Terapeuta diz que temos de superar nosso patológico complexo de inferioridade e sugere uma releitura do País para que se atinja a maturidade

Por sete meses, a partir de novembro de 1998, um paciente grandalhão e caótico, meio mulherengo, ora deprimido, ora eufórico – e eternamente em crise – mobilizou os cuidados do terapeuta junguiano Roberto Gambini, 55 anos. Em parceria com a jornalista Lucy Dias, que extraiu pontos de vista inovadores da pergunta clássica de filhos angustiados – “Afinal, ainda podemos ter esperança?” -, Gambini analisou o Brasil. Tentou chegar à origem de suas aflições para explicar por que o País chega aos 500 anos com dramas tão persistentes. O registro dessa investigação é o livro Outros 500, uma conversa sobre a alma brasileira (Editora Senac), lançado há um mês. Gambini, que entrou em 1963 na Faculdade de Ciências Sociais da USP e, porque o pai queria, no curso de Direito da PUC-SP, foi aluno de Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Francisco Weffort. Como boa parte da geração que passou pela universidade na década de 60, em diversas ocasiões ele sentiu esperança de ver o País se transformar e engoliu a decepção. Nem mesmo a chegada de seus mestres ao poder produziu as mudanças que ele sonhava. “Admito que eles me desapontaram”, diz Gambini, que mais tarde se formou analista no Instituto C. G. Jung, em Zurique. “Em vez de usar seu conhecimento para transformar, usaram para negociar.” Ainda assim, ver o Brasil no divã o fez mais otimista. Em seu consultório no bairro das Perdizes, em São Paulo, ele recebeu ISTOÉ para uma entrevista:

ISTOÉ – Aos 500 anos, o Brasil é criança, adolescente, adulto imaturo ou velho babão?
Gambini

É tudo menos maduro. O Brasil tem a graça e a chatice da criança, tem a rabujice de velho, mas falta-lhe a auto-reflexão e a definição de identidade indispensáveis à maturidade.

ISTOÉ – Onde é mais visível essa falta de identidade?
Gambini

Em primeiro lugar, isso vem da terrível palavra que carregamos, subdesenvolvido. Não fomos nós que nos atribuímos esse rótulo. Ela vem de uma comparação econômica que acabou caindo sobre nós no fim dos anos 50. Subdesenvolvido é aquele que está aquém de uma possibilidade que existe. É um estado dinâmico que pode ser superado. Agora, a identidade vira um problema quando nós, para nos entendermos, olhamos para a reação de estrangeiros. Eles nos acham exóticos, dizem que não somos um país sério, que somos cheios de promessas. O brasileiro fica muito impressionado com esse olhar estrangeiro.

ISTOÉ – É característico de criança?
Gambini

De criança ou de adolescente inseguro. No Brasil falta um espelho onde possamos nos olhar e dizer: isto somos nós, essa é nossa cara, com essas qualidades, com esses defeitos. A gente acaba folclorizando nossas qualidades – a beleza da mulher brasileira, a alegria de viver do brasileiro. Mas aprofunda. E nossos defeitos são colocados como insuperáveis. O Brasil tem um complexo de inferioridade patológico, acha que aqui é o último dos últimos lugares. E essa polarização – de um lado o complexo de inferioridade, do outro a folclorização das virtudes – não constitui identidade. Identidade é o tema que deveria ser abordado nas pré-escola, no segundo grau, na universidade, na mídia. O Brasil precisa de uma grande reflexão coletiva para dar outro significado ao que passou. Deixar de acusar os pais e contar sua história de outro jeito. Está na hora, 500 anos é tempo mais que suficiente.

ISTOÉ – Auto-reflexão coletiva pode ser um processo popular? Não é coisa só de intelectual?
Gambini

Pode ser vivida em todos os níveis. É claro que é importante o subsídio intelectual. O Darcy Ribeiro é uma grande referência entre os que buscam outras versões além da história oficial. Mas essa releitura também pode se dar numa faixa média, estimulada pela mídia, e até na infância, através das emoções. Estou convencido de que se você pedir a uma criança para imaginar a cena do Descobrimento, que no próximo ano vai virar uma cena pop, ela pode fazer uma releitura simples. Não importa o tipo de releitura, o importante é que ela seja feita. Qualquer pessoa, por mais simples que seja, pode falar o que é o Brasil. Agora, essa fala não está liberada. Não há um interesse genuíno pela fala dos próprios brasileiros sobre o Brasil.

ISTOÉ – O que o sr. considera mais importante na releitura do Descobrimento que fez no livro?
Gambini

A idéia de Descobrimento acarreta a noção de que somos especiais, pois houve um ato mágico no nosso começo. O descobrimento é um ato de conto de fadas, mas ele é inverídico e deturpa toda a história a partir dali. Mascara-se sob essa fantasia, também, o nosso grande drama familiar, o silenciamento e a negação da mãe e a existência de um pai ausente e patológico. Ele não tem moral, é um pai branco que está ao sul do Equador, onde o maior legislador do século XVI, o papa, declarou que tudo que é sombrio no homem pode andar solto. Ao norte tem a Inquisição, a lei civil, mas ao sul não. Então o pai não tem o menor freio. Um homem tinha quantas mulheres índias ele quisesse e não se responsabilizava pela prole bastarda. A mãe índia, pelo que a gente conhece hoje, exerce a maternidade de uma maneira muito plena. Qualquer cultura tribal tem um padrão de relação mãe e filho de dar inveja aos psicólogos.

ISTOÉ – A mãe índia é ótima, o número de famílias chefiadas por mulher é enorme e a única certeza do cidadão brasileiro é ter mãe. Então só falta revalorizar a herança materna?
Gambini

O drama do Brasil é que o valor da mãe foi negado. As mães do século XVI tinham amor pelo filho híbrido que tinham. Mas a mulher que se acasalava com um branco e era batizada não era aceita de volta em sua tribo de origem. Os pajés percebiam que os missionários, ao batizar os índios, os destruíam. E os missionários como que arrancavam mulheres das tribos para acasalar com os brancos. Essas mulheres perdem seu ponto de apoio e se tornam destribalizadas, sozinhas e enfraquecidas. E o filho bastardo, híbrido, não vai se identificar nem com a mãe nem com o pai. Identificar-se com a mãe seria dizer ‘eu também sou índio’, seria receber a transmissão da cultura através da mãe. Mas a cultura indígena é a cultura do vencido. A mãe é uma derrotada, sem voz no destino dos filhos e não exerce a maternidade de modo pleno. Não conseguimos ver que nosso grande ventre é índio.

ISTOÉ – Não é a mãe negra a nossa grande figura materna?
Gambini

Antes da mãe negra é a mãe índia. Nem se usa essa expressão ‘mãe índia’. A mãe negra era mais visível porque estava mais perto da casa branca. Ela também é uma vencida. O homem branco reconhece que ela garante um bom colo a seu filho. A mãe negra tem mais calor que a mãe branca. Eu não a comparo com a índia. No cenário da casa grande e da senzala, a índia já está diluída. Talvez por isso não esteja no nosso imaginário. E é um drama da nossa história negar a origem, a mãe.

ISTOÉ – Ter avô italiano é bem mais vantajoso do que ter ancestral índio.
Gambini

É que a origem indígena é vergonhosa. E ninguém vai atrás de uma coisa que te dá vergonha. Se a avó for européia, vale a pena pagar para resgatar a árvore genealógica, mas quem vai fazer isso com nossa ancestralidade índia? Nós temos inclusive uma relação estranha com o mato, com floresta. No interior a preocupação principal é asfaltar as ruas, tirar o mato, porque isso vira sinal de civilização. Parece melhor esquecer isso tudo. Reconhecer a mãe, sobretudo, nos daria amor próprio. Como povo híbrido, é importante ver não apenas que temos uma mãe biológica, mas que somos herdeiros de uma ancestralidade antiquíssima. Os 6 a 12 milhões de índios que viviam aqui até a chegada dos portugueses se distribuíam em mais de mil grupos culturais.

ISTOÉ – O que significa a nossa necessidade de ídolos?
Gambini

Quanto menos identidade você tem, mais você procura ídolos. Pois o que você não reconhece em si mesmo, projeta no ídolo. Então, se a capacidade de vencer na vida é uma insegurança coletiva, pega-se um vencedor e se projeta nele o que não enxergo em mim. Mas aquilo me pertence.

ISTOÉ – E isso vale também para a denúncia? Afirmar ?ele é corrupto?, serve só para dizer ?eu não sou??
Gambini – Tem um lado que serve para sanear a impunidade, que é um fator de depressão. A morte do PC teve efeito depressivo. Agora está havendo uma revisão, mas na época acabou em pizza. Para mim, acabar em pizza é acabar em depressão, é concluir que não adianta fazer nada. Também corremos o risco de localizar meia dúzia de corruptos e achar que o problema foi resolvido. Temos de olhar atitudes coletivas do brasileiro. O brasileiro mama no Estado, ou ao menos quer continuar mamando. O grande sonho é ter um emprego público, o que é uma ilusão. É uma postura sombria, querer se beneficiar de alguma coisa.
ISTOÉ – E isso leva a ser tolerante com a corrupção?
Gambini – Leva a ser conivente.
ISTOÉ – O brasileiro acusa os políticos de corruptos, mas nunca se pergunta como o corrupto foi parar na política. Por que essa irresponsabilidade persiste?
Gambini – É falta de protagonismo. Há pouca vontade de ser protagonista da própria história. Então a gente prefere delegar em vez de ser o ator. Já que agir não é fácil: você se expõe, comete erros. Coletivamente é muito difícil fazer movimentos protagônicos e quando você delega você lava as mãos.
ISTOÉ – Em que momentos o brasileiro quis ser protagonista?
Gambini – Canudos é um exemplo que deveria ser usado como símbolo. Uma gente miserável que resolve se organizar num território paupérrimo, promove uma vida comunitária e busca seu destino. E o que aconteceu com Canudos? Teve de ser destruído, como se fosse uma ameaça à República. A ameaça é que eles estavam ignorando o Estado, que não existia ali, como até hoje não está presente em muitas partes do País. A ameaça foi menos real, mais psíquica. Isso ainda ocorre. O MST é um movimento para resolver um problema que não pode ser resolvido por mais ninguém. De alguma maneira isso é visto como uma ameaça à ordem vigente. Se a coletividade negra, por exemplo, começasse a trabalhar em busca de leis que reparem uma dívida da sociedade com os negros, se isso fosse parar no nível legislativo, acredito que haveria um movimento para desarticular esse movimento. O protagonismo é um perigo no Brasil e no entanto é do que o Brasil precisa.
ISTOÉ – O brasileiro demora demais para se indignar?
Gambini – Acho que existe uma atitude de dizer ?dane-se?. Quem vive em São Paulo, e vê a cidade sendo destruída, pensa: ?O que é que eu posso fazer?? É impotência. Isso protege da dor de tentar e não conseguir. Isso embota a denúncia. As coisas não estão perdidas, pois as denúncias estão aí. O problema é que quem mais sofre, como a população que vive em condições subumanas nas periferias, não consegue se manifestar. A exceção é o rap que formula como se vive um certo tipo de vida. O meu medo é que se calem essas vozes críticas.
ISTOÉ – Em que outros episódios da história deste século o brasileiro tentou tomar conta de seu destino?
Gambini – Vamos falar das gerações que estão aí. Nos anos anteriores ao golpe, no começo dos anos 60 até 1964, estava crescendo a tentativa de formular qual era o problema. Virou o refrão de uma música: ?subdesenvolvido, subdesenvolvido?. Naquela época, parecia que toda uma geração estava abrindo os olhos para uma condição insuportável que a gente vivia, que nos humilhava. Isso despertava imediatamente o desejo de lutar, do jeito que fosse. Havia um orgulho sadio.
ISTOÉ – Mas isso só aconteceu numa pequena parcela da sociedade.
Gambini – Eu diria que a juventude urbana do Brasil foi contaminada pelo desejo de fazer alguma coisa. Isso não chegou, é claro, a todo mundo. E a partir daí ficou proibido sonhar.
ISTOÉ – Ou foi o sonho do consumo que prevaleceu?
Gambini – Prevaleceu o sonho oficial, que nem é sonho: hidrelétrica, Transamazônica. Uma coisa grandiosa, mas não espontânea. Sonhar ficou perigoso não apenas pela repressão, mas sobretudo pela decepção. Em outro momento, também parcial, que foi a luta pelas diretas, começou a se mobilizar de novo um protagonismo, um sentimento de ?temos a ver com isso, podemos interferir?. E teve um efeito, só que, logo depois, isso sai da mão desses atores.
ISTOÉ – O que o brasileiro tem de bom?
Gambini – O povo brasileiro foi historicamente desprezado, tanto pela ideologia das elites quanto pela estrutura econômica, que nunca contou com o povo. Até o imigrantismo é prova disso, como se o povo que estava aqui não bastasse. Sou descendente de imigrantes, o que não impede que eu diga que o zé-povinho brasileiro estava sendo desprezado. Nosso grande problema é que não acreditamos no nosso povo e isso me comove, me move. Então, vamos olhar com outros olhos. O que vemos nesse povo? Uma enorme capacidade de lidar com a dureza e sobreviver, de resistir. Há muitos traços humanos nesse povo. O brasileiro não é bélico, não é sádico, agressivo ao extremo.
ISTOÉ – O que é, afinal, que o Brasil não ousa ver a respeito de si?
Gambini – Não ousamos ver a nossa sombra, olhar de frente a nossa negatividade e aquilo que historicamente fizemos de destrutivo. Isso é o mais difícil. O grande desafio é olhar uma dimensão extremamente destrutiva e a perversidade camuflada na sociedade que construímos. O livro é um exercício, não estou afirmando nem diagnosticando, estou praticando um exercício, que eu espero seja desenvolvido por muita gente. A lavagem do lado sujo tem de ser coletiva. O desenvolvimento do Brasil implica o aumento da miséria. Que maldição é esta, que não nos livramos de uma estrutura injusta. Somos 30, 35 milhões de miseráveis no Brasil. Celebrar 500 anos seria ter maturidade para olhar para isso. Não temos motivo de festejo.