O presidente George W. Bush está entre a cruz e a espada. O mar de lama das fraudes multibilionárias que envolve as maiores corporações americanas não apenas respingou no alto escalão da Casa Branca – o vice-presidente Dick Cheney e o secretário do Exército, Thomas White, acusados de estarem envolvidos em irregularidades contábeis –, como está revirando o túmulo de um velho fantasma do próprio presidente americano. Depois do 11 de setembro, restabelecer a confiança do mercado financeiro tornou-se o grande desafio do líder da maior nação capitalista do planeta. Justamente quem falava de risco Brasil, dos perigos de se investir na América Latina e nos países emergentes, de corrupção nos governos do Terceiro Mundo, agora terá que fazer uma faxina brava em sua própria casa. “Isto não é uma guerra de grandões. Estes problemas estão sendo sentidos dentro das casas dos americanos. O que está em jogo é a confiança da população no governo americano. Primeiro, foi o medo provocado pelos ataques de 11 de setembro. Agora, a insegurança do mercado. E a nossa economia ainda não sabe quando verá terra firme”, afirmou a ISTOÉ o diretor do Centro de Governo e Negócios da Universidade de Harvard, Ira Jackson. A batalha a que se refere Jackson é a dos 80 milhões de investidores que, incentivados a investir nas Bolsas de Valores pelo próprio presidente republicano, agora cobram dele medidas mais enérgicas para punir os responsáveis pela sequência de escândalos com grandes corporações americanas como Enron, Xerox, Global Crossing, WorldCom e, por último, Merck. Afinal, os Estados Unidos já perderam em oito meses US$ 5 trilhões, e, quanto mais caem as Bolsas, mais o público americano cobra de Washington. Para acalmar a temperatura do mercado, o presidente Bush anunciou na terça-feira 9, no coração financeiro americano Wall Street, uma série de medidas com o intuito de frear a ação dos corruptos.

Entre as medidas estão a criação de uma força-tarefa para combater o crime do colarinho-branco e o aumento da penalidade de cinco para dez anos para delitos de fraudes postal e eletrônica, usadas muitas vezes pelas corporações. Bush, que se orgulha de ser o único mandatário americano a ter um curso de especialização em administração (MBA), também propôs leis mais severas para os que destruírem documentos da Justiça, como aconteceu no caso da Enron, e anunciou a reformulação da Securities and Exchange Comission (SEC), que regulariza o mercado de capitais, equivalente no Brasil à Comissão de Valores Mobiliários (CVB), na criação de uma espécie de Swat, em suas próprias palavras, para investigar crimes fraudulentos.

Não faltaram críticas e descrédito em relação às propostas de Bush, um ex-empresário que também um dia se beneficiou desse esquema que hoje promete combater. Em 1985, Bush vendeu sua companhia petrolífera falida e com inúmeras dívidas, a Spectrum 7, por uma bolada de US$ 300 mil para outra empresa petrolífera, a Harken Energy, da qual se tornou diretor em 1986. Isso só aconteceu, segundo o economista Paul Krugman, pelas conexões de Bush com a Casa Branca. Ou seja, por ser filho do então presidente. E as irregularidades não pararam por aí. Entre 1986 e 1988, Bush filho recebeu dois empréstimos da Harken estimados em US$ 180,375 mil, com uma carência de oito anos e juros anuais de 5%. Ou seja, a empresa praticamente doou as ações a Bush. A auditoria do caso foi feita pela Arthur Andersen, a mesma empresa envolvida nos escândalos da Enron e da WorldCom.

Memória curta – Mais lama: no dia 30 de junho de 1990, oito dias antes das ações da Harken caírem 20%, George W. Bush, que era um dos diretores e acionistas da empresa, vendeu quase US$ 850 mil em ações sem ter comunicado à SEC, como manda a lei americana. Em 1994, quando candidato a governador do Texas, Bush afirmou que havia entregue o relatório à SEC, mas acaba de ser revelado que houve um atraso de 34 semanas na entrega do documento. Para piorar a situação, o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, afirmou que foram os advogados de Bush que extraviaram o relatório. Um dia antes de anunciar as novas medidas em Wall Street, o presidente enfrentou novamente uma sabatina de jornalistas para tentar se defender do imbróglio. Dessa vez, saiu-se com um “faz muito tempo e não consigo me lembrar”.

Mas seu vice, Dick Cheney, terá que ter boa memória para
também explicar as enrascadas em que se meteu. Na quarta-feira
10, foi aberto pela Judicial Watch, uma organização jurídica não governamental, um processo civil contra Cheney, ex-diretor da Halliburton entre 1995 e 2000 (antes de assumir a vice-presidência), que está sob acusação de fraude contábil. Em 1998 a Halliburton teria prejudicado acionistas por ter superestimado seu faturamento, acusação semelhante feita à Enron e à WorldCom. Uma fita de vídeo obtida pelo Wall Street Journal mostra Cheney ao lado de outros seis executivos em seus tempos de Halliburton agradecendo aos “serviços prestados pela auditoria Arthur Andersen”. E, como se não bastassem as barbatanas enlameadas de Cheney em mais um escândalo, o secretário do Exército, Thomas White, também está sob investigação do FBI e da SEC. White tinha conexões com a fraudulenta Enron, nada menos que 89 pessoas da empresa, motivo pelo qual os congressistas pedem sua cabeça. Outra cabeça que o Capitólio quer pôr a prêmio é a do chefe da SEC, Harvey Pitt,
ex-advogado da Arthur Andersen.

De olho nas eleições legislativas de novembro, os democratas aproveitam para alfinetar Bush, o Partido Republicano e suas ligações com Wall Street. O analista Zacary Scholbaslky, estrategista do Partido Democrata, em entrevista a ISTOÉ, afirmou que é o momento de os democratas mostrarem os erros do governo Bush, que, segundo ele, deverá retrucar na “ênfase da guerra ao terrorismo”. O deputado democrata Richard Neal vai além. “É preciso lembrar ao deputado Dick Armey (líder da maioria republicana) e ao povo americano que não é o capitalismo que não funciona bem. As práticas criminosas das empresas não têm a ver com o capitalismo. Aliás, são proibidas por ele. Um bom começo seria se livrar de Harvey Pitt, um homem que não tem a confiança pública”, afirmou Neal. Para o economista Edmund Altman, aliado aos republicanos, a crise vem do governo Clinton. “A política agressiva de internacionalização do capital e a corrida absurda de investimentos em empresas de tecnologia com pouco histórico no mercado e nenhuma condição de retornar o imenso capital investido nelas foi um dos pontos básicos da política de Clinton”, afirmou Altman a ISTOÉ. E, como bom republicano, o economista adverte: “Quanto menos o governo se meter na vida dos americanos, melhores serão os resultados”, diz.

Colaborou Osmar Freitas Jr.

Muito peixe graúdo cairá na rede da Justiça

O attorney general de Nova York é o equivalente ao secretário de Justiça do Estado. A diferença em relação ao correspondente servidor público no Brasil, por exemplo, é que os nova-iorquinos elegem pelo voto direto seu attorney. Eliot Spitzer, um democrata aguerrido, tomou o lugar de seu antecessor republicano há dois anos. Desde então, a população da cidade o vê em batalhas contra grandes falcatruas e roubalheiras, como um cruzado justiceiro das histórias em quadrinhos. E, nesta missão, Spitzer investiu contra as companhias de investimento e as empresas de contabilidade que transformaram a Bolsa de Valores de Wall Street num balaio de maracutaias. Foi o attorney general que começou a puxar o fio da meada de escândalos em que analistas e corretores da Bolsa – que supostamente seriam independentes em suas recomendações de compra e venda de ações – recomendaram papéis de bancos de investimento a seus clientes, motivados por ligações de negócios com estas instituições. Seu nome também aparece com destaque maior na luta contra a cozinha de números dos balanços de empresas – como a WorldCom – e as maracutaias das empresas de contabilidade cúmplices nestes crimes. Presidentes e CEOs de corporações que fazem da usura seu objetivo maior estão igualmente na alça de mira do attorney general. Na semana passada, logo após o discurso duro, mas inócuo, do presidente George W. Bush em Wall Street, condenando estas práticas, Eliot Spitzer falou com ISTOÉ sobre a crise e os modos para solucioná-la.

ISTOÉ – O discurso do Presidente Bush parece não ter alterado muito a ordem das coisas na Bolsa. Por quê?
Eliot Spitzer –
Acho que o discurso do presidente foi muito bom. Não se esperava mesmo que suas palavras fossem alterar da noite para o dia as práticas espúrias que há muito tempo poluem o ambiente nos centros financeiros. De qualquer maneira, eu esperava uma ação mais dura da Casa Branca. A liberação de verbas no valor de US$ 100 milhões para ajudar a Exchange Commission (órgão que policia as negociações de ações) já foi um primeiro passo importante.
Mas esta quantia ainda não será suficiente para fazer frente às necessidades da instituição. O apoio presidencial a um novo conjunto de leis visando coibir conflitos de interesses no mercado financeiro também foi uma ação significativa. Mas tudo isso, espero, é apenas um começo de reforma total nos meios financeiros e na cultura das empresas americanas.

ISTOÉ – Existe algum golpe mortal que se pode usar contra a ganância das empresas e as falcatruas no mercado?
Spitzer –
Esta não é uma guerra que se ganha com uma única bala. É preciso muita luta. Porém, a investigação, processo e punição em crimes do colarinho-branco são sempre as melhores armas nesta guerra. Mandar presidentes de empresas para a cadeia – e não para prisões do tipo “country club” – com sentenças duras me parece ainda o melhor remédio para coibir abusos e restaurar a confiança dos investidores. É preciso cortar os atalhos que permitem a fuga destes criminosos. De qualquer modo, as investigações estão apenas no começo neste conjunto mais recente de escândalos. Tenho a convicção de que muito peixe graúdo cairá na rede da Justiça.

ISTOÉ – Os Estados Unidos sempre foram considerados o porto seguro para os investidores de todo o mundo. Com todos estes escândalos, estes investidores já estão duvidando da segurança de seu capital no mercado americano. É possível tranquilizá-los?
Spitzer –
Os Estados Unidos ainda continuam sendo um porto seguro. Em que outro lugar do mundo existem regras tão claras e vigilância mais constante? O fato de que estes escândalos de agora vieram à tona – e tenho a certeza de que eles representam apenas a ponta de um iceberg – já é demonstrativo de que as autoridades americanas estão alertas. Eu digo isso não apenas para tranquilizar investidores estrangeiros, mas principalmente para assegurar a paz para pequenos investidores domésticos – gente cuja aposentadoria depende dos investimentos no mercado de papéis. Não vamos deixar que roubem o pão do povo americano.
Osmar Freitas Jr.