29/12/1999 - 10:00
Por sete meses, a partir de novembro de 1998, um paciente grandalhão e caótico, meio mulherengo, ora deprimido, ora eufórico – e eternamente em crise – mobilizou os cuidados do terapeuta junguiano Roberto Gambini, 55 anos. Em parceria com a jornalista Lucy Dias, que extraiu pontos de vista inovadores da pergunta clássica de filhos angustiados – “Afinal, ainda podemos ter esperança?” -, Gambini analisou o Brasil. Tentou chegar à origem de suas aflições para explicar por que o País chega aos 500 anos com dramas tão persistentes. O registro dessa investigação é o livro Outros 500, uma conversa sobre a alma brasileira (Editora Senac), lançado há um mês. Gambini, que entrou em 1963 na Faculdade de Ciências Sociais da USP e, porque o pai queria, no curso de Direito da PUC-SP, foi aluno de Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Francisco Weffort. Como boa parte da geração que passou pela universidade na década de 60, em diversas ocasiões ele sentiu esperança de ver o País se transformar e engoliu a decepção. Nem mesmo a chegada de seus mestres ao poder produziu as mudanças que ele sonhava. “Admito que eles me desapontaram”, diz Gambini, que mais tarde se formou analista no Instituto C. G. Jung, em Zurique. “Em vez de usar seu conhecimento para transformar, usaram para negociar.” Ainda assim, ver o Brasil no divã o fez mais otimista. Em seu consultório no bairro das Perdizes, em São Paulo, ele recebeu ISTOÉ para uma entrevista:
É tudo menos maduro. O Brasil tem a graça e a chatice da criança, tem a rabujice de velho, mas falta-lhe a auto-reflexão e a definição de identidade indispensáveis à maturidade.
Em primeiro lugar, isso vem da terrível palavra que carregamos, subdesenvolvido. Não fomos nós que nos atribuímos esse rótulo. Ela vem de uma comparação econômica que acabou caindo sobre nós no fim dos anos 50. Subdesenvolvido é aquele que está aquém de uma possibilidade que existe. É um estado dinâmico que pode ser superado. Agora, a identidade vira um problema quando nós, para nos entendermos, olhamos para a reação de estrangeiros. Eles nos acham exóticos, dizem que não somos um país sério, que somos cheios de promessas. O brasileiro fica muito impressionado com esse olhar estrangeiro.
De criança ou de adolescente inseguro. No Brasil falta um espelho onde possamos nos olhar e dizer: isto somos nós, essa é nossa cara, com essas qualidades, com esses defeitos. A gente acaba folclorizando nossas qualidades – a beleza da mulher brasileira, a alegria de viver do brasileiro. Mas aprofunda. E nossos defeitos são colocados como insuperáveis. O Brasil tem um complexo de inferioridade patológico, acha que aqui é o último dos últimos lugares. E essa polarização – de um lado o complexo de inferioridade, do outro a folclorização das virtudes – não constitui identidade. Identidade é o tema que deveria ser abordado nas pré-escola, no segundo grau, na universidade, na mídia. O Brasil precisa de uma grande reflexão coletiva para dar outro significado ao que passou. Deixar de acusar os pais e contar sua história de outro jeito. Está na hora, 500 anos é tempo mais que suficiente.
Pode ser vivida em todos os níveis. É claro que é importante o subsídio intelectual. O Darcy Ribeiro é uma grande referência entre os que buscam outras versões além da história oficial. Mas essa releitura também pode se dar numa faixa média, estimulada pela mídia, e até na infância, através das emoções. Estou convencido de que se você pedir a uma criança para imaginar a cena do Descobrimento, que no próximo ano vai virar uma cena pop, ela pode fazer uma releitura simples. Não importa o tipo de releitura, o importante é que ela seja feita. Qualquer pessoa, por mais simples que seja, pode falar o que é o Brasil. Agora, essa fala não está liberada. Não há um interesse genuíno pela fala dos próprios brasileiros sobre o Brasil.
A idéia de Descobrimento acarreta a noção de que somos especiais, pois houve um ato mágico no nosso começo. O descobrimento é um ato de conto de fadas, mas ele é inverídico e deturpa toda a história a partir dali. Mascara-se sob essa fantasia, também, o nosso grande drama familiar, o silenciamento e a negação da mãe e a existência de um pai ausente e patológico. Ele não tem moral, é um pai branco que está ao sul do Equador, onde o maior legislador do século XVI, o papa, declarou que tudo que é sombrio no homem pode andar solto. Ao norte tem a Inquisição, a lei civil, mas ao sul não. Então o pai não tem o menor freio. Um homem tinha quantas mulheres índias ele quisesse e não se responsabilizava pela prole bastarda. A mãe índia, pelo que a gente conhece hoje, exerce a maternidade de uma maneira muito plena. Qualquer cultura tribal tem um padrão de relação mãe e filho de dar inveja aos psicólogos.
O drama do Brasil é que o valor da mãe foi negado. As mães do século XVI tinham amor pelo filho híbrido que tinham. Mas a mulher que se acasalava com um branco e era batizada não era aceita de volta em sua tribo de origem. Os pajés percebiam que os missionários, ao batizar os índios, os destruíam. E os missionários como que arrancavam mulheres das tribos para acasalar com os brancos. Essas mulheres perdem seu ponto de apoio e se tornam destribalizadas, sozinhas e enfraquecidas. E o filho bastardo, híbrido, não vai se identificar nem com a mãe nem com o pai. Identificar-se com a mãe seria dizer ‘eu também sou índio’, seria receber a transmissão da cultura através da mãe. Mas a cultura indígena é a cultura do vencido. A mãe é uma derrotada, sem voz no destino dos filhos e não exerce a maternidade de modo pleno. Não conseguimos ver que nosso grande ventre é índio.
Antes da mãe negra é a mãe índia. Nem se usa essa expressão ‘mãe índia’. A mãe negra era mais visível porque estava mais perto da casa branca. Ela também é uma vencida. O homem branco reconhece que ela garante um bom colo a seu filho. A mãe negra tem mais calor que a mãe branca. Eu não a comparo com a índia. No cenário da casa grande e da senzala, a índia já está diluída. Talvez por isso não esteja no nosso imaginário. E é um drama da nossa história negar a origem, a mãe.
É que a origem indígena é vergonhosa. E ninguém vai atrás de uma coisa que te dá vergonha. Se a avó for européia, vale a pena pagar para resgatar a árvore genealógica, mas quem vai fazer isso com nossa ancestralidade índia? Nós temos inclusive uma relação estranha com o mato, com floresta. No interior a preocupação principal é asfaltar as ruas, tirar o mato, porque isso vira sinal de civilização. Parece melhor esquecer isso tudo. Reconhecer a mãe, sobretudo, nos daria amor próprio. Como povo híbrido, é importante ver não apenas que temos uma mãe biológica, mas que somos herdeiros de uma ancestralidade antiquíssima. Os 6 a 12 milhões de índios que viviam aqui até a chegada dos portugueses se distribuíam em mais de mil grupos culturais.
Quanto menos identidade você tem, mais você procura ídolos. Pois o que você não reconhece em si mesmo, projeta no ídolo. Então, se a capacidade de vencer na vida é uma insegurança coletiva, pega-se um vencedor e se projeta nele o que não enxergo em mim. Mas aquilo me pertence.