% da bolada proveniente do Brasil.

O sucesso de bilheteria foi tanto que em 1987, seis anos depois de fundada, das 23 loterias estaduais americanas existentes na época a Gtech já tinha obtido contratos com nove, incluindo a Califórnia, a maior delas. Dos três fundadores, um em especial dominou a empresa com sede em Rhode Island: Guy Snowden, que trabalhou como engenheiro na IBM, era, segundo colegas de trabalho, um executivo selvagem. Para fazer crescer a Gtech, que começou como uma minúscula empresa de consultoria para asssessorar loterias estaduais, Snowden se mostrou disposto a gastar e a fazer o que fosse necessário para obter os contratos. J. David Smith, gerente nacional de vendas, foi o fermento
de que Snowden precisava. Eles aperfeiçoaram o que Peter Elkind, em artigo escrito para a revista Fortune, em novembro de 1996, chamou
de a arte sorrateira da política de loterias. ?Recompensando amigos políticos, aniquilando inimigos, esmagando a competição.? De fato,
fizeram milhões, mas a um preço muito alto. David Smith foi condenado, em outubro de 1996, pelo tribunal federal de Newark (Nova Jersey) por orquestrar um esquema de propina usando de pagamentos superfaturados para consultores políticos de nível estadual, lavagem de dinheiro e
outros crimes. E Snowden afastou-se definitivamente da empresa em 1998, após a Justiça britânica ter provado que ele tentou subornar o bilionário Richard Branson, dono da Virgin, para afastá-lo do mercado inglês de loterias. A jogada lhe custou o cargo e uma indenização de
100 mil libras a Branson.

Logo que surgiu no mercado, a empresa deslumbrou os diretores de loterias estaduais americanos pela habilidade de instalar com facilidade os sistemas, operá-los e ajudá-los a extrair o máximo em dinheiro público, leia-se arrecadação de impostos, inclusive com a criação de novas modalidades de jogos. Só em 1995, os americanos gastaram US$ 35 bilhões em bilhetes de loteria. Mas o que sempre causou espanto não foi só sua capacidade tecnológica, mas as relações da Gtech com estes diretores. John Quinn, então comandante da loteria em Nova York, tomou uma decisão considerada extraordinária ao dividir o contrato estadual ? mantido por anos com a Automed Wagering ? com a Gtech. Nove meses depois, Quinn virou um executivo da empresa.

Apostas ? Gastos milionários com lobistas e ?consultores empresariais? sempre fizeram parte das altas apostas da Gtech para levar polpudos contratos, como o da loteria do Texas, por exemplo. Em 1991, contratou a Entrecorp, firma de lobistas do ex-governador do Texas Ben Barnes, a peso de milhões de verdinhas para disputar o contrato no Estado natal de George W. Bush. A Entrecorp recebeu, em 1993, US$ 3,2 bilhões. Um terço deste acumulado Barnes teria pago como propina a David Smith e a dois laranjas do então executivo, segundo as investigações do FBI e do Ministério Público americano. As relações perigosas entre a Gtech e autoridades texanas não param por aí. Em 1997, antes de ser presidente, Bush governava o Estado e sem explicações suspendeu licitação para explorar a loteria local. O contrato, apesar dos escândalos, ficou mais uma vez com a Gtech. Barnes, lobista mais bem pago da empresa, em 1968 era presidente do Congresso. Foi ele o autor de uma carta para ajudar o jovem Bush a obter um lugar na Força Aérea Texana, bem longe das plantações de arroz dos vietnamitas.

Tanto no Colorado, no Arizona como em Kentucky, entre outros Estados americanos, os diretores de loterias que tentaram desqualificar a Gtech foram atropelados com acusações furiosas relacionadas às suas condutas e perderam seus cargos. O caso que chama mais atenção é o do Arizona. Bruce Mayberry, em 1994, recusou o pedido da empresa de prorrogação de contrato por três anos ou concessão de uma taxa maior para a Gtech. Mayberry supõe ter sido demitido a mando de um lobista da empresa, ligado ao governo do Arizona. Depois de muitas encrencas e acusações de comprar até juízes, a Gtech trocou seus executivos, contratou ex-investigadores do FBI para o conselho e hoje assegura seguir um código de conduta que inibe qualquer tipo de corrupção.