Conheça, em vídeo, em que condições algumas pessoas vivem no hotel:

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INOVAÇÃO
O Chalet Suísse tornou-se famoso por ser o primeiro
restaurante de hotel a oferecer vista panorâmica da cidade

Na torre art déco de 25 andares, que um dia já foi hotel de luxo, o banho tomado no balde contrasta com o mármore travertino que reveste o banheiro. Aposentada de um lado, a banheira de porcelana branca se transformou em reservatório de água, que precisa ser carregada escada acima para garantir o abastecimento dos quartos. Foram-se as camas de madeira maciça, os colchões macios e os lençóis finos, agora substituídos pelos colchões infláveis, invariavelmente azul-marinho, que abundam pelas habitações. Também abandonou o endereço o Chalet Suisse, restaurante de luxo especializado em fondues que funcionava no deslumbrante terraço. Dele, só restou a vista para o Vale do Anhangabaú. A comida agora é feita bem longe dali, no térreo, em um cubículo de pouco mais de três por quatro metros, onde se espremem dona Fátima, a cozinheira, suas ajudantes, um fogão, algumas panelas industriais, uma geladeira e um freezer. Uma refeição custa R$ 2, preço bem diferente dos R$ 50 dos últimos fondues servidos pelo Chalet Suisse antes de fechar. Desde que ganhou uma nova função, em 26 de outubro passado, acabou-se a mordomia no Othon Palace de São Paulo. Outrora habituado a chefes de Estado, como a rainha Elizabeth II (que lá se hospedou em 1968) e famosos de passagem pela cidade, os corredores do ex-hotel de luxo agora se acostumam ao movimento ruidoso de seus novos hóspedes. São numerosas famílias, movidas pela esperança de encontrar um lugar definitivo para morar. Ao contrário dos antigos hóspedes, que após a estadia voltavam para suas casas, os que hoje ocupam os quartos do ex-hotel não têm para onde ir. São sem teto.

“A gente não está invadindo, está reivindicando. A gente não quer ficar aqui, quer ter um lugar nosso”, diz Aline Dias Eubank, 25 anos, atual moradora do quarto 814. A jovem sul-mato-grossense já teve casa em Campo Grande, mas a família vendeu a propriedade para pagar o tratamento quando ela adoeceu de uma síndrome rara, aos 14 anos. Moraram na zona leste da capital paulista em um pequeno apartamento alugado até outubro, quando a dona pediu o imóvel e Aline, a mãe e a irmã ficaram sem ter aonde ir. O dinheiro que tinham era pouco para cobrir um contrato novo. Decidiram, então, se juntar à Federação Pró-Moradia do Brasil, movimento que organiza a ocupação do hotel. A escolha do Othon Palace não se deu pelo conforto, mas sim por estar vazio desde 2008, com dívidas de IPTU e bem próximo à prefeitura, o que expõe aos olhos do poder público o problema de moradia. Basta cruzar a rua Líbero Badaró para se chegar à atual sede do governo municipal, o edifício Matarazzo. Quando o hotel foi inaugurado, em 1954, durante as comemorações do quarto centenário da cidade, a atual prefeitura abrigava a administração da maior corporação brasileira à época, as Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Mais alguns metros de caminhada sobre o Viaduto do Chá e se encontra o Teatro Municipal. “O Othon era um empreendimento para apresentar São Paulo como um grande centro econômico sul-americano”, afirma Caio Calfat, vice-presidente de assuntos turístico-imobiliários do Sindicato da Habitação de São Paulo e estudioso da hotelaria paulista. “Por isso a localização.”

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RENOVAÇÃO
O hall acarpetado dos andares (acima) virou campo de futebol para as
brincadeiras das crianças. Abaixo, o espaço onde funcionou o restaurante

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Até a década de 70, ali estavam o coração financeiro da cidade, as damas da sociedade e os senhores de paletó. Com o passar do tempo, eles migraram para outras avenidas. Primeiro, para a Paulista, depois para a Faria Lima e, finalmente, para as margens do rio Pinheiros, na Berrini. À região central, assim como ao hotel, restou a ruína – a rede Othon atualmente possui 15 hotéis no Brasil e quatro no mundo. “Há pelo menos 53 prédios abandonados no centro que poderiam virar moradia popular”, diz o secretário executivo do Centro Gaspar Garcia de Diretos Humanos, Luís Kohara. O número citado pelo pesquisador vem do próprio poder público municipal, que divulgou em 2008 um estudo no qual apontava 53 endereços que podiam ser adaptados para projetos habitacionais. Gente para ocupar esses imóveis não falta. O déficit habitacional paulistano é de cerca de 300 mil casas, número praticamente igual ao de domicílios vazios – 290 mil, de acordo com o Censo 2010. Seria fácil fechar essa conta, mas a desapropriação dos 53 prédios não saiu do papel.

Em todo o centro, estima Kohara, há outras 30 ocupações. Duas delas, também em antigos hotéis paulistanos, o Lord e o Cambridge, cujas histórias se misturam à do próprio Othon. Na gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab chegou-se a elaborar um projeto para transformar o Othon em um apêndice da prefeitura, com secretarias municipais. Com a posse de Fernando Haddad, porém, essa destinação não é mais garantida. O que alimenta esperanças de gente como o auxiliar de limpeza Cleiton Pereira, 32 anos, morador do 801. Enquanto assiste à novela na televisão no hall de entrada do Othon, ele explica sua situação. Para as oito horas diárias de trabalho, Pereira ganha um salário mínimo e, com o dinheiro, sonha em comprar seu próprio imóvel. Quando tentou, porém, esbarrou na falta de programas de moradia para assalariados. “O que me ofereceram foi entrar para um consórcio e esperar pelo sorteio, mas como é que eu pago consórcio, aluguel, comida, roupas e transporte, tudo isso com um salário mínimo?” Como Pereira, grande parte das famílias que se espalham pelas habitações do ex-hotel de luxo esbarra nesse mesmo problema. Pagar um pouquinho todo mês grande parte pode, mas faltam programas que lhes deem essa possibilidade. “Não tem incorporadoras interessadas em construir para esse público que ganha menos de três salários mínimos” diz Elaine Silva, uma das coordenadoras da ocupação.

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ESTRATÉGICO
Ao lado do Edifício Matarazzo e no início do Viaduto do Chá,
o Othon Palace estava localizado bem no centro financeiro da capital

Diante disso, o jeito é improvisar em um hotel abandonado e aguardar alguma decisão da vizinha prefeitura. “É difícil principalmente por não ter água nos quartos”, diz a vendedora Simone Stella, 29 anos, moradora do 1.003. Mãe de Isaac, de cinco meses, a carioca chegada há pouco em São Paulo tem se virado como pode para lavar as roupas do bebê em baldes no banheiro do quarto. Mas não reclama, pois viver no ex-hotel tem lhe permitido dar conta de tudo com o salário de R$ 800 – que, além das despesas da casa, tem de cobrir a creche do filho. Acima de Simone, está o “andar de luxo” da atual estrutura. Não que haja algum tapete valioso ou iluminação mais cara, mas o zelo dos moradores em mantê-lo limpo o diferencia dos demais. “No décimo primeiro a gente tem até uma cozinha própria”, orgulha-se Bruno Vasconcelos, 22 anos, morador do 1.111, que abre a porta fechada à chave de um antigo espaço para uso dos funcionários. Lá dentro, um fogão e uma mesa para os vizinhos de andar.

O piso acarpetado, que hoje serve de campo de futebol para as crianças, era um dos símbolos de ostentação do Othon à época de sua inauguração. “O carpete, os móveis e a qualidade do serviço eram marcas do Othon quando ele foi lançado”, diz Maurício Bernardino, presidente da Federação dos Hotéis do Estado de São Paulo, profundo conhecedor do mercado hoteleiro paulista, no qual trabalha há mais de 50 anos. “Os operadores de turismo estrangeiros mandavam todos para lá. A rede já era muito conhecida lá fora por causa dos estabelecimentos do Rio de Janeiro”. Hoje quem faz o serviço de manutenção são os próprios moradores, que lavam as escadas três vezes por semana e se revezam na portaria, fechada todas as madrugadas das 2h às 4h45. No segundo andar, mora José Humberto da Silva, o Beto, 42 anos, uma espécie de síndico. “Quando chegamos estava tudo muito sujo. Levamos um mês para deixar limpo. Não é fácil dar conta de um bichão desses”, diz Beto, enquanto sonha em conseguir uma casa para chamar de sua, sem a sombra de uma reintegração de posse.

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Fotos: Reprodução;Jjoão Castellano/Ag. Istoé; Acervo UH/Folhapress


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