Na América Latina, a perspectiva de chegada ao poder costuma moderar o discurso radical e lapidar o sectarismo dos partidos políticos de esquerda, como mostra o candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva. Líder nas pesquisas, ele se aliou ao Partido Liberal e já admite manter os fundamentos da atual política econômica – que os petistas sempre classificaram como “neoliberal” – para acalmar os mercados. Ao que parece, esta tradição está prestes a se romper na Bolívia: lá, o líder dos cocaleiros e dirigente sindical Evo Morales Ayma, 42 anos, do Movimento ao Socialismo (MAS), vai disputar o segundo turno das eleições presidenciais com o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), reafirmando sua intenção de não fazer alianças com as forças políticas tradicionais. Além disso, o candidato esquerdista boliviano reafirmou as polêmicas bandeiras de sua campanha, entre elas a de liberação do plantio de folha de coca. “Não quero que rompam as relações diplomáticas com os EUA, mas que a DEA (agência antinarcóticos americana) vá embora e deixe de dirigir a Polícia
Nacional e as Forças Armadas, como acontece agora”, disse Morales depois de ter sido confirmada sua ida para o segundo turno, a ser realizado no Congresso.

Na eleição presidencial direta realizada no dia 30 de junho, Sánchez de Lozada obteve 22,46% dos votos contra 20,94% de Evo Morales. Em terceiro lugar ficou o ex-prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, da Nova Força Republicana (NFR), com 20,91%, apenas 721 votos a menos que Morales. Uma das explicações para a surpreendente virada eleitoral na Bolívia foi a atitude do embaixador americano em La Paz, Miguel Rocha, que uma semana antes das eleições afirmou que os EUA suspenderiam toda a ajuda econômica ao país se Evo Morales se elegesse presidente ou simplesmente viesse a participar de um governo de coalizão, numa manobra que lembrou a desastrada intervenção do embaixador americano em Buenos Aires em 1946, Spriulle Braden, contra o então candidato a presidente Juan Domingo Perón.

Eleito deputado em 1997 com 70% dos votos da região de Chapare, tradicional produtora de coca, Morales foi cassado dois anos depois, acusado de incentivar a violência dos trabalhadores rurais contra a polícia. Na campanha, destacou-se pela defesa do direito ao cultivo da folha de coca, atividade que gerava algo entre US$ 400 milhões e
US$ 800 milhões, entre 5% e 10% do PIB de US$ 8 bilhões. Com apoio americano, os governos de Sánchez de Lozada (1993-1997) e Hugo Bánzer (1998-2001) erradicaram a quase totalidade dos 46 mil hectares de folhas de coca da Bolívia, deixando os camponeses à míngua. O candidato do MAS reconhece que parte da produção se destina à cocaína, mas defende o aproveitamento do produto pela indústria, na fabricação de xampu e cremes. Morales também defende a reestatização das empresas privatizadas e a suspensão das exportações de gás – inclusive para o Brasil – até que o consumo interno esteja suprido.

As chances de Morales ser eleito pelo Congresso no próximo dia 4 de agosto são escassas. O candidato precisaria conquistar pelo menos 79 votos entre os 157 senadores e deputados. Morales sempre descartou qualquer aliança com os partidos tradicionais, como o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), e mesmo com o NFR, de Manfred Reyes. A única esperança é que o espírito de moderação que baixou no PT atinja os Andes e alcance o líder cocaleiro.