Entre a habilidade e o quixotesco, o ator Antonio Grassi, secretário estadual de Cultura do Rio, quer levar arte para as favelas

Com um olho na programação de óperas e balés do Theatro Municipal e outro nos bailes funk da periferia, o secretário estadual de Cultura do Rio de Janeiro, o ator Antonio Grassi, no momento delineia o que pode vir a ser o projeto cultural do País num eventual governo Lula ou até mesmo em outras administrações. Grassi assumiu o cargo em abril para cumprir um curto mandato ao lado da governadora Benedita da Silva (PT). Apesar do pouco tempo, ele já carimbou parte de sua marca liberando as cadeiras de veludo do Municipal a pessoas que jamais poderiam pagar um ingresso para entrar naquele templo. Em relação à Orquestra Sinfônica, ela já saiu do palco do mesmo teatro e foi às ruas, mais especificamente à beira do famoso Piscinão de Ramos, na zona Oeste. Quanto aos bailes funk, os eventos estão em processo de incorporação à outras manifestações culturais do projeto Caravana Urbana, coordenado por Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, no qual foi baseado o filme homônino de Fernando Meirelles. Oficinas de artes também vêm sendo implantadas nas favelas que compõem o Complexo do Alemão, um dos pontos mais violentos da cidade. É assim que, entre romântico e hábil, Grassi quer investir num Rio de Janeiro mais próximo da sua realidade.

Mineiro nascido há 48 anos em Belo Horizonte, casado e pai de dois filhos, Grassi teve a chance de se apresentar para públicos maiores graças ao extinto projeto Mambembão, que buscava talentos no interior para divulgação nas capitais. Formado em ciências sociais e em ciências humanas, ele equilibra seu currículo entre trabalhos na televisão – o mais recente aconteceu na minissérie global O quinto dos infernos –, no teatro e no cinema. Antonio Grassi deu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – O estado de tensão e violência do Rio de Janeiro afeta a cultura?
Grassi

 Sim. Para começar, o acesso ao bem cultural está totalmente comprometido. Basta ver que os teatros dos shoppings, supostamente mais seguros, estão sempre cheios, e os outros, nas ruas, mais vazios. Ao mesmo tempo, a cultura é um pilar importantíssimo para atuar com a área de segurança no combate à violência. Podemos fazer programas importantes com a população carcerária e de formação com a juventude que está nas favelas sem nenhuma perspectiva que não seja trabalhar para traficantes. A cultura pode ter atuação contundente nessa área. Estamos trabalhando em projetos com a Secretaria de Segurança e este talvez seja nosso principal pólo de atuação.
 

ISTOÉ – O sr. pretende levar a arte à favela. Alguém vai ter coragem de subir os morros?
Grassi

Vamos ter de trabalhar para isso. Temos um projeto que, inclusive, eu não gosto muito do nome, Ocupação Social, que é capitaneado pela área de coordenadoria de ação social. Essa “ocupação” não inclui soldados, armas. Queremos apenas a possibilidade de entrar com oficinas de artes. Agora mesmo estamos tentando atuar no Complexo do Alemão.

ISTOÉ – É possível desenvolver estes projetos sem pedir licença ao tráfico?
Grassi

Acho que é possível, sim. Percebemos que os moradores se sentem massacrados por essa imagem que liga o tráfico ao baile funk em favela. Nem sempre é assim, embora a tragédia do jornalista Tim Lopes esteja vinculada aos bailes. O funk é uma manifestação cultural que pode ser incorporada no aspecto legítimo da arte, fora do tráfico e da violência. Começamos em julho um trabalho importante, coordenado por Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, que é o Caravana Urbana. O objetivo primeiro é incentivar a leitura e aumentar os acervos de bibliotecas públicas, mas é também de interação das oficinas literárias com outras artes como o hip hop, o funk, todas essas manifestações culturais que são periféricas e não estão institucionalizadas. Sobre isso, já conversei com pessoas como o DJ Marlboro e a cantora Fernanda Abreu. Tem muita gente trabalhando no sentido de ligar o morro ao asfalto, entre elas o rapper MV Bill, o grupo Nós do Morro.

ISTOÉ – Literatura é o alvo prioritário do projeto? Há interesse?
Grassi

Sim. Temos uma pesquisa feita pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), no Morro da Formiga, que é um dos mais pobres do Rio, sobre equipamentos culturais. Perguntaram: “Qual é o equipamento cultural que vocês mais querem na comunidade?” Foi a maior surpresa porque a resposta é uma biblioteca. Mais do que videoclube, cinema e teatro, eles pediram biblioteca. Essa é a demanda daquela comunidade. Cada uma tem a sua e temos de ir aos locais para definir a melhor forma de trabalhar. Na Casa da Gávea (centro cultural criado por um grupo de artistas do qual Grassi faz parte), começamos a dar bolsas para dança, teatro e outras para as crianças pobres que ficavam cheirando cola ali por perto. Elas iam uma vez, duas, mas não continuavam. Aí a Cristina Pereira (atriz) bolou o Escola sem Cola, que é fazer essas oficinas lá na praça, onde eles estavam, em vez de esperar esses garotos dentro da sala. Deu resultado.

ISTOÉ – Mário de Andrade estava certo em querer que a massa aprecie o biscoito fino da arte?
Grassi

Sem dúvida. Comecei uma experiência emocionante no espetáculo Romeu e Julieta, superprodução internacional apresentada no Theatro Municipal. Disponibilizei a platéia vazia dos ensaios gerais para nossas secretarias de áreas sociais, de direitos humanos e pastoral das favelas. É absolutamente emocionante ver uma platéia que nunca teve a oportunidade de sequer entrar no Municipal assistir a um espetáculo. Para quem está no palco é melhor também porque, em vez de cadeiras vazias, tem público assistindo. O sucesso foi tão grande que estendemos para o balé Giselle e para os espetáculos de dança da Deborah Colker. E faremos com todos os eventos do Municipal. Com as produções estrangeiras, estamos estabelecendo essa possibilidade já nos contratos. Ao mesmo tempo, vamos fazer o caminho contrário, tirando do Municipal os corpos artísticos, de baile, coro, orquestra e levá-los para atuar em outros lugares, onde o povo está. A Orquestra Sinfônica, por exemplo, recentemente se apresentou no Piscinão de Ramos e foi o maior sucesso.

ISTOÉ – O sr. foi convidado a fazer o esboço do projeto nacional de cultura do PT?
Grassi

Fui convidado a integrar um fórum com alguns secretários
de Estado para trabalhar na costura do programa cultural do PT no governo de Lula. Faço parte desse esforço conjunto. O PT já administra cinco Estados, sete capitais e 183 municípios. É uma experiência acumulada de administração capaz de fornecer uma formatação de programa para governo federal bem mais consistente do que aquele que trabalhamos em campanhas anteriores. Antes de mais nada, temos de pensar uma política cultural para o Brasil que independa dos partidos que vão entrar e sair do governo.

ISTOÉ – Qual é a marca do projeto cultural do PT?
Grassi

No plano nacional, temos de ver o Brasil como um país inteiro, multirregional, continental, culturalmente diverso e com pensamento mais democrático na distribuição cultural. Hoje não é assim. As leis de incentivo fiscal que dominam e predominam na conduta do programa cultural do atual governo são exclusivas do eixo Rio–São Paulo. Porque as empresas que participam de isenção fiscal e norteiam os projetos através das leis de incentivo são sediadas no Rio e em São Paulo e querem contemplar projetos desse eixo, onde a marca delas pode aparecer. Então há um caldeirão cultural enorme de outros Estados que ficam de fora. Temos proposta de realizar uma circulação itinerante das produções nacionais. Eu sou fruto dessa história. Sou hoje um profissional que vive de sua profissão por causa de um projeto que se chamava Mambembão, criado na época da ditadura. Eles andavam pelo Brasil escolhendo espetáculos para serem levados para os grandes centros. Assim eu comecei minha carreira. Outra proposta nacional é pensar na regionalização da tevê. Não dá para ter uma única capital ditando um padrão cultural para o Brasil inteiro. É na contramão da globalização, mas vale a pena tentar. Não achamos que vamos construir o mundo de novo, mas vamos batalhar por mudanças.

ISTOÉ – O sr. concorda que vivemos uma época de produção cultural de baixa qualidade?
Grassi

Chegamos a um ponto que não se pode mais falar de cultura sem falar de comunicação de massa, de mídia. Muitas vezes, o evento ganha aparato de cultura sendo apenas produção de marketing. Não se consegue levar até a massa o que é considerado alto padrão. Não se consegue, por exemplo, mostrar um concerto sinfônico com a mesma frequência com que a cantora Kelly Key é divulgada.

ISTOÉ – É possível realizar algo em tão curto mandato, já que o sr. assumiu o cargo em abril e irá exercê-lo só até o fim do ano?
Grassi

A linha mestra é estabelecer uma política cultural para
o Estado que envolva os 92 municípios. Assim como acontece no
Brasil, a concentração de projetos também é centralizada. A cidade do Rio consome 99% do orçamento da cultura. E, o que é mais maluco ainda, 60% está num lugar só, que é o Theatro Municipal. O restante
tem de atender a todos os teatros, todos os museus, escolas e todos
os outros espaços. Em São Paulo não é assim e há melhor circulação
pelo Estado. Em Minas Gerais, também. Aqui é que centralizou. A dificuldade em estabelecer nossa marca de trabalho é porque estamos atolados em compromissos assumidos na gestão anterior e nossa prioridade é honrá-los. Enfrentamos muitos credores batendo à porta
com débitos muito altos.

 

ISTOÉ – Por que aconteceu a concentração no Municipal?
Grassi

Eu não acho um absurdo o orçamento do Municipal. Acho absurdo é o pouco que ficava para as outras atividades. Dos
R$ 43 milhões destinados pelo Estado, R$ 27 milhões estavam comprometidos com o Municipal, cuja programação é de alto nível, está no circuito internacional e envolve custos elevados. Mas temos de estabelecer uma programação de altíssimo nível com orçamento menor. Estamos pensando em fazer um programa de balé bem brasileiro, com concepção do maestro Wagner Tiso, reunindo Villa-Lobos, Tom Jobim e Pixinguinha. Se investirmos em artistas nacionais, o orçamento de
R$ 12 milhões que temos daqui para a frente cai para R$ 6 milhões. Precisamos também pensar na valorização do artista nacional, até porque o Municipal tem programação internacional patrocinada pela iniciativa privada. Estamos inaugurando parceria inédita com o Theatro Municipal de São Paulo para realizarmos produções conjuntas que serão exibidas nos dois Estados

ISTOÉ – E os outros teatros? Permanece o sistema de diretores que administram casas de espetáculos e criam seus feudos?
Grassi

Os teatros estão com problemas muito sérios, precisando urgentemente de boa reforma e manutenção. Ao mesmo tempo, precisamos de um programa eficaz de fomento à produção, de apoio, principalmente aos pequenos e médios produtores. Curiosamente,
o governo do Estado do Rio oferece o maior prêmio de teatro do Brasil, R$ 100 mil por categoria e R$ 200 mil para o melhor espetáculo.
Só que ele foi “dado”, mas não foi pago. Estou com essa conta.
Sobre os diretores artísticos, não estão mais sob contrato. É importante o olhar artístico sobre a programação, mas ao mesmo tempo é
obrigação do Estado possibilitar que o maior número de produtores
passe pelos teatros.

ISTOÉ – Afinal, o que está acontecendo com o Municipal, que vive em permanente estado de conflito e greve?
Grassi

Quando assumimos, já tinha havido um concurso público promovido pela gestão anterior sobre o qual pairavam denúncias de irregularidade. Suspendemos tudo para averiguação jurídica e sindicâncias. A Procuradoria e o Ministério Público consideraram o concurso legítimo e recomendaram a homologação no dia 3. No dia 5, um ofício do Tribunal de Justiça mandava suspender a posse do Corpo de Baile, mas o concurso continuava homologado. Tenho sido pressionado por todos os lados, por quem passou e não passou, mas não estou tomando atitude de minha própria cabeça. Estou obedecendo a Procuradoria. Não tenho interesse em homologar ou não, embora alguns deputados do PT achem que só por ter sido realizado na gestão de Anthony Garotinho ele deve ter sido irregular.

ISTOÉ – Pretende continuar trabalhando como ator?
Grassi

É o que eu quero. Acabei de fazer o filme Carandiru, de Hector Babenco, baseado no livro de Drauzio Varella. Como secretário, não dá para atuar, mas tenho projetos para depois da secretaria. Penso em montar uma peça do Marcelo Rubens Paiva. E a Marília Pêra me chamou para fazer o espetáculo Vidas privadas, de Noel Coward. Não tem nada concreto, mas é um convite que me deixou tentado.