O foco do ator-diretor Mel Gibson em seu mais recente filme, A paixão de Cristo (The passion of the Christ, Estados Unidos, 2004) – que estréia nacionalmente na sexta-feira 26 –, cai como uma chibata cravada de pregos naquele que, segundo a Bíblia, se sacrificou pela humanidade. A sentença de execução se arrasta por duas horas, num exercício de sadomasoquismo inigualável na história de Hollywood. Nem adianta
pensar nos ensinamentos do Messias ou nas raízes do cristianismo plantadas por Ele, porque foram cortados do roteiro. Mesmo que a história seja tão conhecida, é de se perguntar: o que fez este homem, interpretado pelo ator James Caviezel, para merecer tamanha brutalidade? Com exceção de umas poucas cenas de flash-back, a
vida de Cristo foi resumida apenas às 12 últimas horas do martírio,
numa punição repleta de detalhes nauseantes.

Do primeiro corte na carne, passando pelo abscesso no olho, aos pregos entrando vagarosamente nas mãos e nos pés, não é escamoteada uma única judiação. O substantivo, aliás, no caso guarda duplo poder na tela. A etimologia da palavra judiar refere-se ao ato de maltrato a judeus. E sob o crivo de Gibson, diga-se, Jesus não é o único judeu a padecer. Meses antes da estréia, A paixão de Cristo já provocava polêmica, ofendendo a comunidade israelita, que acusou a obra de anti-semita, já que indiretamente apresenta os judeus como responsáveis pela morte do filho de Deus. Como resposta, as várias denominações cristãs americanas – principalmente os católicos ortodoxos, grupo ao qual Gibson se encaixa – saíram em defesa do diretor, a ponto de comprarem sessões inteiras em salas de espetáculo. Acrescentando a curiosidade do público, a fita já arrecadou US$ 125 milhões dos US$ 25 milhões gastos na produção, desde sua estréia americana em 25 de fevereiro.

Até agora, não se ouviu um pio de padres ou pastores sobre a suprema violência do filme. Ao contrário, congregações inteiras lotam os cinemas, levando pelas mãos os filhos menores. Jack Valenti, presidente da Motion Pictures Association, lembra que a fita tem censura R, ou seja, não é recomendável a menores. Mas, nos Estados Unidos, crianças acompanhadas dos pais podem assistir. No entanto, o impacto na
psique infantil não deve ser subestimado, pois em Wichita, no Estado
do Kansas, uma cinquentona teve um ataque cardíaco e morreu
durante as cenas de crucificação.

Mel Gibson é cristão fundamentalista e tem idéias ultra-ortodoxas sobre a fé. Pertence àquela corrente da Igreja Católica que rejeita as mudanças litúrgicas, introduzidas pelo Concílio Vaticano II, na década de 1960, entre elas a inclusão da missa celebrada na língua local e não mais em latim. Tanto que em sua versão para a Paixão os diálogos são em latim, hebraico e aramaico – língua semítica falada pelos arameus da antiga Síria e da Mesopotâmia, ainda hoje adotada em alguns pontos destas regiões – com um mínimo de legendas. Em latim, a origem da palavra paixão é sofrimento. Evoca, então, uma visão medieval da história de Cristo, na qual o martírio ganha dimensões superlativas. Assim, o Jesus Cristo de Gibson está mais para as telas do pintor grego do barroco, El Greco (1541-1614), do que para a açucarada produção Jesus de Nazaré, assinada pelo italiano Franco Zeffirelli em 1976.

Concílio – O cineasta buscou inspiração nas escrituras de São Mateus, único profeta que descreve Pôncio Pilatos – no filme, interpretado pelo búlgaro Hristo Shopov – lavando as mãos diante da multidão israelita e gritando: “Seu sangue estará em nós e nos nossos filhos”, um irado veredicto de execução. Nenhuma outra escritura repete a frase, que depois serviria para justificar o anti-semitismo e a idéia de que os judeus mataram Cristo. Só depois do já citado Concílio, organizado no papado
de João VI, é que a Igreja decidiu não ser apropriado condenar
todo um povo pelo ocorrido.

Jerusalém era periferia nos confins do império romano. Mas, na região, a cidade tinha grande importância comercial. Antes de Roma, o lugar já havia sido invadido por gregos, babilônios e outros povos que deram ares cosmopolitas ao mercado. A multidão que condenou Cristo naturalmente seria uma mistura étnico-religiosa compatível com tal condição. John Crossan, professor de estudos religiosos da Universidade De Paul, em Chicago, diz que, na descrição do Novo Testamento, Jesus é preso à noite. “Por que não o prenderam de dia, quando ele entrou triunfalmente em Jerusalém? Porque havia medo de que se promovesse uma revolta. Cristo era enormemente popular entre os judeus da cidade”, afirma. “E pintar Pôncio Pilatos como um sujeito razoável, e até simpático, como fez Gibson, é uma bobagem descomunal. Pilatos era um ditador brutal.”

Tanto faz a origem étnica de quem condenou Jesus. Se a cidade fosse habitada por turcos, gregos ou troianos, pouco importaria o veredicto. O destino de Cristo já estava traçado desde seu nascimento. No Monte das Oliveiras, Jesus pediu: “Pai, afaste de mim este cálice.” Deus não o ouviu. O rabino Shmuel Givat, da Yeshiva de Riverdale, em Nova York, fala que o anti-semitismo não precisa de um filme para ser exacerbado. “Como toda forma de discriminação, o anti-semitismo é irracional, fruto do medo, da ignorância e da loucura. A paixão de Cristo pode levar algumas pessoas a culpar os judeus pela morte de Jesus, mas quem o fizer estará apenas reforçando o anti-semitismo que já carrega dentro de si”, diz. “De qualquer forma, todas as generalizações são lamentáveis. O filme retrata o sumo-sacerdote Caifás (o italiano Mattia Sbragia) como um homem ignóbil. Pode ser que fosse mesmo, mas é bom lembrar que Jesus tinha muitos aliados no templo de Jerusalém”, acrescenta Givat.

Um outro ponto polêmico é o diabo ser apresentado como mulher, na figura andrógina da atriz italiana Rosalinda Celentano. A escolha tem levado os religiosos americanos a identificar satã como gay. O que, nem precisa dizer, já causou ondas de enxofre entre a comunidade homossexual. Até Maria – interpretada pela romena Maia Morgenstern –, hoje entronizada santa, aparece como uma figura anódina. Sua única função é liderar a claque das carpideiras.

Defendendo sua obra, Mel Gibson afirma que seu objetivo é mostrar o quanto Jesus Cristo sofreu para nos salvar. “Queria dar toda dimensão deste martírio. Apenas descrevi a realidade.” Diante destas palavras, parece que o público não tinha noção do sofrimento de alguém que recebeu 40 chibatadas, uma coroa de espinhos, carregou uma cruz montanha acima e foi nela pregado. O que Gibson, e boa parte das pessoas, parece ter se esquecido é dos ensinamentos de Jesus: amor ao próximo, piedade, caridade e paz.