A festa que explodiu na quadra da Beija-Flor na Quarta-Feira-de-Cinzas encerrou um enredo de samba. A escola de Nilópolis, na empobrecida Baixada Fluminense, comemorava não apenas a segunda vitória consecutiva, mas a sua conquista no mais belo e luxuoso campeonato em 20 anos de sambódromo – produto de uma evolução da qual a própria Beija-Flor é protagonista. O Carnaval atingiu o êxtase da criação artística justamente nas apresentações da escola sob o comando de Joãosinho Trinta. Em 1976, a pequena Beija-Flor surpreendeu as grandes Mangueira, Salgueiro e Império Serrano, abocanhando o campeonato pela primeira vez e mostrando o valor do jovem carnavalesco que vinha do Salgueiro. Ele reinou em Nilópolis por 17 anos, ganhou cinco de seus 12 títulos e exerceu plenamente sua máxima: “Quem gosta de pobreza é intelectual. O povo gosta é de luxo.” Em 1989, Joãosinho mudou tudo, repudiou a suntuosidade que o transformara em ídolo e deslumbrou o País vestindo com farrapos os “miseráveis” de Ratos e urubus larguem a minha fantasia. Na quarta-feira passada, o enredo do carnavalesco virou um samba triste. A Acadêmicos da Grande Rio, na qual estava havia quatro anos, chegou em 10º. lugar. Antes mesmo do início da apuração, a direção da escola anunciou publicamente a demissão de Joãosinho, exatamente no ano em que ele comemora seu 40º Carnaval.

A decisão foi o epílogo das confusões com a Justiça e, mais uma vez, com a Igreja Católica, que esperneou diante das esculturas inspiradas no Kama Sutra e das cenas simulando atos sexuais para exaltar o uso da camisinha. “O enredo não foi bem desenvolvido. A polêmica com a Igreja não foi da escola, foi do Joãosinho”, disse o presidente da Grande Rio, Hélio de Oliveira. Para protestar contra a intromissão da Igreja e da Justiça, Joãosinho cobriu as alegorias com a palavra censurado. O expediente, que encantou a Sapucaí no “Cristo proibido” da Beija-Flor, em 1989, não comoveu ninguém desta vez. “O Joãosinho inovou há um tempo atrás, mas não tem mais conseguido ser criativo”, justificou, impiedoso, o presidente da Grande Rio, já especulando sobre os possíveis sucessores do carnavalesco. O mais cotado é Paulo Barros, um estreante que, tal e qual Joãosinho na Beija-Flor em 1976, surpreendeu pela criatividade e arrebatou o vice-campeonato para a Unidos da Tijuca. A Mangueira ficou em terceiro lugar com um desfile milionário e o enredo Mangueira redescobre a Estrada Real … e deste Eldorado faz seu Carnaval, patrocinado por empresários de Minas Gerais – com o governador Aécio Neves à frente. A Unidos do Viradouro, de Niterói, chegou em quarto; a Imperatriz Leopoldinense, de Ramos, em quinto; e o Salgueiro, da Tijuca, em sexto. A São Clemente, única escola da zona sul no Grupo Especial, ficou em último e foi rebaixada para o Grupo de Acesso.

Joãosinho Trinta amargou a demissão recluso, sem falar com a imprensa. Amigos disseram que ele se sente injustiçado: “Não se trata assim uma pessoa com esse currículo de glórias”, disse um deles. Antes da demissão já circulavam rumores sobre sua ida para a Acadêmicos da Rocinha, escola do Grupo de Acesso que o homenageou este ano e também abrigou Adriane Galisteu, destronada do posto de rainha da bateria da Portela. O silêncio do mestre é a tônica da ressaca deste Carnaval.

Um outro silêncio, cercado de mais sigilo ainda, atravessa o samba. Dias antes da folia, a eterna musa Luma de Oliveira deixou órfã sua numerosa legião de fãs ao anunciar que não desfilaria como rainha da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel porque estava grávida de três meses. No meio da festa, outro paticumbum abalou as arquibancadas: Luma entrara na Justiça com um pedido de separação de corpos do empresário Eike Batista, com quem estava casada havia 14 anos e tem dois filhos. Assim como Joãosinho, a musa ficou quieta em seu canto.

“Ela está abalada com tantas especulações sobre sua vida particular. Até agora, o que tem de fato é apenas que ela se separou, como acontece com tanta gente”, diz o irmão e empresário Mem de Oliveira. O exílio não deve durar muito porque Luma pretende retomar seus compromissos brevemente, a começar pelo lançamento de um perfume cuja campanha vai estrelar. Enquanto isso, seu advogado, Michel Assef, apresentou uma medida cautelar de separação de corpos na 12ª Vara de Família do fórum do Rio. O processo corre em segredo de Justiça.

Na avenida, a vaga da musa foi disputada por corpos esculturais,
naturais ou siliconados, todos desnudos por fantasias mínimas – e luxuosas como nunca. A julgar pela reação do público, as novas candidatas terão de suar muito para superar a empatia da rainha
Luma. Mas quem levou a coroa foi a bela Juliana Paes, da Viradouro, inconteste musa de 2004. No alto do último carro alegórico, a apresentadora Xuxa Meneghel se emocionou com a homenagem da Caprichosos de Pilares e foi recebida com carinho e aplausos. O carisma não foi suficiente para salvar um desfile de obviedades, classificado em penúltimo lugar (13º). O Carnaval, evento conhecido por lançar rainhas, quase inova destronando uma este ano.

Um outro reinado permaneceu intocado no sambódromo: o dos bicheiros. Mas a demonstração de poder dos verdadeiros comandantes do Carnaval carioca teve de ser menos ostensiva este ano por causa do escândalo envolvendo Waldomiro Diniz, ex-assessor da Casa Civil da Presidência, flagrado tentando achacar o contraventor Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Foi o segundo “recuo tático” dos bicheiros. O primeiro aconteceu em 1993, quando a juíza e hoje deputada Denise Frossard (PSDB) condenou 14 deles à prisão por formação de quadrilha. Três anos depois, não havia mais nenhum bicheiro preso e em 1998 todos os patronos já tinham reassumidos seus postos nas escolas de samba. Na quarta-feira, quando a Beija-Flor recebia as notas máximas, o patrono Aniz Abrão David manteve-se na retaguarda enquanto diretores e carnavalescos ocupavam microfones e holofotes. Mas o exílio foi apenas para a mídia ver. Na Sapucaí todos os ex-condenados – como Maninho (Waldomiro Paes Garcia), do Salgueiro, Luizinho Drummond, da Imperatriz Leopoldinense, ou José Monassa, da Viradouro – circulavam entre autoridades, policiais e público. Como sempre.

O bicho – real – acabou dando a vitória à Beija-Flor. O enredo ecológico e politicamente correto

Manôa, Manaus, Amazônia, terra santa… que alimenta o corpo, equilibra a alma e transmite paz

mostrou alegorias e fantasias mais do que luxuosas de animais silvestres. O bicampeonato enterrou, definitivamente, o mito de que o futuro da Beija-Flor estaria

em risco sem Joãosinho Trinta. A escola inovou montando uma comissão com diversos carnavalescos em vez de atrelar seu destino ao de um gênio só. Deu certo.