Todas as manhãs, faça sol ou faça chuva, Elsie Dubugras começa a trabalhar às 9 horas em ponto na redação da revista Planeta, no bairro da Lapa, em São Paulo, depois de subir 25 degraus de uma escadaria íngreme. Sua rotina não chega a ser usual: às terças e quintas, ela fica na empresa só até as 10 horas. “Como não gosto de sair de férias, compenso tirando esses dias para passear”, explica dona Elsie, como a jornalista é conhecida. Nessas folgas, um de seus programas prediletos é descer a Serra de Santos e almoçar em um restaurante à beira-mar. Para beber, ela sempre pede uma cerveja preta bem gelada. Um hábito instigante para uma mulher 99 ponto 9, como ela vem se definindo nas últimas semanas. Nesta terça-feira 2 de março dona Elsie completa um século de vida. Não pretende comemorar. “Vou fazer o que sempre faço, o que me dá prazer”, planeja. “O meu vício é o trabalho”, completa ela, esbanjando saúde.

Filha de um antropólogo dinamarquês e de uma escocesa que se conheceram no Brasil, dona Elsie nasceu em São Paulo, mas, junto com seus dois irmãos, passou quase toda a infância e adolescência na Inglaterra. Aos 20 anos, ao voltar para o Brasil, fluente em português, inglês e francês, ela fez carreira como secretária executiva. Depois, atuou como uma espécie de Sherlock Homes da Pan American Airlines. Rodava o mundo para localizar e cobrar os mais renitentes devedores da empresa. “Hoje chamam de inadimplentes, naquela época eram escroques mesmo”, compara. Aproveitou as viagens para aprofundar estudos sem nenhum vínculo com fraudes financeiras, na linha da parapsicologia e da história das religiões. Nos anos 60, aprendeu na Índia a dar um passe que até hoje distribui, com mãos surpreendentemente firmes para uma centenária. “É um dom que recebi de um mestre hindu”, diz.

Dona Elsie já estava com 68 anos quando a Planeta foi lançada, em setembro de 1972, com enfoque em assuntos como universos paralelos e o interior da mente. À época, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, diretor da revista, reservava as quartas-feiras para atender leitores. Num desses dias, ela entrou em sua sala. “Era uma mulher muito interessante, cheia de vida”, lembra Loyola Brandão. Como fazia com todos os visitantes, ele avisou que teriam de 15 a 20 minutos para conversar. Duas horas depois, dona Elsie se despediu do escritor como colaboradora da publicação. “Teve mês que ela escreveu quase que a revista inteira”, comenta Loyola Brandão. “No final, virou a alma da Planeta.” Hoje, é editora especial. Embora enfrente dificuldades com a visão e precise usar uma lupa para ler, ela continua imbatível como tradutora.

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FLAGRANTE DO PASSADO
Acima, aos 20 anos, quando volta para São Paulo, depois de passar quase
toda a infância e adolescência na Inglaterra; abaixo, na sede da Editora Três
 

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No circuito das artes, dona Elsie também marcou época. Inconformada com a velocidade com que as construções antigas eram demolidas para ceder espaço a arranha-céus, ela passou mais de três décadas pesquisando e retratando paisagens em aquarela. Um de seus trabalhos preferidos é a reprodução de uma fonte encravada no centro paulistano, no Largo da Memória, obra feita em 1922 por seu sogro, o arquiteto francês Victor Dubugras. “É a minha contribuição para o futuro”, diz ela. “Quem conhece o passado se empenha em preservá-lo.” A coleção de aquarelas, que integra o acervo do Banespa, está reproduzida em dois livros de arte: São Paulo do tempo da garoa e Imagens do litoral paulista. Antes, ela já havia publicado O mundo do paranormal, Luiz Antonio Gasparetto e Renoir é você, os dois últimos sobre o pintor e médium Gasparetto.

Viúva depois de 36 anos de casamento, dona Elsie teve dois filhos. Entre suas grandes amigas está Vera, viúva de um deles, o químico Ian Robert. Seu outro filho, o engenheiro aposentado Victor Ronald, 75 anos, vive em Itanhaém, no litoral paulista. “Ele quer, por lei, que eu vá morar com ele, mas nem penso nisso, porque lá eu não teria trabalho”, comenta a jornalista. Faz, no entanto, constantes visitas à cidade litorânea. Gosta em especial quando a família se reúne. São, ao todo, sete netos, 11 bisnetos e uma tataraneta, Mariana, nascida no último dia 12, no Rio de Janeiro. No cotidiano, dona Elsie prefere viver só em seu próprio apartamento, no bairro de Higienópolis. A contragosto, de uns cinco anos para cá, permite que uma acompanhante durma em sua casa. “Não preciso de ninguém, mas minha família faz muita pressão para que eu não fique só à noite”, diz. “Coisas de família.”

Um de seus principais argumentos para morar sozinha é que sempre bastou a si mesma. Do ponto de vista prático, lembra que tem um estilo de vida descomplicado, almoçando na sede da Editora Três, que publica a Planeta, ou em restaurantes. Em casa, adota uma alimentação à base de frutas e também gosta de uma geléia de casca de laranja. Com a mesma convicção que defende a pouca utilidade de acompanhantes, dona Elsie valoriza ao máximo a função dos motoristas. Até seus 90 anos, circulava de ônibus para baixo e para cima. Quando a editora providenciou um motorista para levá-la ao trabalho e servi-la nos finais de semana, ela gostou tanto da fórmula que contratou outro por conta própria, para passear às terças e quintas. É por isso que nesses dias vai à sede da empresa e cumpre uma jornada de apenas uma hora de trabalho. “Tenho de dar ocupação aos dois motoristas”, esclarece.  “Se dispensar o da editora, ele fica sem ganhar a corrida.” Com arranjos do gênero, vai tocando a vida. Em sua trajetória, sobram talento, sabedoria e generosidade.