Os cinco senhores vestidos com calça preta, carregando instrumentos e envergando vistosos paletós amarelos são saudados por buzinas e aplausos ao atravessar a avenida Paes de Barros, no bairro paulistano da Mooca – uma cena que, guardadas as proporções, lembra os Beatles cruzando a Abbey Road na capa do célebre disco do mesmo nome. Enquanto posam para ISTOÉ, o quinteto é abordado por uma senhora que jura ser fã do grupo desde que surgiram no italianado bairro do Cambuci. É assim que, há seis décadas, o quinteto Demônios da Garoa – mesmo com troca de componentes – desfruta seu prestígio. Eles são os principais intérpretes de 38 músicas de Adoniran Barbosa, pinçadas entre as cerca de 120 registradas em vida pelo mais paulistano dos compositores, que, por sinal, nasceu em Valinhos, interior do Estado. Quem não conhece Samba do Arnesto, Iracema, Saudosa maloca, Prova de carinho, As mariposa e, é claro, Trem das onze? E, para dissociar o grupo do artista, só mesmo mergulhando na vida dele.

O recém-lançado Adoniran – uma biografia (Editora Globo, 608 págs., R$ 49), escrito por Celso de Campos Jr., é um livro obrigatório para quem se interessa pela história do rádio paulista e, consequentemente, pela evolução da vida cultural da capital. Campos Jr., 26 anos, fugiu da abordagem mais formal adotada na tese de Francisco Rocha, publicada em Adoniran Barbosa, o poeta da cidade (Ateliê Editorial, 183 págs., R$ 25). Nesta, para surpresa de muitos, Rocha afirma que Adoniran era muito mais que um compositor reprodutor de sotaques. Foi um decifrador da alma popular. No texto de Campos Jr., as associações também são diversas. Sempre que Adoniran alcança um novo patamar na carreira, o fato dá margem a biografias paralelas que só complementam com charme a compreensão da importância do artista.

Mascate – Filho de italianos, caçula de sete irmãos, João Rubinato, seu verdadeiro nome, era avesso à escola. Passou a adolescência em Santo André, na Grande São Paulo, trabalhando como mascate, pintor, serralheiro, balconista, tecelão, encanador, garçom e vendedor de retalhos. Ao perambular por bairros humildes, tomou gosto pelo jeito peculiar da fala das pessoas, o que lhe seria muito útil mais tarde. O certo é que aprendeu a se virar. Gongado num programa de calouros da Rádio São Paulo, em 1935, pouco depois, já com nome artístico, conseguiu se transformar na atração da emissora ao lado de Lamartine Babo e da dupla Alvarenga e Ranchinho. Após um casamento-relâmpago em que teve uma filha, Maria Helena, que seria criada por sua irmã Ainez, o quase cantor se metamorfoseou em ator de rádio. Tornou-se uma celebridade lendo textos do lendário produtor e redator Oswaldo Moles.

Adoniran não parava de se virar. Foi ator de cinema e protagonista de comerciais nos anos 1970 – ele é que lançou o bordão “nóis viemo aqui pra beber ou prá conversá?”. Seu encontro com os Demônios da Garoa aconteceu bem antes, em 1946. Mas o sucesso só os uniria uma década depois. Na verdade, Adoniran chegou a gravar Saudosa maloca e Samba do Arnesto em 1951, sem nenhuma repercussão. Foi o quinteto da Mooca que deu molho às canções, tornando o disco com as duas músicas uma verdadeira febre. Juntos, com Trem das onze, venceriam o Carnaval do quarto centenário carioca, em 1965, feito inimaginável para quem vinha de São Paulo.

Adoniran encarnou o paulistano da gema, ou da algema, como querem alguns. Era boêmio, bom bebedor de pinga e avesso ao trabalho a ponto de dizer que seu lema na televisão era “microfone neles e câmera ni mim”. Depois do primeiro casamento, foi homem de uma só mulher: Mathilde de Lutiis, companheira até a morte dele, em 1982. O feito de Campos Jr. é acompanhar a saga do artista, jogando luzes sobre personagens, sobre o desenvolvimento do rádio, da televisão e do cinema nos anos 1950, mas sempre mantendo a carreira do artista como fio condutor. Nome respeitado tanto por colegas do porte de Elis Regina e Rita Lee quanto por intelectuais da linha de Antonio Candido, e amado pelo povo, Adoniran só gravaria o primeiro LP em 1974. Como compensação, morreu sabendo que seu humor seria ouvido para sempre. A prova está no entusiasmo até hoje provocado pelos Demônios da Garoa.