Enquanto eu observava com espanto a grande quantidade de gruas e guindastes no skyline, o taxista que me pegou no aeroporto disse que a cidade muda tanto e tão rapidamente que, a cada dez anos, surge uma nova Berlim. Portanto, se você não visita a cidade há mais de dez anos, ele disse, você não conhece Berlim.

Fico me perguntando como uma cidade que foi levada a nocaute há 60 e poucos anos pode esfregar na cara de quem anda por suas ruas tanto dinheiro, pujança e dinamismo. A verdade é que se existe alguma metrópole que pode hoje ser paradigma em termos urbanísticos e de qualidade de vida, essa cidade é Berlim. Tudo ali, do aproveitamento dos espaços até o ethos berlinense, é reinvenção e modernidade. Com uma população de menos de quatro milhões de habitantes (São Paulo tem mais de 11), um terço do espaço
da cidade é ocupado por parques e reservas verdes. O tráfego flui, sem congestionamentos. A vida é relativamente barata.
Mas o que mais me impressionou foi a forma como
a cidade é constantemente repensada e como os espaços são transformados e reinseridos na dinâmica social.
Um dos exemplos mais impressionantes é a Boros Collection, a fantástica coleção de arte contemporânea do bilionário Christian Boros, abrigada num bunker idealizado pelo arquiteto queridinho de Hitler, Albert Sperr, e construído em 1942 com trabalho forçado.

O bunker, com paredes de quase dois metros de largura, tem uma longa história. Localizado na parte oriental da cidade, ele foi usado pelo Exército Vermelho, depois da guerra, como presídio. Foi ainda transformado em armazém de tecidos e frutas (daí vem o nome banana bunker) e local de baladas techno e festas sadomasoquistas na década de 90. Foi ainda, nesta década, palco de teatro de vanguarda e sede de uma gigante feira de produtos eróticos. As autoridades fecharam o bunker em 96, depois de terem proibido – mas não evitado – uma festa de arromba de Ano-Novo com o tema “The Last Days of Saigon”.

Sob a batuta de Christian Boros, os arquitetos Jens Casper, Petra Petersson e Andrew Strickland, da empresa Realarchitektur, transformaram o bunker no espaço que hoje abriga a segunda mostra de parte da coleção de Boros (a primeira foi de 2008 a 2012 e foi visitada por 120 mil pessoas), com obras de artistas da ultravanguarda como Klara Lidén, Ai Weiwei, Cosima von Bonin, Marieta Chirulescu e Olafur Eliasson.

A visita pelos cinco andares do bunker é feita em grupos de 12 pessoas, e acompanhada por um dos jovens formados em história da arte que integram o staff de Boros. A coleção é mesmo de tirar o fôlego. Muitos artistas usam aromas (pipoca, borracha queimada) e sons (de máquinas, relógios) em seus trabalhos, que se misturam, proporcionando ao visitante uma experiência sensorial de grande impacto.

Com sensibilidade, Boros e os arquitetos decidiram manter parte dos grafites, pichações, pinturas e elementos que mostram o passado eclético da edificação, exemplo vivo de uma Alemanha em constante processo de mudança.

Se você olhar para cima, quando está no quinto andar, vai vislumbrar a penthouse de Boros, que vive ali com a mulher, Karen. Eu cheguei a ver uns vasinhos no que supus ser a área de serviço da penthouse, e umas galochas. Isso me deu uma sensação de estar na casa de alguém, e não dentro de uma exposição. Comentei isso com o guia, e ele me disse que era exatamente esta a ideia de Boros: receber pessoas em sua casa, e mostrar a sua coleção particular. Por essa razão ele não identifica as obras expostas. “Ninguém identifica um quadro na sua própria casa.”

The Boros Collection não é um museu, não é um centro cultural ou uma galeria de arte no sentido clássico desses termos. Mas é, sem sombra de dúvida, o paradigma de um novo conceito de museu, centro cultural e galeria de arte, e sobretudo de uma Berlim que se reinventa o tempo todo, que repensa o espaço urbano, que transforma o caos, a miséria e a loucura do passado em algo novo, pulsante, com grande significado social para a vida da sua comunidade.