Genocida, o povo te condena!”, gritavam os manifestantes para o ex-presidente do México Luis Echeverría Álvarez (1970-1976), o primeiro mandatário mexicano a ser processado por violação dos direitos humanos. Ele seria o principal responsável pelas chamadas décadas da Guerra Suja (anos 60 e 70), quando foram presos, torturados e assassinados milhares de estudantes, membros de movimentos sociais e guerrilheiros que atuavam nas zonas rurais mexicanas. Uma trágica ironia, já que o regime criado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que ficou no poder entre 1929 e 2000, mantinha um discurso nacionalista e não alinhado, aproximando-se de Cuba e dando exílio a milhares de esquerdistas latino-americanos. Em casa, no entanto, a coisa era diferente. Echeverría, 80 anos, teve que responder na terça-feira 9, na Promotoria Especial de Movimentos Sociais, a uma batelada de quase 200 perguntas sobre a origem dessa guerra suja, o chamado massacre de Tlatelolco. Em 2 de outubro de 1968, dias antes dos Jogos Olímpicos do México, quando Echeverría era o então ministro do Interior do falecido presidente Gustavo Díaz Ordaz, as forças de segurança reprimiram uma manifestação estudantil na praça de Tlatelolco, na Cidade do México, matando entre 150 e 500 pessoas.

Esta foi a segunda vez em menos de uma semana que Echeverría, acusado de genocídio, privação ilegal e desaparecimento de pessoas, foi chamado a depor na comissão presidida pelo jurista Ignacio Carrillo. Na trágica noite de 10 de julho de 1971, quando ele já era presidente, uma falange paramilitar denominada Los Halcones (os Falcões) ensanguentou as ruas da capital mexicana com o massacre de cerca de 30 colegiais e universitários durante uma marcha da Universidade Autônoma de Nova León. Segundo o observador do interrogatório David Cilia, ex-estudante que esteve na marcha e ex-membro da extinta Liga Comunista 23 de Setembro, que foi perseguido, torturado e preso no final dos anos 70, “as perguntas a Echeverría foram consistentes e baseadas em declarações tomadas por testemunhas”.

Os interrogatórios sobre os mais tristes e vergonhosos períodos da recente história mexicana vão tentar estabelecer o grau de responsabilidade das autoridades das forças repressivas da época. Foi depois desses massacres que surgiram as guerrilhas urbanas no México. O julgamento de um ex-mandatário, e possivelmente de outros políticos, como o ex-prefeito da Cidade do México, Alfonso Martínez Domínguez, o próximo a sentar no banco dos réus, só foi possível graças à decisão do presidente Vicente Fox – o primeiro oposicionista a chegar ao poder depois de 71 anos de domínio do PRI – de abrir a caixa-preta de 34 anos de repressão. “Este é um acontecimento histórico”, afirmou José Luis Soberanes, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que há anos acompanha as famílias das vítimas da Guerra Suja. Pela primeira vez, estão disponíveis os 80 milhões de fichas do Arquivo Geral da Nação que estavam no Palácio Lecumberri, o chamado Palácio Negro, e foram depois transferidas para a antiga penitenciária da Cidade do México, onde agora poderão ser consultadas. São registros de 40 anos
de investigação (de 1948 a 1985) de organizações políticas, sociais e civis do México.

Fox também pediu a investigação sobre o paradeiro de 532 pessoas “desaparecidas”, entre os anos 50 e 70, apresentadas pela CNDH. “Estamos acabando de uma vez por todas com a impunidade e o abuso do poder. A Presidência do México está deixando para trás qualquer vestígio de seu passado. Este é um governo democrático, e como tal se conduz”, afirmou Fox. “Sob nenhuma hipótese vamos encobrir os que cometerem esses crimes”, completou o presidente. Mas há os que não estão tão confiantes assim. No mesmo dia em que acontecia o primeiro interrogatório, a presidente da Comissão dos Direitos Humanos na ONU, Mary Robinson, se reunia com o presidente mexicano. Robinson pediu a Fox que a comissão de investigação seja independente do Estado. Isso porque foi o próprio PRI que montou o aparato repressivo que aos poucos está sendo desmantelado pelo novo governo. Aliás, dos 74 nomes acusados de ser os responsáveis pela Guerra Suja, alguns ainda estão no poder.

O advogado José González Ruiz, que defende dezenas de famílias de vítimas do regime priísta, afirmou a ISTOÉ que ainda há ceticismo sobre a punição dos culpados. “Eu diria que nós estamos prudentemente otimistas. Na Presidência houve mudança, mas não no aparato governamental. Existem vários exemplos de políticos que foram do aparelho repressivo e hoje ou estão no poder ou muito próximos a ele. É o caso de Rodolfo Echeverría Ruiz, ex-governador de Guerrero e dirigente do PRI”, afirmou Ruiz. Tanto nos Estados de Guerrero como em Chiapas, os militares continuam sendo vistos com desconfiança. E até o ex-presidente Echeverría, ao sair do tribunal, desafiou o governo de Fox. “Estou muito longe de ser condenado”, afirmou.